LONJURAS - CONTO / ODENILDE N. MARTINS

                                                                                   
Da primeira vez, veio só, montada a cavalo, calças compridas por de baixo de um vestido de chita de mangas longas, lenço cobrindo os cabelos e, por cima dele, um chapéu de palha, nos pés protegidos por grossas meias, alpargatas. Imediatamente despertou o interesse da curiosa Cacilda que nunca vira uma mulher assim, a cavalo. Tentou ficar por perto, sentada em um degrau da escada de entrada da cozinha para ouvir a conversa, mas foi rechaçada, rapidamente pelo pai com um único olhar. Era o que bastava para que soubesse que devia tomar chá de sumiço porque aquela era uma conversa de gente grande.

A menina afastou-se, mas não muito. Empoleirou-se em um pé de caqui, dali conseguia ver a movimentação na cozinha da casa. O pai, a mãe e a estranha mulher conversaram, tomaram chimarrão por mais ou menos uma hora, depois despediram-se, e a visita montou a cavalo novamente e partiu.

Cacilda desceu da árvore rapidamente e correu para frente da casa na tentativa de ouvir algumas palavras que elucidassem a presença daquela senhora, em vão, ela já se ia, numa marcha mansa. Perguntou para a mãe, assim que o pai se afastou, quem era. A mãe simplesmente respondeu que não era de sua conta que fosse brincar antes que o pai resolvesse dar-lhe um corretivo por ter ficado trepada em uma árvore, tentando ouvir a conversa. Afastou-se sem insistir mais, pois a prudência recomendava que assim o fizesse. 

Uma semana depois, lá estava a mulher novamente, a cavalo. Na garupa, desta vez vinha acompanhada de um rapaz, no lombo da montaria, uma espécie de saco que atravessava a garupeira do animal de um lado a outro. O dono da casa e sua mulher, prontamente, ajudaram-na a apear, e o rapaz tirou o que parecia ser a bagagem. Cacilda observava a uma distância segura para que o pai não percebesse sua presença bisbilhoteira. Cumprimentaram-se com um aperto de mão e entraram. 

Poucos minutos depois, o rapaz montou e partiu, só. A mulher ficara! A garota era pura curiosidade. Subia no pé de caqui quando foi chamada pelo pai. Correu em direção à casa, quem sabe agora ficasse sabendo o que estava acontecendo por ali.

– A dona Maria vai passar uns tempos aqui pra ajudar tua mãe – limitou-se a dizer, sem nenhuma explicação maior e foi para o quarto de onde saiu, pouco tempo depois, para perguntar à esposa por que a filha estava se metendo na conversa dos adultos. Em seguida, pegou o chapéu e saiu.

Cacilda voltou imediatamente, solícita, carregando um feixe de lenha. Sua curiosidade ardia que nem brasa, ainda não entendia a presença da mulher na casa deles. A mãe resolveu esclarecer.

– A dona Maria é a nossa empregada e vai ficar aqui porque logo o neném nasce e alguém precisa me ajudar com ele e com vocês.

A menina exultou! Finalmente ia se livrar dos trabalhinhos domésticos que tanto detestava. Encheu-se de simpatia por aquela mulher, parecia-lhe velha demais para ser empregada. Com a indiscrição própria das crianças, perguntou-lhe quantos anos tinha. O rosto mostrava mais tempo do que realmente vivera, consequência da lida dura na roça, sob sol impiedoso. 

“Vim antes que a criança nasça pra ver se vai dá certo, se me acostumo longe do meu rancho e das minha criação, o vosso pai me pediu como favor – explicou com fala simples de caboclo.

Na mesma semana da chegada de dona Maria, além de detestar a comida da mulher, Cacilda descobriu que a sua rotina de trabalhos domésticos não seria alterada em nada quando a mãe mandou que esfregasse o chão da cozinha.

– Por que a gente tem empregada? 

A resposta veio na forma de um tabefe que era para aprender a respeitar os mais velhos, dissera seu pai. Sendo que desta forma, a vinda da mulher não facilitou em nada a vida da menina. Cacilda gostava dela, mas achava que era a empregada que devia fazer o serviço doméstico, afinal, era paga para isto. No entanto, quando a mãe voltou a cozinhar, lavar e passar, chegou à conclusão que dona Maria seria uma espécie de companhia. Não tinha o menor cabimento, de acordo com seu julgamento, alguém pra fazer companhia se havia ela, os irmãos e o pai.

Em uma conversa entre o pai e a mãe, ouvira que dona Maria era idosa e, por conta disso, o patrão não permitia que esfregasse chão, lavasse as roupas, pois o poço era profundo demais para que ela tivesse condições físicas para encher o tanque. Não passava a ferro porque, ele era militar, ela não sabia engomá-las. Também não cozinhava, o molho e o feijão que fazia eram aguados, o arroz virava uma pasta e batatas, só sabia fazê-las cozidas. 

Não tinha predicativos quanto à culinária e algumas outras coisinhas, mas costurava à mão que era uma beleza. Não se viu mais roupa alguma rasgada, nem mesmo os panos de prato. Tudo era caprichosamente remendado. Até as roupas do bebê, que estava por vir, ela fazia, aproveitando até mesmo mangas de camisas e outras peças fora de uso, cosendo miúdas peças e, de lençóis rasgados, fazia fraldas e paninhos “pra limpá a boca do nenê quando regurgitá” – explicava, responde aos olhares curiosos que Cacilda lhe lançava. 

Quando a criança nasceu, recebeu todos os cuidados de dona Maria para que Alice pudesse descansar, pois, naquele tempo, o período puerperal, ou resguardo, era visto com bastante exagero. A mulher ficava quase que os quarenta dias de cama, não podia fazer esforço físico, “tinha que dá tempo pra mãe do corpo vortá pro lugá” – explicava a mulher quando se perguntava por que a mãe não podia sair da cama. Nada de lavar os cabelos, pegar vento – podia ter uma recaída - a alimentação restringia-se a canja com pão torrado e muito chá de erva-doce. Quando acabava esse período, a parturiente tinha os cabelos tão ensebados que se neles caíssem piolhos escorregariam e não se criariam, sem contar o estado de fraqueza que tomava a mulher. Com Alice, pelo menos, era assim.

Cacilda ficou muito assustada no dia que a mãe tentou levantar-se e desmaiou, também pudera, só tomava canja no almoço e, no café da manhã e no jantar, chá com torradas.

– Não sei o que seria de mim sem a senhora aqui, dona Maria – ouviu a mãe dizer.

Depois do susto de ver a mãe desfalecer, apesar de não gostar de continuar fazendo os serviços domésticos, ficou aliviada por aquela senhora estar ali cuidando dela e do bebê. À noite, enquanto o bebê dormia, reuniam-se perto do fogão a lenha e ouviam dona Maria contar das lonjuras de onde viera, falava da roça, das galinhas, do porquinho, da vaquinha leiteira, dos cachorros, denotando preocupação com os animais, dava sinais de que a saudade começava a apertar. Vez por outra falava dos filhos, tinha quatro, mas jamais mencionou o marido. Será que não tinha um? Mas como é que podia ser isso se tinha filhos?

– Quem que tá cuidando dos bichos e da roça? É o marido da senhora? – perguntou a enxerida, sem pudor algum.

O olhar severo do pai deixou claro que a filha tinha passado dos limites, mesmo assim, esperava ter sua curiosidade satisfeita, no entanto, a pergunta foi ignorada.

Poucos dias depois do nascimento do menino, chegou à casa, o filho de dona Maria. O mesmo que a acompanhara, quando veio para ficar. Veio a cavalo, chapéu, botas, apeou e pediu um copo de água, fazia um calor danado.

– Êta calor danado! Tá de rachá a moringa – falou, enxugando o suor da testa com o dorso das mãos.

E rondando, estava a abelhuda, louquinha para desvendar o mistério do marido e, aproveitando que o pai não estava por perto, metia o bedelho na conversa de mãe e filho.

– O meu pai é soldado. O que o teu é?

A pergunta ficou no vazio, não encontrou eco. “Pergunta de criança ninguém responde, quando é pra esfregar chão, lavar louça, tirá água do poço, daí não é criança” – pensou mais zangada do que decepcionada. Deu meia volta e afastou-se, o pai estava chegando.

Logo depois do almoço, o rapaz pegando o chapéu, que ficara pendurado em um prego atrás da porta,foi dizendo que se ia porque tinha bastante chão até vencer as lonjuras.

Lonjuras? Essa informação atiçou ainda mais a curiosidade da menina, como é que pode uma mulher ficar longe de casa, do marido e dos filhos? Resolveu que na semana seguinte, ia se dedicar a descobrir aquele mistério, nem que ficasse sem brincar, só em casa cercando a mulher, ela haveria de escutar tudinho o que fosse dito. Não ia perder conversa nenhuma. Ia investigar a fundo. E assim o fez. Ninguém precisou mandar fazer nada, adiantava-se em cumprir todas as tarefas domésticas e ainda perguntava se tinha mais alguma coisa pra fazer. Tudo em vão.

Seis meses depois, despedia-se dona Maria da família, já cumprira a missão, mãe e filho já não precisavam de seus cuidados. Todos sentiriam falta da companhia tranquila da mulher. Assim como chegou, partiu. O filho chegou, o saco com aberturas laterais sobre o lombo do cavalo, dona Maria na garupa, partiram. Dona Alice,olhos marejados, já era da família.

Dez dias depois, que alegria! Chegava dona Maria, montada em seu cavalo e trazia espigas de milho, mandioca e uma galinha, bem gorda, pronta pro abate. Foi uma festa! Todos estavam felizes. 

– Apeie, mulher de Deus! Com esse calor, vindo daquelas lonjuras no lombo desse cavalo, a senhora deve estar cansada. Vamos tomar um chimarrão na sombra que logo o almoço fica pronto – falava dona Alice, com um braço segurando o bebê e com o outro abraçando a mulher que viera de longe para visitá-los.

O menino, que a senhora ninara por tantas noites, assim que ela sentou-se, passou para seu colo, enquanto o chimarrão corria e a dona da casa tratava de terminar o almoço. Parecia dia de festa e o chimarrão foi substituído por vinho tinto “foi feito por seu Antonio do Palmital, esse é do bom”, falava seu Rosa, animado. Até as crianças beberam no almoço uma espécie de refresco feito com vinho, já que não tinha gasosa. “Não ia fazer mal, o refresco estava bem fraquinho”, dizia a mãe.

Ainda à mesa, o dono da casa desculpando-se, iniciou a conversa, atrevido pelo excesso de bebida.

– A senhora me desculpe, mas vou perguntá, e o seu marido, por anda?

– Meu marido tá morto, seu Rosa. Mataram ele, faz dois anos.

– Como que foi isso?

– É uma coisa que dá vergonha de contá, seu Rosa. Vocês já são da minha família, então eu pensu que num podi de ter segredo. Entonce, vou falá. Quando vim pra casa de unces, era pra vê se me esquecia um pouco da tristeza de tanta desgraça de tê o marido morto e um fio preso.

A dona da casa interveio, para frustração de Cacilda.

– A senhora não precisa contar nada se não quiser. Pra nós, não tem importância o passado. Temos a senhora como pessoa da nossa família. E nossa porta vai sempre ficar aberta pra senhora.

Pronto! Era só o que faltava. A mãe ia acabar com a prosa!

–Vocês me areceberam na confiança. É justo que eu conte. Meu marido sempre foi um homem trabalhador, cumpridor das obrigação. Trababaiava de sol a sol, sem pruiguiça. Gostava de fartura. Dizia que prantava pra ter pra família e pra quem mais precisasse. Quando foi um dia, apareceu no nosso rancho um homem com a muié, tavam desabrigados por conta da enchente e pidiam abrigo, trabaiavam pela comida e pelo pouso. Juvêncio disse que podiam se abrigá. Que nosso rancho era piqueno, mas que se fosse do agrado deles, podiam ficá. Erum trabaiador, num tinham medo da lida. Nossa fia mais veia, Jurema, tamem trabaivava na roça. Saia bem cedo, junto com Juvêncio, Dejarma, Carmelino, o marido de Gertrudes, enquanto que nóis cuidava dos trabaio de casa e da horta. Um dia, Juvêncio desconfio que arguma coisa tava aconteceno. Me falava que num tava gostano dos oioar que via entre nossa fia e o Carmelino. Eu disse pra ele, que ele tava maldando. Foi no mês de junho que a desgraça se deu. Fizemo uma fogeura, bem arta. Cum tudo que uma festa de São Juão pede, batata doce assada, pinhão, pipoca e quentão de pinga, que era pra esquentá. Tinha até sanfona, o Zé do Uruguai veio animá um arasta-pé, que era só famiá. Tava todo mundo alegre que só. Juvêncio que num durmia de toca, sentiu a farta de Jurema e de Carmelino. Num falô nada, saiu na surdina. Foi procurá a fia. Incontrô. Atráis do galinhero, tava os dois, num agaramento só. Dá pra imaginá a desgracera. Tiro o facão da cinta e partiu pra cima do home que carço ele na faca. Nosso fio, Josmà, ouvindo a gritaria, saiu na carera. Viu o pai caído com uma faca encravada no peito e Carmelino cum as mão ensaguentada. Puxô do facão e matô o crimonoso do pai. E foi assim que tudo aconteceu. A desgraça consumiu com nóis tudo. Ficô duas viúva e quatro fio sem pai. Um na cadeia.

– E Jurema?

– Sumiu no mundo. Não tivemô mais notícia dela. Num sei por onde anda a minha fia – respondeu, o olhar turvo de tristeza.

O silêncio tomou conta de todos, rir de quê?O pai e a mãe sentiam o pesar daquela mulher, entendiam o drama que vivia.

No meio da tarde, lá se foi a mulher, de volta para o lugar que já fora um lar. Voltou por várias vezes, sempre do mesmo jeito. E sempre era recebida com muita alegria. Ninguém falava sobre o acontecido, nem mesmo Cacilda, pois pressentia o tamanho da tristeza da mulher.

Tempos depois, estranhando a falta de visita da antiga empregada, seu Rosa tratou de buscar informação, dona Maria morrera. Djalma, o filho mais filho, quando voltara da roça, encontrou-a caída no chão da cozinha, perto do fogão. 

“A tristeza, o desgosto encurtaro a vida da mãe, seu Rosa. Que Deus a tenha.” 

Adulta, Cacilda sentiu as lonjuras daquela mulher. Eram lonjuras na alma.

Odenilde Nogueira Martins
Odenilde N. Martins

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