MARIAS - Odenilde Nogueira Martins

Todas eram Maria: Maria Flor, a mais velha, Maria Conceição, a do meio e Maria Angélica, a caçula e a mais bela. Do casamento de dona Constância com seu Agenor ainda nasceram Teobaldo e Anacleto. Cinco irmãos.


Teobaldo e Anacleto, junto com o pai e empregados, tocavam a próspera fazenda da família, enquanto, sob a supervisão de dona Constância, Maria Flor, Maria Conceição, mais as esposas dos empregados, cuidavam do gado leiteiro, galinhas, porcos e da horta; ainda havia a casa, a comida e a roupa para lavar. Apesar de haver muitas pessoas trabalhando ali, a rotina era exaustiva. E ficava mais puxada no tempo da colheita. Já Maria Angélica não gostava daquela vida de quase isolamento e preferiu ir, com a aprovação dos pais e irmãos, à cidade para estudar. Seria bom, para os negócios, que alguém da família se formasse em administração, pois além da propriedade rural, havia outros negócios que careciam de atenção. E como é o olho do dono que engorda o gado... As duas irmãs mais velhas e os dois irmãos completaram o ensino médio em uma cidadezinha próxima e não quiseram sair da fazenda.

Flor e Anacleto estavam em idade de casar; aliás, a filha mais velha já estava passando e, se não aparecesse pretendente, logo seria solteirona. 

– Mulher, no mês que vem, o aniversário da Flor. Vamos fazer um churrasco e convidar os vizinhos. Quem sabe, algum moço se interesse pela nossa filha e ela também. Aqui na fazenda, sem ver ninguém, além de nós, não vai arranjar marido.

– Sim, um churrasco. Vou prender umas galinhas.

– Vamos botar um boizinho no confinamento. Dois dias de festa, sábado e domingo! – completou seu Agenor.
A ideia da festa agradou. Todos precisavam de um pouco de diversão. Anacleto era o mais animado.

– Pai, vou trazer a minha namorada. Boa hora de ela conhecer a nossa família. 

– Convide a família dela também. Saber quem é a família é importante. Só assim a gente sabe se tudo está de acordo. E você, Teobaldo, não vai trazer a namorada? 

– Não, pai. Ainda é cedo.

– Não quero filho solteirão – brincava dona Constância. 

– Não se preocupe, mãe. Sou o filho mais bonito. Interessadas é que não faltam.

Conversa alegre. Sempre acontecia quando estavam almoçando ou jantando.

– Pai, posso comprar um vestido pra festa, já que é meu aniversário?

– Pode. Anacleto te leva na cidade.

O dia da festa se aproximava. Os vizinhos já haviam sido convidados. Até uma dupla de sanfoneiros foi contratada. Se a filha não desencalhasse depois dessa festança... Quem sabe Maria Conceição também se arranjasse.
No dia 20 de maio, a família saiu da cama logo que o galo cantou.  Havia muito por fazer, antes que os convidados começassem a chegar.

Às dez horas, muitas famílias já haviam chegado e, enquanto os homens rodeavam a vala que serviria de churrasqueira, as mulheres cuidavam das saladas. Os primeiros a chegar foram os Silveira. Junto com a família, veio Patrício, sobrinho do casal, viúvo há pouco mais de um ano, que morava em uma cidade vizinha e trabalhava em um cartório. Boa pinta, prosa boa, moderninho, logo encantou as duas irmãs, Flor e Conceição. Maria Angélica só chegaria no domingo. 

Patrício desfilava pra lá e pra cá, mas sempre à vista das irmãs. Um pavão se exibindo. O patriarca, Agenor, atento, percebia que o rapaz estava arrastando asa para o lado das duas filhas. Não lhe agradava essa atitude, no entanto, fazia-se de cego. Anacleto e Teobaldo também estavam atentos.

Lá pelo meio da tarde, o anfitrião viu Flor, sob uma laranjeira, desmanchando-se em sorrisos para Patrício. Não demorou, Anacleto se aproximou do par.

– Flor, tá na hora de servir a sobremesa. Vá ajudar a mãe.

Com ar contrafeito, Flor se afastou em direção à cozinha, e Conceição, que observava da varanda, dirigiu-se para o local. O sorriso sedutor de Patrício deixava transparecer sua satisfação. 

– Que honra! A moça mais bonita da festa me fazer companhia! – disse o rapaz, fazendo Conceição corar de orgulho.

– O que esse almofadinha tá querendo? – comentava Agenor com o filho Teobaldo. – Deve tá procurando encrenca.

– E vai achar! – completou o filho de dona Constância.

– Calma, filho! Vamos deixar correr pra ver no que vai dar! Vamos fazer de conta que não vimos nada. Só deixando a corda solta pra saber das intenções.

A festa estava animada. Lá pelas cinco horas, seu Silveira e a mulher se despediam, garantindo que voltariam no dia seguinte. Queriam rever Maria Angélica que chegaria.

– Parece que nosso sobrinho se interessou por vossa filha Maria Flor. Quem sabe não sai casamento, vizinho? – dizia Silveira, empolgado.

– Quem sabe! – respondeu o dono da casa em tom duvidoso, olhando em direção às filhas, que se derretiam para o lado do sujeito. O instinto lhe avisava que poderia ter problemas.

No domingo, perto das nove horas, chegou Maria Angélica. Foi uma alegria só!

– Filha, você está cada dia mais bonita! – dizia a mãe, cheia de orgulho, envolvendo a moça em um abraço. 

– Estudar na cidade tá te fazendo bem! Tomara que não tenha ficado luxenta – emendou o irmão Teobaldo.

– Que nada! Sou a mesma caipira! Sinto muita falta daqui e de vocês. Não via a hora de vir.

No domingo, os convidados chegaram mais tarde. O único a chegar cedo foi Patrício, veio antes dos tios.

– Vim antes pra ajudar a preparar o fogo e o churrasco – dizia, apertando a mão do dono da casa e de seus filhos.

As três Marias aproximaram-se. Flor parecia encabulada, Conceição não cabia em si de contentamento, e Angélica, curiosa.

– Esta deve ser a Maria Angélica! – adiantou-se o sobrinho dos Silveira, indo em direção à moça. – Sou Patrício, sobrinho do seu Silveira. Muito gosto em conhecer essa flor – falou com um olhar que brilhava mais do que punhal feito de aço inoxidável. 

– Essa é Maria Angélica, nossa caçula. Maria Flor é a mais velha e Maria Conceição, a do meio – arrematou, secamente, seu Agenor como a deixar claro qual era a hierarquia. 

Maria Flor é quem está em idade de se casar. Será que o visitante não percebia?
– Se esse sujeitinho mostrar as garras pro lado da Angélica também, quebro ele de pau – falava Anacleto para o irmão.

– Pode contar comigo! Tô, desde ontem, querendo dar uns sopapos nesse filho da mãe, metido a conquistador. Ele vai aprender a respeitar a família dos outros.

Patrício, que não era nem um pouquinho bobo, entendeu o recado dado por Agenor quando falou qual das filhas era a mais velha.

– O senhor tem três Marias, todas igualmente belas, seu Agenor! Pretendentes não hão de faltar. Se prepare! – disse, desviando o olhar que dirigia à filha caçula e fixando em Flor. 

Tinha entendido: somente a mais velha estava pronta para o casamento. Precisava agir com cautela ou seus planos iam por água abaixo.

O domingo seguiu tranquilo, menos animado do que o sábado, todos precisavam maneirar, pois o dia seguinte seria de trabalho puxado. Limitavam-se a conversas em pequenos grupos. As irmãs circulavam entre as pessoas, procurando conversar com todos. Patrício não as perdia de vista e também não era esquecido por Agenor e os filhos. E o dia terminou sem incidentes.


2

Quinze dias depois, à saída da pequena igreja, Agenor e a família foram interpelados por Silveira e a esposa.

– Seu Agenor! Eu ia mesmo até a sua casa para fazer um convite. No mês que vem, eu e a mulher vamos fazer bodas de ouro. Os meus filhos e a parentada vem toda. Dois dias de festa e vocês, desde já, estão convidados.

– Nós vamos. A família toda.

Flor e Conceição tentavam esconder o contentamento, nem olhavam uma para a outra, temerosas de que a satisfação estivesse muito estampada no rosto de cada uma. Afinal, a oportunidade de rever Patrício. Desde a festa de Maria Flor, as irmãs se interrogavam mutuamente e desmentiam, uma para a outra, o interesse pelo rapaz. No peito de cada uma, o coração pulava ansioso e os olhos brilhavam.

No dia das bodas do casal Silveira, quem recebeu, na entrada do portão, Agenor e família, foi o sobrinho. Arrastou-os para apresentá-los aos pais, antes mesmo que cumprimentassem os donos da casa.

– Sujeito abusado! Cadê a educação? Onde já se viu não cumprimentar, antes, os donos da casa? – resmungava Agenor para Constância, que assentia com a cabeça. 

Os irmãos iam colados às irmãs, que pareciam estar gostando muito daquela situação.

– Pai, mãe, quero apresentar Maria Flor e Maria Conceição – falava afobado, esquecido dos pais e irmãos das moças. Percebendo o olhar de reprovação da mãe, tentou consertar. – Esse é o senhor Agenor e dona Constância, pais de Flor e Conceição. E estes são os irmãos – sequer se recordava do nome de Teobaldo e Anacleto, cujos olhos chispavam de fúria.

Jonas Silveira, percebendo o clima que se criara, tentava cativar pelo elogio. Patrício tinha a quem puxar.

– Que moças bonitas! Flor, esse nome em nenhuma outra moça soaria tão bem. Dizer que lhe cai como uma luva não lhe faria jus, cai-lhe como uma pétala – falava, enquanto estendia a mão para dona Constância e seu Agenor. – Senhora, meu filho não exagerou quando falou da beleza de suas filhas.
Anacleto e Teobaldo já haviam se afastado e iam em direção ao casal, dono da casa. Não estavam dispostos a encompridar conversa com o metidinho a galã; tampouco, a ouvir o seu pai, homem de fala ensaiada.

No final do dia, Jonas Silveira aproximou-se de Agenor e segredou-lhe ao ouvido:

– Acho que meu filho tá caidinho de amor pela vossa bela Flor.

Agenor fechou a cara. Não lhe agradava aquele sujeito rodeando a filha. Queria que ela se casasse sim, mas alguma coisa lhe dizia que devia manter Patrício longe de Flor. A moça, por sua vez, não cabia em si de contentamento com aquele zangão a tiracolo o tempo todo. Maria Conceição não disfarçava a desolação.

– Mulher, melhor a gente ir-se embora. Não tô gostando nada do que tô vendo.

– Vamos sim, pai. Estou com muita dor de cabeça. Acho que é gripe chegando – apressou-se em assentir, a decepcionada Conceição, que esperava ser o alvo da atenção de Patrício, pois ele lhe havia dito, em casa de seu pai, que ia contar os minutos para revê-la e, agora, estava todo derretido para o lado da irmã. 
Estava furiosa. Não suportava o olhar de felicidade e triunfo de Flor. 


3

Duas semanas depois, sábado à tarde, entrava na propriedade de Agenor um carro de luxo e, dele, desciam Jonas Silveira e o filho Patrício para espanto e desagrado da família, exceto de Flor, que correu para o quarto para se pôr apresentável.

– O senhor me desculpe vir assim, sem avisar. Mas meu filho insistiu muito – desculpava-se Jonas, estendendo a mão.
– O homem é mais falso que nota de duzentos – dizia Teobaldo ao irmão. – Acho que não vamos gostar do que esse sujeito veio falar.

Sete meses depois, casava-se Maria Flor, contrariando a vontade da família. Estava radiante! Haveriam de ser felizes para sempre! 
Maria Conceição mal disfarçava o desgosto. Desgosto bem diferente daquele sentido pelos pais e irmãos. Era desgosto de mulher preterida. Sentimento que cresceu como ferida que não tem cura, que vai cavando buraco na carne. Por conta dessa consumição, emagrecera a olhos vistos, tomada de amargura e ódio. Maria Angélica foi a única que não se manifestou, nem a favor nem contra o casamento da irmã.

“Queria que os dois morressem! Não! Queria que Flor morresse! Seca!” – resmungava toda vez que ouvia o riso abafado da irmã no quarto ao lado.

Patrício parava muito pouco em casa, saía na segunda-feira, logo após o almoço, e só retornava na sexta-feira, à tardinha. A mulher reclamava. Mas o marido tinha razão para se ausentar.

– Minha Flor, tenho que ir pro cartório. Você não quer que eu viva às custas do teu pai, não é?

– Você pode trabalhar aqui, com o pai e meus irmãos. Até agora não sei do teu salário. Você não traz nenhum dinheiro.

– Tenho de fazer um pé de meia, Flor. Quem sabe, dia desses, resolvo largar o cartório – dizia para acalmar a mulher, que ficava cada vez mais impaciente com a ausência do marido. E lá se ia mais de meio ano! 

– Hoje vou com você! Está na hora de saber como o meu marido tá vivendo, já que passa a semana inteira em outra cidade – dizia Maria Flor, enciumada, em tom que não permitia réplica.

– Também acho que você deve ir – disse o pai. – Não é bom a mulher passar tanto tempo longe do marido.

– Meu amor, moro num quartinho. Não tem como te acomodar! Nem cama de casal há! – tentava dissuadir a esposa.

– Vou assim mesmo! – disse em tom firme.

– Onde já se viu a mulher ir atrás do marido, que vai trabalhar! Pai, você não pode concordar com uma coisa dessas! – gritava Maria Conceição, com os olhos soltando faíscas. 

– Por que não? Acho que deve se interessar pela vida do marido! Quem sabe não venha um neto depois disso. E ,você, trate de se preocupar contigo e não com o que tua irmã vai fazer! – falou categórico o pai.

Os irmãos se entreolharam intrigados. Conceição correu para o quarto e, de lá, só saiu quando o pai ordenou que ajudasse a mãe com os afazeres. No rosto, expressão pensativa, lábios contraídos.

Nos últimos dois meses, Maria Conceição perdera o ar desolado e raivoso que nutria desde o casamento da irmã mais velha.

– Maria Conceição anda estranha desde o dia que foi pra cidade às escondidas. Voltou diferente. Tá alegre, cantarolando, nem olha mais torto pra Flor! – comentava Anacleto com o irmão. – E essa novidade de ir pra cidade uma vez por semana pra fazer curso?

– A mãe gostou da ideia, assim não se perde mais frutas e legumes. Ela tá aprendendo a fazer doces e conservas. As mulheres dos empregados vão ter uma renda a mais com a produção e não teremos desperdício. Acho que isso é uma coisa boa – dizia Teobaldo.

– Sei não. Até agora não vi ensinando nada! Por mim, ia conferir esse tal de curso – completava Anacleto, olhando desconfiado para a irmã.

– Deixa disso! A mana tava precisando de outra ocupação. Ficar presa aqui, dia após dia, não é fácil! E depois, só dois dias por semana. Quem sabe arranja um namorado e se casa? 

– O pai não parece muito satisfeito. Me disse que, assim que terminar a colheita, vai pra cidade averiguar.

– Vocês são muito desconfiados. Que mal pode haver? – Anacleto finalizava a conversa, afastando-se em direção ao banheiro. Estava cansado e um bom banho era do que precisava.

Logo depois do almoço, partiam Maria Flor e o marido sob o olhar furioso de Conceição.
“Me aguarde, Maria Flor! Vou pôr tudo em pratos limpos, amanhã mesmo!” – pensava Maria Conceição.

4


– Não estou entendo por que você disse que morava em um quartinho, que nem uma cama de casal tinha. Isso não é um quartinho de pensão. É um apartamento, pequeno, mas longe de ser um quartinho de pensão.

– Mudei pra cá na semana passada. Queria te trazer e fazer uma surpresa, mas você estragou tudo – disse Patrício sem conseguir esconder a irritação. – Vamos dormir que preciso acordar cedo.

No dia seguinte, à mesa, no café da manhã:

– Vou pro cartório, Não me demoro. Resolvo as coisas e tiro o resto do dia de folga para te levar conhecer a cidade. Enquanto isso, vá se ajeitando.

– Não posso ir com você? Assim fico conhecendo o lugar em que você trabalha e os seus amigos.

– Era só o que faltava! Querer ir ao meu local de trabalho! Já disse que não vou demorar! – retrucou e saiu batendo a porta, furioso.

“Por que ficou tão brabo? Parece que tá escondendo alguma coisa” – pensou Flor, já de posse de sua bolsa e saindo ao encalço do marido. Manteve uma distância prudente, apesar de julgar que o marido não pensaria que ela fosse capaz de segui-lo. Dois quarteirões depois, viu-o parar em um telefone público. Falou rapidamente, em seguida, dirigiu-se a uma pequena praça que havia do outro lado da rua. E, a julgar pela impaciência com que olhava o relógio, esperava por alguém. Vinte minutos após, uma mulher, a passos rápidos, aproximava-se do marido. A distância não lhe permitia vislumbrar com clareza, mas aquele perfil parecia-lhe conhecido. Beijaram-se rapidamente. O chão parecia sumir sob os pés de Maria Flor que, paralisada pela surpresa, no momento em que a mulher olhava ao redor, viu tratar-se de Maria Angélica. Estava vendo coisa.

– Não pode ser! Estou delirando!

Uma freada brusca fez com que Patrício e Maria Angélica se virassem. Lá estava Flor em frente a um carro.

– Sua doida! Quer morrer? – esbravejava o motorista. 

– Essa não! E agora, Patrício, o que vamos fazer?

– Vá pra casa. Vou resolver.

– Por onde você andou? – gritava furioso, sacudindo a mulher pelos braços, à porta do pequeno edifício onde morava. – Não te disse pra me esperar? Me fazer andar pela cidade feito bobo! O que você está pensando? Nem bem chegou e já está me dando trabalho!

– Eu vi você na praça – balbuciou.

– Viu o quê, sua doida?

– Você e Maria Angélica – a voz era um fiapo quase inaudível. 

Com um safanão, desvencilhou-se do marido e correu em direção ao apartamento, desnorteada, sem ouvir os guinchos de pneus e sons de buzina. 

– O que aconteceu, Flor?

Estava tão transtornada que sequer se deu conta da presença de Maria Conceição, sentada no sofá da sala, como se estivesse a esperá-los. Atrás entrou Patrício.

– O que está acontecendo, Patrício?

Patrício, com ar apalermado, olhava para Maria Conceição. Demorou alguns segundos para recuperar o sangue frio. Um brilho passou por seus olhos. Jogar com a natureza passional daquela mulher poderia ser a solução.

– Flor sabe a nosso respeito! Você sabe que tua família não vai permitir que fiquemos juntos. Vão nos separar, meu amor! 

– Eu não vou suportar ficar sem você! – soluçava Conceição, agarrada em Patrício.

Patrício afastou, suavemente, a moça e sentou-se no sofá com a cabeça enterrada entre as mãos, feito a imagem do desespero.

– Eu não sei o que fazer. Também não posso te perder. Cometi o erro de casar com Flor e se eu deixá-la, perco você. O que vou fazer pra não te perder? O que, meu Deus? O quê?

– Calma, meu amor. Vamos arranjar uma saída.

– Não temos saída, Conceição! Se eu abandonar Flor pra me casar com você, teus irmãos me matam. Nunca permitirão! Você sabe que eles me odeiam.

Flor permanecia no quarto. Enquanto na sala, Patrício e Conceição buscavam uma saída.

– Vamos nos livrar de Flor, Patrício!

– Como assim? – mal conseguia disfarçar a satisfação, tudo estava dando certo. 

– Eu odeio Flor! – murmurava Conceição entre dentes. – Não vou deixar que tire você novamente. Ela não vai me impedir de ser feliz.

– Não estou te entendendo, Conceição. O que você está planejando?

– Vamos matar Maria Flor! 

– Não! Ela é tua irmã!

– Eu a odeio com toda a força do meu coração. Eu quero que ela morra! Essa maldita! Quanto sofri ouvindo as risadas dela, no quarto, com você!

– Eu não posso fazer isso, amor!

– Pode sim! E vai dar certo! Basta que faça o que digo. Ninguém saberá! E poderemos ficar juntos! Pra sempre, sem Flor em nosso caminho. Chega de encontros às escondidas. É minha vez de ser feliz! – falava com firmeza.

No meio da manhã do dia seguinte, seu Agenor e a família receberam a notícia, Flor estava em coma, convulsionara várias vezes e dera entrada no pequeno hospital inconsciente. Antes que o dia acabasse, morreu, de parada cardíaca. 

 “Como era possível? A filha nunca tivera qualquer problema de saúde!” – perguntava-se o pai.

Patrício estava inconsolável! Os cunhados chegaram a sentir pena, tão grande era a dor daquele homem. Parecia ser maior do que a dor dos pais e irmãos. Não saiu de perto do caixão um minuto!

– Vá descansar um pouco, Patrício.

– Não. Preciso ficar perto da minha Flor até o último segundo – dizia, com a mão sobre o peito da mulher, morta, a cada um que se aproximava.

A súbita morte de Flor abalou a todos. Maria Conceição e Maria Angélica mantinham-se longe do caixão da irmã, até mesmo na hora do enterro. Nenhuma das duas pronunciou uma palavra sequer, cada qual imersa em pensamentos.

Dois meses após, Patrício ficava vinte dias ou mais sem aparecer na fazenda.

– Deve ser tristeza de vir e não encontrar Maria Flor – dizia dona Constância diante do sumiço do genro.

– Sei não... Acho estranho – falava Anacleto, descrente.

Quando foi um belo dia, Maria Conceição, que fora à cidade para o tal curso, não voltou para casa. Preocupados, o pai e os irmãos foram procurá-la. Resolveram ir ao apartamento de Patrício, pois ele conhecia o lugar e poderia ajudá-los. 

– O que houve? – perguntou Patrício, lívido.  – O que estão fazendo aqui?

– Quem é, meu amor? – perguntava uma voz feminina, vinda de um dos cômodos.

– Maria Conceição? O que ela está fazendo aqui, seu canalha! – gritou Teobaldo, segurando o cunhado pela garganta, no momento em que a irmã chegava à sala.

– Pare! – gritou a moça. – Eu e Patrício nos amamos e vamos casar. Não adianta armar confusão! Daqui, eu só saio morta! E agora, vão embora e nos deixem em paz!

Anacleto conseguiu acertar um murro em Patrício, que caiu. Conceição investiu contra o irmão e foi segurada pelo pai.

– Vamos embora daqui – disse Teobaldo. – Tomara que você não se arrependa, minha irmã!

 –Você não é mais minha filha! Não espere um tostão de herança!

Saíram os três sem conseguir articular uma palavra. Por essa não esperavam!

– Sua imbecil! Você estragou tudo! Te disse pra voltar pra casa! Pôs tudo a perder!  – gritava, enlouquecido, o viúvo.

– Como estraguei tudo? Você disse que íamos nos casar, Patrício! Não estou entendendo! O que você está dizendo?

– Tanto esforço jogado no lixo! Do que vamos viver, sua idiota!
Conceição tinha, no rosto, uma expressão apalermada, não entendia a atitude de Patrício.

– Tenho que pensar num jeito de amolecer o velho – murmurava entre dentes.


5


– Perdoa a nossa Conceição – pedia Constância. – Não quero ficar sem outra filha. É muita tristeza.

Agenor nada dizia, cabisbaixo, sofria a mesma dor.

Quatro meses depois, quando a tarde caía, dona Constância escutou alguém batendo palmas. Saiu à porta intrigada. Quem poderia ser? Não era hábito das pessoas dali não estarem em suas propriedades envolvidas em afazeres de final de dia. Ela sabia, por experiência, que havia muito a ser feito antes que a noite chegasse. 

– Maria Conceição, minha filha! O que aconteceu? Você está bem? Entre! Entre!

– Mãe, que saudade! – disse a moça, abraçando a mãe, em prantos.

– Vem, minha filha! Vou fazer um café. Tem aquele bolo de fubá que você tanto gosta!

– Melhor esperar que o pai chegue, aqui na varanda. Ele pode não querer que eu entre.

– Que bobagem, minha filha! O teu pai que não se atreva a te expulsar!

– Prefiro esperar na varanda. Quero conversar com vocês e com meus irmãos. Depois, a gente vê como fica. Me conta, mãe, como estão todos? Ainda muito sentidos comigo?

– O teu pai sofre muito, Conceição. Os teus irmãos também, mas ninguém fala nada. Acho que preferem não cutucar a ferida. Você entende, não é, minha filha?

– Eu amo Patrício demais. Amo mais do que a mim mesma. Não consegui evitar o sentimento. Foi mais forte do que eu. Rezo, todos os dias, pedindo a Deus que vocês me perdoem. 

– Eu te perdoei. Acho que teu pai e teus irmãos também. Ainda estão muito magoados, mas não têm raiva de ti. Vai passar! O tempo cura tudo!

– Deus queira, minha mãe! É muito triste ficar longe...

Não demorou muito, mãe e filha viram chegando os três homens. Maria Conceição retesou-se na cadeira. Não sabia como seria recebida por eles. Se o pai insistisse em não recebê-la, estaria em maus lençóis, pois não teria como retornar à cidade. Mas Patrício insistira tanto para que chegasse naquele horário!

 – Teu pai não vai ter coragem de te deixar ao relento – dissera.

Os três homens desviaram da entrada principal e se dirigiram para os fundos da casa, sem que um erguesse a cabeça. A mãe, apressada, foi atrás dos homens. Estava aflita. Não sabia como receberiam Maria Conceição.

– O que Conceição veio fazer aqui, mãe? – perguntou Anacleto.

– Não sei. Quer conversar com a família. Por favor, Agenor, não mande nossa filha embora – disse e voltou, rapidamente, à varanda, onde a filha esperava, torcendo as mãos, visivelmente nervosa.

Agenor estava de cabeça baixa e assim ficou, sem pronunciar uma palavra sequer. 

 –Vem, filha, vamos fazer a janta.

Todos estavam silenciosos à mesa, cabeça baixa. Só se ouvia, da cozinha, o cacarejo das galinhas à procura de pouso.

– Pai, mãe, estou grávida. Quero pedir perdão pelo desgosto que causei. O bebê não tem culpa de nada. Por favor, deixem que ele conheça a alegria de conviver com os avós e tios – tudo foi dito de um fôlego só, depois o silêncio, que parecia não ter fim.

Os olhos dos pais marejados e, no rosto dos irmãos, o espanto. A fala em todos engasgara. A mãe foi a primeira a sair do mutismo:

– Um neto! Que alegria, minha filha! Uma criança para alegrar a nossa casa – dizia dona Constância, buscando apoio no marido e nos filhos.
Agenor levantou-se da mesa, olhos marejados. Um neto! Quanto sonhara com isso!

– Amanhã conversamos, Conceição – disse o pai, indo em direção ao quarto, no que foi seguido pelos dois filhos.

– Viu, minha filha, teu pai ficou emocionado. Agora vamos dormir. Amanhã tudo se resolverá e você poderá voltar a esta casa, que é tua também, na hora que quiser. Um neto!  – abraçou a filha.

– Preciso avisar meu marido que estou bem e que passo a noite aqui.

– Sim, avise. Vou me deitar. O teu quarto está arrumado. 

– Eu sabia que tua família não te rejeitaria com um filho na barriga. Quero ver se teu pai vai ter a coragem de te deserdar! – falava Patrício, triunfante, à mulher no telefone. – Viu como deu certo? Agora nossa felicidade será completa!

– A porta de nossa casa tá aberta pra você e meu neto. Quanto aquele sujeito, é melhor que fique longe. Anacleto vai te levar – falava Agenor, despedindo-se da filha.

Tudo saíra conforme o planejado, a herança estava garantida.

– E teus irmãos, como reagiram?

– Não falaram comigo. Anacleto não disse nenhuma palavra durante o trajeto. Mas eu tenho um plano pra dobrar os dois.


6


Apesar de, duas ou três vezes por semana, Patrício chegar tarde em casa por conta do excesso de trabalho no cartório, a vida seguia mansa. A cada quinze dias, Conceição visitava a família. Era importante que acompanhassem a gravidez para fortalecer os laços, principalmente, com o bebê que ia nascer.

Certa tarde, Maria Conceição foi acordada da soneca, pós-almoço, pelo interfone, que tocava. Era o porteiro.

– Dona Maria, tem um moço aqui com uma encomenda.

– Deixe subir.

Era uma pequena caixa, envolta em papel de presente. Abriu-a. O olhar de Maria Conceição endureceu.

À mesa, na hora do jantar, Patrício observou o olhar distraído da mulher que, com o garfo, revirava a comida no prato sem que nada fosse levado à boca.

– O que foi, Conceição? Você está bem?

– Estou, meu amor. Um pouco preocupada. Nosso menino está chegando.

– Teus irmãos continuam arredios. Qual é o teu plano?

– Quando nosso filho nascer, meu pai e minha mãe me visitarão, certamente. Nem que seja só na maternidade. Lá, direi que nosso menino se chamará Anacleto e que Teobaldo será o padrinho – o plano foi confessado com indiferença.

– Excelente! Você é um gênio, minha querida.

Conceição sorriu.

– Nada nem ninguém vai me atrapalhar. Meus planos só serão mudados se eu permitir – completou, mirando, com determinação, o marido nos olhos.

10 de agosto. Nascia o pequeno Anacleto.

– Mãe, pai, olhem como é lindo o neto de vocês! Meus irmãos não vieram. Não conseguem me perdoar – dizia à mamãe, entristecida.

– Não se preocupe, minha filha. Faz mal pro leite. Eles vão se derreter com nosso Anacleto – Constância tentava acalmá-la.

Patrício se mantinha afastado. Não seria bom forçar uma aproximação. Ainda mais com a mulher tratando-o muitas vezes, nos últimos dias, com frieza. O bebê faria as coisas acontecerem.


7


– Teobaldo, vim para te fazer um convite.

Teobaldo dirigiu, à irmã, um olhar de pouco interesse. Já sabia da intenção dela. 

– Não se pode recusar convite pra batizar. Quando o batizado vai acontecer? E a madrinha?

– Vou convidar Angélica. Assim fica em família. O pequeno vai crescer convivendo com os padrinhos também. O que você acha?

– Pra mim, pode ser – respondeu e retirou-se. 

O instinto lhe dizia que nem tudo o que, ali, brilhava, era ouro. Havia algo estranho, ainda indecifrável, na conversa e movimentos da irmã.

Marcada a data do batizado, a cerimônia e a festa aconteceriam na fazenda.

– Faço questão de que meu neto seja batizado aqui, na fazenda, que é dele também – dizia o avô, cheio de orgulho, sem esconder o ar de felicidade.

Anacleto aproximou-se do sobrinho, que estava no colo da avó, tomou-o nos braços e, carinhosamente, beijou-lhe a testa.

– Você é bem-vindo, garoto! E tua mãe, também.

A conversa aconteceu quando Cletinho estava com dois meses de vida. A paz estava selada! Logo, Teobaldo também haveria de esquecer as mágoas.

No dia seguinte, à tarde, Patrício entrava nas terras do sogro pela primeira vez desde o incidente em seu apartamento. Não foi convidado a entrar, mas também não foi expulso. Não tinha pressa, ia comendo pelas bordas, sem correr o risco de se queimar.

– Então, Conceição. Como teu irmão reagiu?

– Está cauteloso. Mas vai se render, meu amor. O tempo faz milagres. Logo vai estar todo derretido com o afilhado no colo.

– E você ainda tinha dúvida de que um bebê faria com que teu pai esquecesse o propósito de te deserdar. Viu, minha querida! Teu marido é cheio de grandes ideias! E você soube dar o retoque final no plano. Convidar Angélica pra ser a madrinha foi sensacional!

– É mesmo, Patrício! Não tenho medo de tomar atitudes pra ter o que quero! Não hesito em tirar os obstáculos do caminho. Flor que o diga! Ela me tirou você e me vinguei por não ter sido eu a usar aquele vestido de noiva. O gosto da vingança é, incrivelmente, doce, meu querido! Mais doce do que o gosto do amor! 
O entusiasmado marido sentiu desconforto com o tom das palavras da mulher, aquilo parecia ter sido dito para ele. E o olhar de Conceição? Gelado! Mas devia estar vendo coisas que não existiam. Conceição era meio esquisita, no entanto, apesar da frieza, com que o tratava em alguns momentos, era louca de amor! Capaz de tudo por ele!

– Minha querida! O batizado na fazenda... O que eu precisava para voltar a entrar naquela casa. Todos vão ver o quanto sou apaixonado por você! Teu pai vai reconhecer que errou, quando me forçou a casar com Flor porque era a mais velha. Era você que eu amava. Casei com Flor pra não ficar longe de você.

– Claro que você é apaixonado por mim! Eu tenho certeza! Que mais eles poderiam querer pra mim? Tenho um marido amoroso e, acima de tudo, fiel! 

– Tem, sim! E agora, também sou um pai zeloso.

Um mês depois, o batizado aconteceu. Todos estavam felizes, inclusive os padrinhos. Angélica não largava o sobrinho afilhado. Seu Agenor até pediu ao genro que recebesse os convidados! Só dona Constância parecia melancólica, devia se lembrar da filha morta e pensar que aquele batizado seria ainda mais feliz se o filho fosse da sua Maria Flor. Maria Conceição tentava distraí-la, puxando conversa.

– Estou muito preocupada com Patrício, mamãe. Tem passado mal. Esta semana, fui chamada no cartório porque ele desmaiou. Um amigo dele me falou que tem visto meu marido ir ao banheiro para vomitar.

– Não deve ser nada além de muito trabalho, filha. 

– Não sei, não. Todo dia se queixa de dor forte, não tem comido direito, vomita com frequência. Já disse pra consultar um médico, mas ele diz que não pode faltar no serviço. 

– Teu pai me pediu pra receber o pessoal que ia chegando. Logo, logo, vai me chamar de meu genro e me convidar para uma cerveja – comentava o vivaldino, esfregando o estômago, no caminho de volta para casa. – Não dou três meses para que ele nos convide a morar na fazenda. Não vai querer ficar longe do moleque. Três meses! E vamos estar morando lá! Quer apostar?

– Três meses é um prazo bom para se corrigir o que precisa. A paciência é amiga da perfeição. Tudo precisa ser bem planejado para que nada dê errado. Três meses, Patrício! – assentiu Conceição.

– Viu só! Caíram como mosca no mel. Eu sou um vencedor! – gabava-se.

– É um vencedor, sim! Mas o jogo ainda não acabou. Tem muita água pra correr por debaixo da ponte, meu esperto marido!

– Como assim? Você está me escondendo alguma coisa? Nestes últimos meses, tenho te achado um pouco estranha. Às vezes, você me trata de um jeito que me assusta. Parece que está com raiva. O que está acontecendo, meu amor?

– Não está acontecendo nada. Este bebê me consome. Nem dormi uma boa noite. Estou cabeceando. Me desculpe, meu amor, se tenho descuidado de ti. Logo, tudo acaba.

Um mês depois dessa conversa, Maria Conceição preparava a mudança para a fazenda. “Quero meu neto aqui! Tá resolvido! Vocês vêm morar na fazenda. Meu neto vai aprender a gostar dessa vida” – dissera-lhe o pai. Patrício exultava! Teria que continuar na cidade por causa do trabalho, mas esse era um detalhe sem importância. Iria para junto da mulher e do filho todos os finais de semana. 

“Em três dias, Conceição vai pra fazenda, e eu fico livre dela e desse monstrengo chorão, ainda de quebra, tenho o futuro garantido” – pensava.

– Conceição, prepara só uma salada pro jantar. Essa dor de estômago não me larga.

– São as porcarias que você come no escritório nas noites em que fica trabalhando. Vai ver já está com uma baita úlcera! Vou fazer uma salada verde e, antes de dormir, você toma um chá de raiz amarga. Vai melhorar.


8


– Conceição, Conceição! Me ajude! Me leva pro hospital. Onde você está, mulher?

– Já vou, meu amor. Preciso trocar a fralda do Cletinho.

Maria Conceição, há quase uma hora, do quarto do bebê, assistia à agonia do marido.“Pobre, Patrício! Quantas vezes te falei que essa tua mania de comer coisas picantes, apimentadas ia te matar?” – pensava.

– Conceição! Conceição! Socorro!

– Meu amor! O que você está sentindo? – perguntava da porta do quarto sem, no entanto, se aproximar.

– Um médico. Chama um médico. Água! – mal conseguia articular as palavras.

– Água? Vou buscar, mas antes, quero que você veja o presente que recebi pouco antes do Anacleto nascer – falou, estendendo a caixinha que recebera. – Acho que você não vai conseguir abrir. Abro pra você, meu amor. E ler, será que você consegue? Hum! Acho que não.

Patrício, olhos esbugalhados, pupilas dilatadas, suplicava:

– Rápido! Um médico.

– Calma, querido! Você não vai querer estragar esse momento – retirou da caixa um bilhete e leu: “Teu marido anda fazendo muitas horas extras. Abra os olhos.” – Querido, tenho me divertido com tudo. Angélica te chutando e você enlouquecido de paixão e ciúme! Rapaz vigoroso o teu concorrente. Ah! É danada essa minha irmã! Flor descobriu sobre você e Angélica, não é? Você me usou para fazer o serviço sujo. Narciso! Que lindas flores. Lembra? Sabe a salada de folhas verdes que você comeu? E o chá de raiz amarga depois do jantar? Belladona! Que planta espetacular! Deu trabalho para conseguir. Mas você merece algo mais sofisticado! Sabe que teus amigos do cartório estão preocupados com tua saúde? Comentaram comigo que você tem passado mal durante o trabalho. Sabe de quem é a culpa? Daqueles sanduíches naturais que eu preparava para você levar.  Você não devia fazer tantas horas extras! Acabou com tua saúde.

Na mesma noite, nem bem deu entrada no pronto socorro, morreu Patrício. Era de partir o coração de ver o desespero de Conceição, que se jogava no chão e arrancava os cabelos. Sequer recebera atendimento. O plantonista havia faltado. A viúva jurava que ia colocar o médico na cadeia, pois era o culpado pela morte do marido.

No dia do enterro, Maria Angélica se aproximou e abraçou-a, tentando confortá-la. Conceição se jogou nos braços da irmã, olhando, por cima do ombro, a causa da discórdia entre Patrício e Angélica.

“É um belo homem! Visto assim, de perto, é ainda mais interessante. Valerá a pena!” – pensou Conceição, fixando o olhar brilhante de cobiça no rapaz. 


Marias. In: Elas contam. Contos e crônicas. 1ed. Joinville: Sucesso Pocket, 2016.




Hortência - (Nilza Helena Silva Vilhena)

Hortência chegara sorrateira à porta do banheiro. Em silêncio, acompanhava os movimentos do avô com seus olhos escuros arregalados. Em uma das mãos, ele tinha uma pequena vasilha, parecida com a metade de um coco, como o que a bisa ralou para fazer a sobremesa. Na outra, segurava um pincel de cabo curto e cerdas volumosas. Com movimentos rápidos, começou a mexer com o pincel em alguma coisa que tinha dentro da vasilha e, aos poucos, uma espuma branca e espessa se formava. Hortência se lembrou da cobertura das bolachas de Natal que tia Clara fazia e de como era gostoso pintá-las e lamber os dedos lambuzados. Com muito jeito, usando aquele pincel nanico, o avô pintava o rosto com aquela espuma. Mas não era o rosto todo, usava o nariz como medida, descendo até a curva do queixo, terminando antes de chegar a sua garganta. Percebendo-se observado, sorri para a neta e pinta-lhe o nariz com a espuma. Ela passa a mão rápida e faz cara de zanga, colocando as mãozinhas na cintura. Os dois riem. Ele se volta para o espelho e observa seu rosto marcado, os cabelos raros e brancos; respirando fundo, pega outro apetrecho. Hortência arregala ainda mais os olhos para entender o que está acontecendo.
O avô pegou um tubo de metal do tamanho de seu giz de cera, não dos inteiros, mas como o verde que Mario derrubou e quebrou um pedaço. Na ponta do tubo tem uma espécie de caixinha chata. Espantada, vê o avô rodar a ponta do tubo e a caixinha se abrir. Dali, retira uma coisa preta, ele faz tudo com muito cuidado. De um pacotinho, tira outra coisinha preta daquelas e a coloca no lugar da anterior. Embrulha a primeira e coloca em uma latinha bem no alto de seu armário de banheiro. Olha para a neta e pergunta:

– Sabes o que é isso? – ela balança rápida e negativamente a cabecinha. – É uma gilete – explica. – Ela corta como uma faca bem afiada. É preciso ter muito cuidado. Por isso, o vovô usa e guarda, é perigoso para adultos e para criancinhas, entendeu? – agora ela assente com a cabeça e seu cenho está fechado, como se realmente entendesse o perigo, e continua a observá-lo.

– O vovô vai fazer a barba. Tirar os pelos do rosto, entendeu? – novamente Hortência concorda em um movimento rápido, sem tirar os olhos dele.

Os movimentos do avô são precisos e ritmados, faz aquilo com muita atenção. Ela pensa que deve ser algo perigoso mesmo. Em seguida, lava o resto da espuma que ficou e seca o rosto com a toalha branca, aquela com suas iniciais bordadas em azul, carinho da vovó para ele. Abaixa-se e pede para que ela passe a mãozinha no rosto recém-barbeado.

– Vôôô, ficou um pouco de braba aqui ó...

Ele ri gostoso do jeitinho de Hortência trocar as letras.

– Não é barba, minha linda. Aqui é o bigode do vovô, este eu só arrumo, não tiro nunca, gosto dele, me deixa mais bonito – toca-lhe o nariz e ambos dão gostosa risada.

Para finalizar, o avô passa uma loção na pele recém-barbeada, aplicando pequenos tapas que deixam a pele avermelhada. Olha para a pequena e lhe estende o frasco para que cheire. A menina dá uma grande cheirada e logo se arrepende.

– Forte – diz ela, esfregando o nariz.

O avô ri. Arruma tudo, confere o resultado no espelho e diz para a pequena:

– Que tal uma limonada? – pega a neta no colo e seguem para o quintal colher limões.

Por que acordou lembrando esse momento? A cena lhe viera à mente como se fosse um filme. Reconhecia que seu avô era o personagem preferido de seus sonhos. Não conheceu seu pai, nunca soube quem foi ou se tinha família. Então, seu avô Pedro sempre foi seu modelo de homem. A primeira vez que viu um dicionário foi nas mãos dele. Ele foi lhe mostrar que seu nome, Pedro, significava pedra ou rocha e que era Aramaico. Ela não perguntou o que era Aramaico, já lhe bastava saber pedra e rocha que conhecia bem. A pesquisa seguinte foi, obviamente, o nome dela: Hortência. O avô enfeitou muito sobre originalidade, honra, bons sentimentos e resistência. Ela se lembrava de que ficou se sentindo muito importante e, só mais tarde, descobriu que as hortênsias eram as flores preferidas de sua avó e ele quis agradá-la, sugerindo à filha que desse esse nome à neta. Eles eram muito amorosos. A mãe de Hortência se chamava Melissa, porque era um aroma que o avô adorava e sua avó quis lhe fazer esse carinho.

– Coisa tão distante – suspirou.

Levantou-se lentamente, as costas lhe doíam, calçou os chinelos e juntou a revista que deixara cair com a chegada do sono. A manchete dizia: uma nova forma de escanhoar. Lembrou-se, então, de ter pensado: de tantos homens que conheceu em seus 80 e tantos anos, quantos falavam “escanhoar”? Curiosa, pegou o dicionário na estante. Olhou para o volume grosso, amarelado e com as costuras já frouxas, difícil esconder que era velho e muito usado...

– Estou cada vez mais parecida contigo, companheiro – riu da própria piada, coisa comum em sua solidão.

Folheou o livro até encontrar: escanhoar. Como pensava, os significados variavam de barbear a raspar os pelos do rosto. Não sabia bem por que, mas não gostava daquela palavra, era estranha a sensação em sua boca quando passava do “cã” para o” nhoar”... Agora, próxima de suas nove décadas, achava tão inútil ter tantas palavras para se dizer a mesma coisa. Omitia de si o fato de já não guardar os significados, sinônimos, origens e tantas coisas que se pode saber das palavras e que, por muitos anos, foram sua grande paixão. Sentada em sua cadeira favorita, olhou fixamente para a capa do dicionário, passou sobre ele a mão cansada e abraçou-o, fechando os olhos. “Escanhoar”... A palavra rodou em sua mente trazendo novamente as lembranças do avô, sempre com a barba “escanhoada” e o bigode fino, sorrindo acima de seus lábios.

(Nilza Helena Silva Vilhena)

Hortência. in: Elas contam. Contos e crônicas. 1ed. Joinville: Sucesso Pocket, 2016.



DA CALMA --Nelson Bortoletto

DA CALMA

Que não se façam versos com sentido,
a poesia não o tem, 
só o pensamento.

Que não se façam amores de momento,
o momento é pouco e fugidio...
e o amor é grande.

Que não ecoem gritos de loucura,
melhor assassinarmos as tristezas;
elas são o mote das agruras.

as palavras verdadeiras vivem presas
porque a mentira é o objetivo da alegria.

Que não se façam sóis todos os dias,
há que haver luas,
que iluminem nostalgias.

-Nelson Bortoletto-