Características temáticas: oposição sinceridade/ fingimento; sentir/pensar; consciência/inconsciência; solidão interior; angústia existencial; dor de viver e dor de pensar; tentativa de superação através da evocação da infância; refúgio no sonho; intelectualização da emoção; intuição de um destino coletivo e épico para seu país.
Características da linguagem e estilo: grande sensibilidade musical (aliterações, ritmo, verso geralmente curto, predomínio da quadra e da quintilha); adjetivação expressiva; pontuação emotiva; uso frequente de frases nominais; comparações; metáforas originais; antíteses; reaproveitamento de símbolos tradicionais (água, rio, mar ...); linguagem sóbria e límpida.
Tenho tanto sentimento
Tenho tanto sentimento
Que é freqüente persuadir-me
De que sou sentimental,
Mas reconheço, ao medir-me,
Que tudo isso é pensamento,
Que não senti afinal.
Temos, todos que vivemos,
Uma vida que é vivida
E outra vida que é pensada,
E a única vida que temos
É essa que é dividida
Entre a verdadeira e a errada.
Qual porém é a verdadeira
E qual errada, ninguém
Nos saberá explicar;
E vivemos de maneira
Que a vida que a gente tem
É a que tem que pensar.
Fernando PessoaTenho tanto sentimento
Que é freqüente persuadir-me
De que sou sentimental,
Mas reconheço, ao medir-me,
Que tudo isso é pensamento,
Que não senti afinal.
Temos, todos que vivemos,
Uma vida que é vivida
E outra vida que é pensada,
E a única vida que temos
É essa que é dividida
Entre a verdadeira e a errada.
Qual porém é a verdadeira
E qual errada, ninguém
Nos saberá explicar;
E vivemos de maneira
Que a vida que a gente tem
É a que tem que pensar.
POEMAS
O amor quando se revelaO amor, quando se revela,
não se sabe revelar.
Sabe bem olhar p'ra ela,
mas não lhe sabe falar.
Quem quer dizer o que sente
não sabe o que há de dizer.
Fala: parece que mente.
Cala: parece esquecer.
Ah, mas se ela adivinhasse,
se pudesse ouvir o olhar,
e se um olhar lhe bastasse
pra saber que a estão a amar!
Mas quem sente muito, cala;
quem quer dizer quanto sente
fica sem alma nem fala,
fica só, inteiramente!
Mas se isto puder contar-lhe
o que não lhe ouso contar,
já não terei que falar-lhe
porque lhe estou a falar...
Quero ser o teu amor amigo. Nem demais e nem de menos.
Nem tão longe e nem tão perto.
Na medida mais precisa que eu puder.
Mas amar-te sem medida e ficar na tua vida,
Da maneira mais discreta que eu souber.
Sem tirar-te a liberdade, sem jamais te sufocar.
Sem forçar tua vontade.
Sem falar, quando for hora de calar.
E sem calar, quando for hora de falar.
Nem ausente, nem presente por demais.
Simplesmente, calmamente, ser-te paz.
É bonito ser amor amigo, mas confesso é tão difícil aprender!
E por isso eu te suplico paciência.
Vou encher este teu rosto de lembranças,
Dá-me tempo, de acertar nossas distâncias.
NAVEGAR É PRECISO
Navegadores antigos tinham uma frase gloriosa:
"Navegar é preciso; viver não é preciso".
Quero para mim o espírito [d]esta frase,
transformada a forma para a casar como eu sou:
Viver não é necessário; o que é necessário é criar.
Não conto gozar a minha vida; nem em gozá-la penso.
Só quero torná-la grande,
ainda que para isso tenha de ser o meu corpo e a (minha alma) a lenha desse fogo.
Só quero torná-la de toda a humanidade;
ainda que para isso tenha de a perder como minha.
Cada vez mais assim penso.
Cada vez mais ponho da essência anímica do meu sangue
o propósito impessoal de engrandecer a pátria e contribuir
para a evolução da humanidade.
É a forma que em mim tomou o misticismo da nossa RAÇA.
NÃO SEI QUANTAS ALMAS TENHO
Não sei quantas almas tenho
Não sei quantas almas tenho.
Cada momento mudei.
Continuamente me estranho.
Nunca me vi nem acabei.
De tanto ser, só tenho alma.
Quem tem alma não tem calma.
Quem vê é só o que vê,
Quem sente não é quem é,
Atento ao que sou e vejo,
Torno-me eles e não eu.
Cada meu sonho ou desejo
É do que nasce e não meu.
Sou minha própria paisagem;
Assisto à minha passagem,
Diverso, móbil e só,
Não sei sentir-me onde estou.
Por isso, alheio, vou lendo
Como páginas, meu ser.
O que sogue não prevendo,
O que passou a esquecer.
Noto à margem do que li
O que julguei que senti.
Releio e digo: "Fui eu ?"
Deus sabe, porque o escreveu.
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HETERÔNIMOS
ALBERTO CAEIRO: eu não penso, sinto
Características temáticas: o mestre dos "outros"; o poeta dos sentidos - sensacionismo (predomínio das sensações por oposição ao pensamento, poesia do "olhar",poesia das sensações tais como são, interpretação do mundo através dos sentidos); relação de harmonia com a natureza (integração e comunhão com a natureza, atenção à "eterna novidade do mundo", deambulismo bucólico, recusa do pensamento, aceitação do mundo da vida e da morte, poesia do presente e imediato, panteísmo naturalista); mas também o paradoxo entre a "teoria" e a "prática".
Características da linguagem e estilo: verso livre; métrica e estrofes irregulares; pobreza lexical; linguagem simples; adjetivação objetiva; frases simples e predomínio do presente do indicativo (e uso do infinitivo ou do gerúndio); predomínio da coordenação e do polissíndeto; nomes concretos e artigos definidos; mas também o paradoxo: comparações e metáforas, discurso argumentativo, com causais e adversativas.
Sentes, Pensas e Sabes que Pensas e SentesDizes-me: tu és mais alguma cousa
Que uma pedra ou uma planta.
Dizes-me: sentes, pensas e sabes
Que pensas e sentes.
Então as pedras escrevem versos?
Então as plantas têm idéias sobre o mundo?
Sim: há diferença.
Mas não é a diferença que encontras;
Porque o ter consciência não me obriga a ter teorias sobre as cousas:
Só me obriga a ser consciente.
Se sou mais que uma pedra ou uma planta? Não sei.
Sou diferente. Não sei o que é mais ou menos.
Ter consciência é mais que ter cor?
Pode ser e pode não ser.
Sei que é diferente apenas.
Ninguém pode provar que é mais que só diferente.
Sei que a pedra é a real, e que a planta existe.
Sei isto porque elas existem.
Sei isto porque os meus sentidos mo mostram.
Sei que sou real também.
Sei isto porque os meus sentidos mo mostram,
Embora com menos clareza que me mostram a pedra e a planta.
Não sei mais nada.
Sim, escrevo versos, e a pedra não escreve versos.
Sim, faço idéias sobre o mundo, e a planta nenhumas.
Mas é que as pedras não são poetas, são pedras;
E as plantas são plantas só, e não pensadores.
Tanto posso dizer que sou superior a elas por isto,
Como que sou inferior.
Mas não digo isso: digo da pedra, "é uma pedra",
Digo da planta, "é uma planta",
Digo de mim, "sou eu".
E não digo mais nada. Que mais há a dizer?
A Sua Verdadeira RealidadeEntre o que vejo de um campo e o que vejo de outro campo
Passa um momento uma figura de homem.
Os seus passos vão com "ele" na mesma realidade,
Mas eu reparo para ele e para eles, e são duas cousas:
O "homem" vai andando com as suas idéias, falso e estrangeiro,
E os passos vão com o sistema antigo que faz pernas andar.
Olho-o de longe sem opinião nenhuma.
Que perfeito que é nele o que ele é — o seu corpo,
A sua verdadeira realidade que não tem desejos nem esperanças,
Mas músculos e a maneira certa e impessoal de os usar.
Creio que Irei MorrerCreio que irei morrer.
Mas o sentido de morrer não me move,
Lembro-me que morrer não deve ter sentido.
Isto de viver e morrer são classificações como as das plantas.
Que folhas ou que flores têm uma classificação?
Que vida tem a vida ou que morte a morte?
Tudo são termos onde se define
A Espantosa Realidade das CousasA espantosa realidade das cousas
É a minha descoberta de todos os dias.
Cada cousa é o que é,
E é difícil explicar a alguém quanto isso me alegra,
E quanto isso me basta.
Basta existir para se ser completo.
Tenho escrito bastantes poemas.
Hei de escrever muitos mais. Naturalmente.
Cada poema meu diz isto,
E todos os meus poemas são diferentes,
Porque cada cousa que há é uma maneira de dizer isto.
Às vezes ponho-me a olhar para uma pedra.
Não me ponho a pensar se ela sente.
Não me perco a chamar-lhe minha irmã.
Mas gosto dela por ela ser uma pedra,
Gosto dela porque ela não sente nada.
Gosto dela porque ela não tem parentesco nenhum comigo.
Outras vezes oiço passar o vento,
E acho que só para ouvir passar o vento vale a pena ter nascido.
Eu não sei o que é que os outros pensarão lendo isto;
Mas acho que isto deve estar bem porque o penso sem estorvo,
Nem idéia de outras pessoas a ouvir-me pensar;
Porque o penso sem pensamentos
Porque o digo como as minhas palavras o dizem.
Uma vez chamaram-me poeta materialista,
E eu admirei-me, porque não julgava
Que se me pudesse chamar qualquer cousa.
Eu nem sequer sou poeta: vejo.
Se o que escrevo tem valor, não sou eu que o tenho:
O valor está ali, nos meus versos.
Tudo isso é absolutamente independente da minha vontade.
A Manhã RaiaA manhã raia. Não: a manhã não raia.
A manhã é uma coisa abstracta, está, não é uma coisa.
Começamos a ver o sol, a esta hora, aqui.
Se o sol matutino dando nas árvores é belo,
É tão belo se chamarmos à manhã «Começarmos a ver o sol»
Como o é se lhe chamarmos a manhã,
Por isso se não há vantagem em por nomes errados às coisas,
Devemos nunca lhes por nomes alguns.
Esqueço do Quanto me EnsinaramDeito-me ao comprido na erva.
E esqueço do quanto me ensinaram.
O que me ensinaram nunca me deu mais calor nem mais frio,
O que me disseram que havia nunca me alterou a forma de uma coisa.
O que me aprenderam a ver nunca tocou nos meus olhos.
O que me apontaram nunca estava ali: estava ali só o que ali estava.
RICARDO REIS: eu domino-me e abdico
Características temáticas: paganismo (crença nos deuses e na civilização grega); fatalismo (passividade, indiferença, ausência de compromisso com o mundo, consciência da precaridade da vida, medo da morte); epicurismo ( busca da felicidade relativa, moderação nos prazeres, fuga à dor," carpe diem" - vive o momento); estoicismo (aceitação das leis do destino - a passagem do tempo e da morte, autodisciplina face às paixões e a dor, intelectualização das emoções); culto do belo como forma de superar a efemeridade dos bens e a miséria da vida.
Características da linguagem e estilo: classicismo (uso da ode, de ideais e de linguagem de inspiração clássica; predomínio da subordinação; uso frequente do gerúndio, do imperativo ou do subjuntivo; metáforas, comparações; estilo construído com muito rigor; discurso moralista).
ACIMA DA VERDADE
Acima da verdade estão os deuses.
A nossa ciência é uma falhada cópia
Da certeza com que eles
Sabem que há o Universo.
Tudo é tudo, e mais alto estão os deuses,
Não pertence à ciência conhecê-los,
Mas adorar devemos
Seus vultos como às flores,
Porque visíveis à nossa alta vista,
São tão reais como reais as flores
E no seu calmo Olimpo
São outra Natureza.
A FLOR QUE ÉS
A flor que és, não a que dás, eu quero.
Porque me negas o que te não peço.
Tempo há para negares
Depois de teres dado.
Flor, sê-me flor! Se te colher avaro
A mão da infausta esfinge, tu perere
Sombra errarás absurda,
Buscando o que não deste.
CADA DIA SEM GOZO NÃO TEU
Cada dia sem gozo não foi teu
Foi só durares nele. Quanto vivas
Sem que o gozes, não vives.
Não pesa que amas, bebas ou sorrias:
Basta o reflexo do sol ido na água
De um charco, se te é grato.
Feliz o a quem, por ter em coisas mínimas
Seu prazer posto, nenhum dia nega
A natural ventura!
CADA UM
Cada um cumpre o destino que lhe cumpre,
E deseja o destino que deseja;
Nem cumpre o que deseja,
Nem deseja o que cumpre.
Como as pedras na orla dos canteiros
O Fado nos dispõe, e ali ficamos;
Que a Sorte nos fez postos
Onde houvemos de sê-lo.Não tenhamos melhor conhecimento
Do que nos coube que de que nos coube.
Cumpramos o que somos.
Nada mais nos é dado.
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ÁLVARO DE CAMPOS: eu sinto tudo e canso-me
Características temáticas: futurismo (2ª fase); exaltação da civilização industrial e da técnica, da força e da violência; ruptura com a lírica tradicional; atitude escandalosa; sensacionismo: vivência excessiva das sensações - "sentir tudo de todas as maneiras"; vontade doentia de fusão com o mundo tecnológico; abulia (3ªfase): cansaço, tédio, pessimismo, solidão; angústia existencial e dor de pensar; fragmentação do "eu"; as saudades da infância ( aí, o reencontro com o F. Pessoa).
Características da linguagem e estilo: verso livre, por vezes muito longo; onomatopeias; aliterações; grafismos expressivos; mistura de níveis de língua; estrangeirismos e neologismos; enumerações excessivas; exclamações, interjeições; apóstrofes, pontuação emotiva, metáforas ousadas, antíteses, personificações, hipérboles, anáforas, desvios das regras sintáticas.
ADIAMENTO
Depois de amanhã, sim, só depois de amanhã...
Levarei amanhã a pensar em depois de amanhã,
E assim será possível; mas hoje não...
Não, hoje nada; hoje não posso.
A persistência confusa da minha subjetividade objetiva,
O sono da minha vida real, intercalado,
O cansaço antecipado e infinito,
Um cansaço de mundos para apanhar um elétrico...
Esta espécie de alma...
Só depois de amanhã...
Hoje quero preparar-me,
Quero preparar-rne para pensar amanhã no dia seguinte...
Ele é que é decisivo.
Tenho já o plano traçado; mas não, hoje não traço planos...
Amanhã é o dia dos planos.
Amanhã sentar-me-ei à secretária para conquistar o mundo;
Mas só conquistarei o mundo depois de amanhã...
Tenho vontade de chorar,
Tenho vontade de chorar muito de repente, de dentro...
Não, não queiram saber mais nada, é segredo, não digo.
Só depois de amanhã...
Quando era criança o circo de domingo divertia-rne toda a semana.
Hoje só me diverte o circo de domingo de toda a semana da minha infância...
Depois de amanhã serei outro,
A minha vida triunfar-se-á,
Todas as minhas qualidades reais de inteligente, lido e prático
Serão convocadas por um edital...
Mas por um edital de amanhã...
Hoje quero dormir, redigirei amanhã...
Por hoje, qual é o espetáculo que me repetiria a infância?
Mesmo para eu comprar os bilhetes amanhã,
Que depois de amanhã é que está bem o espetáculo...
Antes, não...
Depois de amanhã terei a pose pública que amanhã estudarei. Depois de amanhã serei
finalmente o que hoje não posso nunca ser.
Só depois de amanhã...
Tenho sono como o frio de um cão vadio.
Tenho muito sono.
Amanhã te direi as palavras, ou depois de amanhã...
Sim, talvez só depois de amanhã...
O porvir...
Sim, o porvir...
CLEARLY NON-CAMPOS
Não sei qual é o sentimento, ainda inexpresso,
Que subitamente, como uma sufocação, me aflige
O coração que, de repente,
Entre o que se vive, se esquece.
Não sei qual é o sentimento
Que me desvia do caminho,
Que me dá de repente
Um nojo daquilo que seguia,
Uma vontade de nunca chegar a casa,
Um desejo de indefinido.
Um desejo lúcido de indefinido.
Quatro vezes mudou a ‘stação falsa
No falso ano, no imutável curso
Do tempo conseqüente;
Ao verde segue o seco, e ao seco o verde,
E não sabe ninguém qual é o primeiro,
Nem o último e acabam.
COMEÇO A CONHECER-ME, NÃO EXISTO
Começo a conhecer-me. Não existo.
Sou o intervalo entre o que desejo ser e os outros me fizeram,
Ou metade desse intervalo, porque também há vida...
Sou isso, enfim...
Apague a luz, feche a porta e deixe de ter barulhos de chinelos
no corredor.
Fique eu no quarto só com o grande sossego de mim mesmo.
É um universo barato.
O DESCALABRO A ÓCIO E ESTRELAS
O descalabro a ócio e estrelas...
Nada mais...
Farto...
Arre...
Todo mistério do mundo entrou para minha vida econômica.
Basta!
O que eu queria ser, e nunca serei, estraga-me as ruas.
Mas então isto não acaba?
É destino?
Sim, é meu destino
Distribuído pelos conseguimentos no lixo
E os meus propósitos à beira da estrada -
Os meus conseguimentos rasgados por crianças,
Os meus propósitos mijados por mendigos,
E toda a minha alma uma toalha suja que escorregou para o chão.O horror do som do relógio à noite na sala de jantar de uma casa
de província -
Toda monotonia e a fatalidade do tempo...
O horror súbito do enterro que passa
E tira a máscara de todas as esperanças.
Ali...
Ali vai a conclusão.
Ali, fechado e selado.
Ali, debaixo do chumbo lacrado e com cal na cara
Vai, que pena como nós,
Vai o nós!
Ali, sob um pano cru acro é horroroso como uma abóbada de cárcere.
Ali, ali, ali... E eu?
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