Carl Gustav Jung

O pensamento de Carl Gustav Jung trouxe uma nova perspectiva ao mundo da psicologia moderna. Muitos de seus conceitos, como por exemplo, “extrovertido”, “introvertido” e “arquétipo” são adotados de maneira exaustiva e, à mercê de interpretações, acabam sendo empregados erroneamente. Mas a mais notável contribuição de Jung ao conhecimento psicológico é o conceito de inconsciente – não como um quarto de despejos dos desejos reprimidos (como é para Freud), mas como um mundo consciente e “meditador” do ego. A linguagem e as pessoas do inconsciente são os símbolos, e os meios de comunicação com este mundo são os sonhos.

Impossível falar de uma vida e obra tão rica em apenas algumas linhas. Entretanto, é possível deixar caminhos para que o leitor trace o seu estudo e busque caminhos que o auxiliem na compreensão das suas questões pessoais e humanas por meio da leitura dos trabalhos e da vida de um dos maiores médicos de todos os tempos e um dos grandes pensadores do século XX.

A obra O homem e seus símbolos, a última de sua autoria, escrita em conjunto com preciosos colegas e organizadores, que dão vida aos capítulos do livro é, sobretudo, a mais simples para o leitor não especialista. Ela fala da importância dos sonhos e de seus significados. Traz o sonho como um meio de comunicação direto, pessoal e significativo com aquele que sonha - um meio de comunicação que usa símbolos comuns a toda humanidade, mas que os emprega sempre de modo inteiramente individual, exigindo para a sua interpretação uma “chave”, também inteiramente pessoal.



O sonho é a grande chave para o inconsciente.

Mas o que acontece com aqueles que sonham acordados?

Para estes que possuem uma sequência de ideias soltas e, por vezes, incoerentes, às quais o espírito se entrega, sim, também para estes sonhadores existe uma palavra de conhecimento.

Mas é preciso pés nos chãos para a imensidão que é Jung e mais do que sonhar acordado, é preciso sonhar de verdade.

Vincent Van Gogh

Sucesso só veio após a morte

Considerado um dos maiores expoentes do pós-impressionismo, o holandês Vincent Van Gogh não teve o seu trabalho reconhecido pela crítica nem fez sucesso junto ao público enquanto vivo. Durante sua curta vida morreu aos 37 anos ele vendeu apenas uma tela. No entanto, o uso abstrato da cor e da forma que exibia em seus quadros teve uma influência decisiva sobre toda a arte do século 20. 

Na juventude, foi sustentado pelo irmão Theodorus, com quem trocou cerca de 750 cartas, verdadeiros retratos sentimentais da alma do artista. Van Gogh sofria de instabilidade mental. Em 1890, depois de muitas tentativas de levar uma vida normal, trabalhou com um tio numa loja de obras de arte e, em seguida, tentou ser evangelizador em minas de carvão na Bélgica. Depois, o mestre mudou-se para o sul da França. Lá, no ambiente que retratou na tela O Quarto de Van Gogh em Arles, ele cortou a própria orelha esquerda em meio a uma alucinação. Suicidou-se com um tiro no peito 19 meses depois.

Por conta de uma história repleta de fracassos, que terminou tragicamente em suicídio, quase ninguém notava a genialidade de Vicent van Gogh (1853-1890). O reconhecimento só veio depois da morte do pintor, aos 37 anos de idade. Hoje (30/3), 162 anos depois de seu nascimento. 

A geometria na tela de Van Gogh
Ao analisar a imagem que mostra O quarto do pintor holandês, percebe-se como ele usou a profundidade e a perspectiva em sua obra
O Quarto deVan Gogh em Arles, do pintor holandês Vincent Van Gogh (1853-1890), retrata o seu lugar de descanso, tem detalhes inquietantes: o chão parece inclinado, quadros estão distantes da parede e móveis dispostos fora de lugar. Será que houve algum erro? Absolutamente! Depois da luz que é o elemento tido pelo próprio pintor como o grande personagem da tela , são as linhas geométricas que formam o cenário do quarto e a noção de perspectiva que fazem dessa uma das obras de arte mais famosas de todos os tempos.
O Quarto de Van Gogh em Arles

Fonte: http://revistaescola.abril.com.br/arte/pratica-pedagogica/geometria-tela-van-gogh-

MILIONÁRIO & JOSÉ RICO - SÓ ÀS MELHORES - ♫

DVD Lourenço e Lorival

ELEGIA PARA A ESPERANÇA - Nelson Bortoletto



Para a mulher mais desejada a elegia da esperança:

ELEGIA PARA A ESPERANÇA

Uma porta entreaberta
e a janela a meio batente,
com flores sobre o parapeito.

Um olhar de fora,
sem jeito,
se embrenhando pelas frestas,
fazendo curvas impossíveis
em busca de só um cantinho
ainda não exposto.

O suor correndo no rosto,
a boca seca, 
mordente,
o filme da vida da gente
dependendo de um minuto.

A busca dos seios fartos,
da boca de cereja
e antes que alguém nos veja,
um colo cheio de anseios.

Eu morreria ali, na hora,
se não competentes os meios.

E em paródia do ditado
afirmar, sem rodeios:

- O QUE OS OLHOS NÃO VEEM
O CORAÇÃO PRESSENTE!

-Nelson Bortoletto-

27/03/2015
Uma ode à solidão imposta, sem limites, exposta à minha amada. Ainda sou-lhe grato pelo reconhecimento de publicar as minhas bobagens. Ela, a própria, talvez nem compreenda o que eu quis dizer com isso, mas, amor é compromisso e vence a ignorância. Recorrer, minha professora, a que instância?
Desculpe-me pelo desabafo. Precisamos de professoras, sempre.

Interpretação de textos: dicas

Interpretar adequadamente textos dos mais variados tipos e gêneros textuais é fundamental para o sucesso acadêmico e profissional

Letrado não é aquele que decodifica uma mensagem: letrado é o indivíduo que lê e compreende o que lê. No Brasil, infelizmente, grande parcela da população sofre com o analfabetismo funcional, que nada mais é do que a incapacidade que um leitor tem de compreender textos — inclusive os textos mais simples — de gêneros muito acessados no cotidiano.

O analfabeto funcional não transforma em conhecimento aquilo que lê, pois sua capacidade de interpretação textual é reduzida. Ao contrário do que muitos pensam, o problema atinge pessoas com os mais variados níveis de escolaridade, e não apenas aqueles cuja exposição ao estudo sistematizado foi reduzida. Para que você possa aprimorar sua capacidade de interpretação, o sítio de Português elaborou algumas dicas que vão te ajudar a alcançar uma leitura proficiente, livre de quaisquer mal-entendidos. Boa leitura e bons estudos!

Cinco dicas de interpretação de textos:

Dica 1: Livre-se das interferências externas

Sabemos que nem sempre é possível ter a tranquilidade desejada para estudar, ainda mais quando somos obrigados a conciliar várias atribuições em nossa rotina, mas sempre que possível, fique livre de interferências externas e escolha ambientes adequados para a leitura. Um ambiente adequado é aquele que oferece silêncio e algum conforto, afinal de contas, esses fatores influenciam de maneira positiva os estudos. Ruídos e interferências durante a leitura reduzem drasticamente nossa capacidade de concentração e, consequentemente, de interpretação.

Dica 2: Sempre recorra a um bom dicionário

Quem nunca precisou interromper a leitura diante de um vocábulo desconhecido? Essa é uma situação corriqueira, mesmo porque o léxico da língua portuguesa é extenso. É claro que desconhecer o significado de algumas palavras pode atrapalhar a interpretação textual, por isso, o ideal é que você, diante de um entrave linguístico, consulte um bom dicionário. Na impossibilidade de consultar um dicionário, anote a palavra para uma consulta posterior. É assim que um bom vocabulário é construído, e acredite: ele sempre estará em construção, pois estamos constantemente em aprendizado.

Dica 3: Prefira a leitura no papel

Sabemos que a tecnologia nos oferece diversos suportes que facilitam e democratizam a leitura e que oslivros digitais são uma realidade. Contudo, sempre que possível, opte por livros ou documentos físicos, isto é, impressos. O papel oferece a oportunidade de ser rabiscado, nele podemos fazer anotações de maneira rápida e prática, além de ser a melhor opção para quem tem dificuldades de interpretação textual.

Dica 4: Faça paráfrases

A paráfrase consiste em uma explicação livre e desenvolvida de um fragmento do texto e também dele completo. Ao ler um parágrafo mais complexo, você pode fazer uma pausa para tentar explicá-lo com suas próprias palavras: isso facilitará a compreensão e a assimilação daquilo que está sendo lido.

Dica 5: Leia devagar

Ler apressadamente é um exercício que dificilmente transformará informação em conhecimento. O cérebro precisa de tempo para processar a leitura, por isso, evite ler em situações adversas. Uma leitura feita com calma permitirá que você retome parágrafos — e poucas coisas são mais eficientes para a interpretação textual do que a releitura —, consulte o dicionário e faça paráfrases e anotações, ou seja, todas as dicas anteriormente citadas dependem, sobretudo, dessa leitura cuidadosa.

Artigo de opinião

Posicionar-se acerca de um determinado tema – Principal característica do gênero

Em meio à nossa vivência do dia a dia, estamos a todo instante nos posicionando a respeito de um determinado assunto. Essa liberdade que nos é concedida faz com que nos tornemos seres ímpares, dotados de pensamentos e opiniões acerca da realidade circundante, por vezes absurda e cruel.

Tal particularidade, relacionada a este perfil singular, desencadeia uma série de posicionamentos divergentes, os quais são debatidos e confrontados por meio de uma interação social – fato que confere uma característica dinâmica à sociedade, visto que, caso contrário, as relações humanas se tornariam frustrantes e monopolizadas.

De forma específica, atenhamo-nos ao título em questão quando o mesmo perfaz-se de dois termos básicos: Artigo e opinião. Procurando compreendê-los de acordo com seu sentido semântico, surge-nos numa primeira instância, a ideia de algo relacionado à escrita. 

Munidos de tal percepção, sabemos que a mesma constitui-se de certas particularidades específicas, e mais! Trata-se de um gênero textual comumente requisitado em exames de vestibulares e concursos públicos de uma forma geral. 
Sendo assim, torna-se imprescindível incorporá-lo aos nossos conhecimentos e, sempre que necessário, colocá-lo em prática. Enfatizaremos então sobre alguns pontos pertinentes à modalidade em referência.

O artigo de opinião é um gênero textual pertencente ao âmbito jornalístico e tem por finalidade a exposição do ponto de vista acerca de um determinado assunto. Tal qual a dissertação, ele também se compõe de um título, um parágrafo introdutório o qual se caracteriza como sendo a introdução, ao explanar de forma geral sobre o assunto do qual discutirá.

Posteriormente, segue o desenvolvimento arraigado na desenvoltura dos argumentos apresentados, sempre tendo em mente que esses deverão ser pautados em bases sólidas, com vistas a conferir maior credibilidade por parte do leitor. E por fim, segue a conclusão do artigo, na qual ocorrerá o fechamento das ideias anteriormente discutidas.

http://www.portugues.com.br/redacao/artigo-opiniao-.html

PIRANDELLO E O CONCEITO DAS MÚLTIPLAS VERDADES


Em peça teatral, autor questiona se a verdade pode ser real e absoluta


A verdade, busca contínua do homem, parece ainda inalcançável. Os pontos de vistas se divergem e descobertas deixam de ser atuais mais rápido do que um cigarro chega ao fim. Descartes foi feliz ao dizer que “só sei que nada sei”. O significado da frase é tão amplo quanto os nossos sonhos.

Tão brilhante quanto o filósofo foi o escritor Luigi Pirandello, autor da célebre peça Seis Personagens à Procura de um Autor, e um defensor do pensamento de que a verdade é relativa.

Seu trabalho mais abrangente sobre o assunto foi a peça Assim é, se lhe parece, na qual a personagem Frola é uma mulher reclusa. Ela justifica isso por afirmar que cuida de sua filha. Seu genro, no entanto, diz que a sogra enlouqueceu depois que a filha morreu.

Provocando uma reviravolta, Frola afirma que, na verdade, foi o genro que enlouqueceu, e passou a acreditar que a esposa está morta. Ainda há na peça um personagem que defende que a verdade não existe. Ao menos não como absoluta. Existe uma série de verdades, que dependem de pontos de vista para existirem. Elas simplesmente são, se assim lhe parecem.

Pirandello aponta que às vezes não há o certo e o errado; o verdadeiro e o falso; um caminho ou outro. Às vezes duas coisas absurdamente contraditórias podem coexistir e talvez até sem um meio termo.

O autor não foi o primeiro nem o último a debater amplamente o conceito de verdade, porém o seu questionamento provocou muitas reflexões, inclusive no campo da Psicologia, já que o profissional desta área deve compreender o que é a verdade para o seu paciente.

Luigi Pirandello já entendia que cada um possui os seus princípios, conceitos, história, sofrimentos e sonhos. Tudo isso é capaz de construir uma verdade e dá a sensação de que para que ela seja real, outras verdades precisam ser destruídas. Erro comum. Tudo pode ser, se assim lhe parecer.


PUBLICADO EM LITERATURA POR BRUNO INÁCIO

http://lounge.obviousmag.org/with_a_little_help_from_my_friends/2014/08/pirandello-e-o-conceito-das-multiplas-verdades.html


A FICÇÃO COMO LUGAR DA FANTASIA – LUIGI PIRANDELLO

O autor italiano Luigi Pirandello, ao final de seu romance “O falecido Mattia Pascal” (que é, a propósito, meu livro favorito) tomou a liberdade de inserir em 1921 (na terceira edição da obra) um apêndice ao qual deu o nome de “Sobre os escrúpulos da fantasia”.

Pirandello, perspicaz em trazer aos leitores histórias para surpreendê-los quanto a intrincada psique humana, justifica seu estilo ao mesmo tempo em que aponta e responde aos excessos críticos dirigidos às obras de arte que escapam a um retrato da vida chamada “normal”. Ao dizer que os absurdos da vida não precisam parecer verossímeis porque são verdadeiros, ao contrário dos da arte que, para parecem verdadeiros, precisam ser verossímeis e sendo verossímeis, deixam de ser absurdos, o autor marca a autonomia que arte e vida tem (ou devem ter) entre si. Ou seja: não se pode julgar a arte pela vida. Contudo, será mesmo que a arte e a vida conseguem efetivamente ser percebidas sob critérios distintos? Não seriam as duras críticas feitas à obra de Pirandello um indicativo de que algo de inquietante para o humano emerge de suas histórias, numa arte que faz questão à vida?

O autor nos alerta que somos acostumados a reconhecer o comportamento humano por meio de padrões - estamos habituados a lidar com o humano na condição de homem e não de sujeito; trabalhamos com a percepção do “homem médio”. A arte em geral (embora nesse caso falemos especificamente em literatura) lidará com cada um desses sujeitos naquilo que eles tem de mais idiossincrático. A literatura rompe com padrões e expectativas, portanto.

Contudo, creio que a vida é quem primeiro realiza essa quebra, embora nós não estejamos nunca preparados para lidar com o desconhecido e imprevisível que é o nosso semelhante. A noção de outro nos perturba desde logo pois supõe um deslocamento da nossa própria identidade. Daí nossa dificuldade (ou impossibilidade) em cumprir, por exemplo, o mandamento “amar ao próximo como a ti mesmo”. A psicanalista Maria Rita Kehl fala a esse respeito ao afirmar que “amar (ao estranho, diferente de mim) como a mim implica a anulação de toda a alteridade. Anulação bastante tentadora: ao fazer do próximo um idêntico, suprimindo nele tudo que é estranho ao eu, o sujeito tenta também se livrar do outro que o habita”.

A inquietação provocada pelo absurdo quando este emana do campo da arte talvez incomode tanto porque nos aponte para o indomável que é o outro, capaz do que, não sabemos. “Se eu sou este e ele se assemelha tanto a mim mas não é eu, quem é ele? Diante dele, quem sou eu? Só depois de nos desestabilizar dessa maneira – se aguentarmos o tranco – é que o próximo pode se revelar fonte de aprendizado, de experiências compartilhadas, de novas identificações”.

A arte tem o poder de nos apresentar um grande número de diferentes – e nos mostra que não é possível compreendê-los, mas é preciso fazer com eles uma interlocução. Até onde estamos dispostos a isso? Não seria o absurdo na arte uma denúncia à nossa incapacidade de diálogo com o absurdamente humano, sempre inapreensível?

É interessante observar que pela valorização do particular a arte literária tem grande impacto no coletivo – um leitor aprende pouco a pouco a se deparar com os mais variados tipos humanos e a tolerar, também pouco a pouco, tê-los todos dentro de si. Fernando Pessoa talvez tenha sido o escritor que mais levou a efeito essa ânsia, a partir da criação de vários heterônimos que lhe permitiram sentir e olhar o mundo a despeito de si. Não seria o aceite aos absurdos da arte uma via possível de tolerância para os absurdos da vida?

Parece-nos que é no desapego ao critério geral de “humanidade” e pela empatia com os mais variados tipos humanos que podemos desenvolver auto-crítica - é preciso construir novas maneiras de significar a relação do homem com seu semelhante. Para Pirandello, a propósito, a humanidade não pode mesmo existir em abstrato – existe, sim, dentro da variedade de homens - os quais são capazes de cometer absurdos que não necessitam parecer verossímeis porque são verdadeiros.

As particularidades de cada sujeito, acredito, falam de seus sofrimentos e inquietações, os quais segundo Pirandello são situações da vida que incentivam o racicionar - se a felicidade é gozo pleno, é nas situações mais improváveis e mesmo inverossímeis que podemos enxergar mais a fundo o que é da condição humana, ainda que tais absurdos possam escapar àquilo que à primeira vista pensamos nos aproximar do conceito de "universalmente humano".

O “anormal” da vida cotidiana e das personagens de Pirandello parece não ser mais do que o estouro de um imenso real – aquele que, quando enxergado, avassala. Os personagens de um livro de literatura vestem máscaras, as alternam e a máscara por vezes pode rasgar-se e ser pisoteada diante do leitor. Nós, sempre investidos de máscaras temos, me parece, dificuldade em vê-las arrancadas em literatura, na ficção que surge como factível.

Diz Pirandello: "É a máscara para uma representação, o jogo dos papéis, aquilo que desejamos ou devemos ser; aquilo que parecemos ser aos outros, enquanto o que somos, até certo ponto, nem nós mesmos sabemos. É a metáfora desajeitada e incerta de nós mesmos, a construção frequentemente complexa que fazemos de nós mesmos e que os outros fazem de nós”

Num mundo que nos impõe o padronizado, o óbvio e a aparência, o quanto podemos suportar personagens viscerais?

A provocação de Pirandello me faz pensar que o absurdo mais aceito na vida (e menos na arte) não é o inverossímil, mas a capacidade humana de sustentar por tanto a máscara e ser marionete de si mesmo – não seria a arte uma ferramenta de denúncia de toda a potencialidade da vida, que nos desconforta tanto justamente por nos lembrar que o desejo transcende aquilo que é nomeável e por vezes representável?

A vida prescinde de qualquer verossimilhança. Por que a nossa dificuldade em aceitar na arte o absurdo? Uma perspectiva de leitura a partir do ensaio "Sobre os escrúpulos da fantasia".

Acredito que sim, afinal, por ironia da arte ou da vida, o romance Falecido Mattia Pascal, considerado por muitos à época de sua publicação como uma história sem a necessária pregnância com a realidade, encontrou alguns anos depois - nas folhas de um famoso jornal – a sua confirmação em uma notícia verdadeira. A arte pode, então, preceder a vida? Já disse Pirandello: de quais inverossimilhanças reais a vida é capaz, até nos romances onde sem querer ela é cópia da arte?

O título do meu texto afirma a ficção como lugar da fantasia – penso que a arte, a qual surge como faculdade imaginativa, como o lugar do que não tem ligação estreita com a realidade, também cumpre a função de nos ligar à fantasia em sentido para além da inventividade. Quando destaco a ficção como lugar da fantasia, me refiro à fantasia segundo seu lugar em psicanálise – o lugar do desejo.

A história de “O falecido Mattia Pascal” me provoca justamente na medida em que questiona até que ponto podemos usar diferentes máscaras e até que ponto elas podem confundir-se com nós mesmos.

Referências: PIRANDELLO, Luigi. O falecido Mattia Pascal; tradução de Rômulo Antonio Giovelli e Francisco Degani. São Paulo: Ed. Abril, 2010.

KEHL, Maria Rita. Sobre ética e psicanálise. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.

http://obviousmag.org/fotoverbese/2015/03/a-ficcao-como-lugar-da-fantasia-luigi-pirandello.html

MEMÓRIA, ESQUECIMENTO E LOUCURA - QUIXOTE, DALÍ E ALMODÓVAR

Salvador Dalí e Pedro Almodóvar - dois espanhóis influenciados pelo cavaleiro de La Mancha

DALÍ – UM QUIXOTE SURREALISTA

“Ninguém poderia esquecê-la, uma vez vista”, é o que teria dito a esposa de Salvador Dalí (1904-1989), pintor espanhol, ao ver, pela primeira vez, a obra “Los relojes blandos” . Também conhecida como “La persistencia de la memoria”, a pintura tornou-se marco mundial do surrealismo, e, mais que isso, é a estampa de uma visão contemporânea acerca de um dos temas que mais intrigam o ser humano: a memória e suas falhas, ou o esquecimento. A partir da repercussão sobre tal obra, Dalí permitiu-se ter a personalidade pela qual seria conhecido mundialmente: excêntrico e paranoico. A obsessão pela memória talvez seja o elemento motivador da aura de louco que o pintor deixou-se parecer ter – Salvador Dalí, o artista catalão, célebre por seus bigodes finos, compridos e curvos, foi a encarnação simbólica de Quixote no século XX. Vejamos a razão.


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A MEMÓRIA, O ESQUECIMENTO E A LOUCURA NA OBRA DE CERVANTES
A trama escrita por Cervantes retrata como a loucura, ou a perda da razão, pode advir de uma condição de esquecimento. Escrito em dois volumes pelo escritor espanhol Miguel de Cervantes (1547-1616), “El ingenioso hidalgo Don Quijote de La Mancha” narra as aventuras de um fidalgo cuja vida era dedicada à leitura de histórias de cavalaria. Perdendo a razão, Quixote sai em busca de aventuras semelhantes às que leu, empreendendo assim uma jornada interessante e divertida, em que encontra uma donzela para se apaixonar – Aldonza Lourenzo, a quem chamou de Dulcinéia – e perigos a enfrentar – como os célebres (e inofensivos) moinhos de vento. Em cima do cavalo Rocinante, Quixote conta com o fiel escudeiro Sancho Pança, um personagem baixinho e barrigudo, montado em um jegue, e possuidor de uma memória avantajada – clara antítese do protagonista.
A primeira frase do romance deixa clara a intenção que tem o autor em desconstruir a noção de memória. Mostrando desprezo pela exatidão dos fatos contados, Cervantes indica que, em sua escrita e na personalidade de seus personagens, haverá esse mesmo descaso pela precisão. “En un lugar de La Mancha, de cuyo nombre no quiero acordarme, no ha mucho tiempo que vivía un hidalgo de los de lanza en astillero, adarga antigua, rocín flaco y galgo corredor.” (Em um lugar de La Mancha, de cujo nome não quero me lembrar, não faz muito tempo vivia um fidalgo dos que tem lança em estaleiro, escudo antigo, cavalo magro e corredor galgo. – tradução livre minha). Quixote é o retrato de um louco, Sancho cumpre o papel da sobriedade. Entretanto, que seria tal loucura?
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“Quixote morre no fim da narrativa, pois não se pode enlouquecer duas vezes” – disse Saramago (1922-2010), sobre o cavaleiro em questão, em um discurso em que afirmou ser Quixote o personagem mais completo de toda a literatura. Sob essa perspectiva, a loucura de Quixote caracteriza-se pela perda da razão. Ou, ainda falando-se sobre a memória, Quixote esquece a razão, esquece sua real identidade, e preenche essas lacunas com o sonho e o desvario. Ao entregar-se à fantasia, Quixote abdica de sua sanidade mental em nome da identidade de cavaleiro e tal fuga configura-se, pois sua consciência de ser um simples fidalgo era insustentável, a realidade era enlouquecedora para ele. Quixote, então, esquece a razão para não enlouquecer. Quando recobra a consciência de sua identidade original, a razão já está perdida, e não se pode perder novamente o que não foi encontrado. Entretanto, tal realidade continua sendo insustentável, e não há saída que não a morte. Questiona-se, assim, a verdadeira noção de loucura – seria o fidalgo Quixote o louco, por entregar-se às suas fantasias? Ou o seria doido aquele que se prende à razão e à realidade? A loucura de Quixote, se assim pode ser chamada, é apenas o esquecimento de uma condição que não lhe aprazia.
Alguns elementos da narrativa se fazem pilares a serem conhecidos para a abordagem da memória na obra de Cervantes. Um deles é a personalidade de Sancho Pança, o fiel escudeiro de Quixote. Dono de uma memória privilegiada, o personagem é o contraponto aos desatinos do amigo. Quando questionado, evita expor a irracionalidade das aventuras empreendidas por Quixote, entretanto, serve-lhe de suporte racional e é quem não deixa que o fidalgo-cavaleiro se perca – mentalmente e fisicamente – em suas jornadas. Outro elemento interessante é a substituição que Quixote faz. Seu passado de fidalgo é eliminado e ele toma para si o pretérito daquilo que leu – é a transição da memória do vivido pela memória do lido, e assim constrói a personalidade que empunhará como uma espada para combater as injustiças mundanas.


ALMODÓVAR E SEU PERSONAGEM QUIXOTESCO NO SÉCULO XXI

O filme “La piel que habito” (A Pele Que Habito) , de 2011, dirigida por Pedro Almodóvar (1949) é uma das obras cinematográficas contemporâneas de maior caráter psicológico. Em resumo, um cirurgião plástico espanhol, Robert Ledgard (vivido por Antonio Banderas), perde a mulher de forma traumática e, poucos anos depois, vê a filha se suicidar após uma tentativa de estupro. O estopim propicia que o médico dê vazão a um projeto doentio – Doutor Robert captura o estuprador de sua filha, o faz refém, e, mediante uma cirurgia de mudança de sexo, inicia o processo que culminará na total transformação estética do jovem Vicente, deixando-o idêntico ao que fora sua esposa. Com esse empreendimento, o médico faz centenas de intervenções cirúrgicas para cuidar de cada detalhe, ministra hormônios femininos e, por fim, veste Vicente como Vera, cobrindo-lhe de vestidos e maquiagem. Há, na história, a figura de Marilia, a governanta da imensa casa onde o médico vive, e que, durante o filme, revela-se sua mãe. Marilia é como um portal de Robert ao passado. Tendo criado a ele, e à sua filha morta, a empregada é alguém que testemunhou cada evento que levou à criação de um louco que fez rigorosamente tudo para trazer a esposa de volta à vida.

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O caráter Quixotesco de Robert é facilmente perceptível ao destacar os elementos de ambas as histórias, e relacioná-los. Assim como Quixote, Ledgard é um homem solitário cujo passado é atraente demais para que ele possa viver o presente. No caso de Quixote, seu passado e sua memória situam-se nas histórias de cavalaria. Já para o médico, é a lembrança da existência da esposa e da filha que o prende. O projeto de transformar algo odiado em algo amado também está presente nas duas narrativas – Quixote abandona o fidalgo que era para tornar-se cavaleiro justiceiro; Robert transforma o motivador do suicídio de sua filha em dono do corpo de sua amada esposa. Ambos recorrem à imagem da musa inspiradora como encorajadora de seus empreendimentos – Dulcinéia e Vera são mulheres sem as quais não existiriam, nas mesmas condições, Quixote e Robert. Assim como Sancho é a memória e a razão do cavaleiro de La Mancha, também o é para o cirurgião plástico Marilia, sua mãe e empregada, que guarda em si cada lembrança da vida de Robert e o recorda, a todo tempo, o desvario que é manter um prisioneiro em casa e transformar-lhe o corpo.

Quando o objetivo de Robert é alcançado – a nova Vera está pronta – ela (ou ele) é a responsável por matar-lhe com um tiro certeiro. Também é assim para Quixote. Sua projeção de identidade ideal, seu projeto de vida, sua caminhada como cavaleiro é quem o surpreende e, dando-lhe um lampejo de lembrança da vida anterior, o mata subitamente. As obras de tais personagens são seus algozes.


LOS RELOJES BLANDOS

Como no quadro de Dalí, a memória funciona como representação de um passado inatingível. Os relógios derretidos da pintura mostram como a passagem do tempo deixa tudo deformado – Quixote esqueceu-se de sua razão e a volta ao conhecimento lhe tirou a vida. Sua memória, personificada em Sancho Pança, era deformada e montava um jegue, ao passo que ele próprio, significando a “loucura” montava um cavalo. O personagem de Cervantes, bem como ele próprio, desprezou a lembrança e construiu o passado que quis. O excêntrico Dalí representou a memória como algo persistente que insiste em nos fazer reviver o passado, mas que o deforma com o correr dos ponteiros. O obsessivo Robert, de Almodóvar, é o homem que não quer abdicar de sua lembrança, por isso reconstrói a memória em um protótipo oco de significado. Três autores espanhóis – Cervantes, Salvador Dalí e Almodóvar – criaram três personagens – Quixote, Dalí personagem e Dr. Robert – que tentaram retratar o que a memória lhes lembrava – uma vida de cavalaria apreendida dos livros, a noção da passagem do tempo e da deformação do vivido e a mulher perdida, em um corpo qualquer. As três obras explicitam, portanto, a mesma máxima – a memória é a representação de um passado que não existe mais e, portanto, é inatingível.

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http://lounge.obviousmag.org/ponto_e_virgula/2013/01/memoria-esquecimento-e-loucura---quixote-dali-e-almodovar.html

Canção de Outono

Perdoa-me, folha seca,
não posso cuidar de ti.
Vim para amar neste mundo,
e até do amor me perdi.

De que serviu tecer flores
pelas areias do chão,
se havia gente dormindo
sobre o próprio coração?

E não pude levantá-la!
Choro pelo que não fiz.
E pela minha fraqueza
é que sou triste e infeliz.
Perdoa-me, folha seca!
Meus olhos sem força estão
velando e rogando àqueles
que não se levantarão…

Tu és a folha de outono
voante pelo jardim.
Deixo-te a minha saudade
– a melhor parte de mim.
Certa de que tudo é vão.
Que tudo é menos que o vento,
menos que as folhas do chão…

Cecília Meireles

LONJURAS - conto

Da primeira vez, veio só, montada a cavalo, calças compridas por de baixo de um vestido de chita de mangas longas, lenço cobrindo os cabelos e, por cima dele, um chapéu de palha, nos pés protegidos por grossas meias, alpargatas. Imediatamente despertou o interesse da curiosa Cacilda que nunca vira uma mulher assim, a cavalo. Tentou ficar por perto, sentada em um degrau da escada de entrada da cozinha para ouvir a conversa, mas foi rechaçada, rapidamente pelo pai com um único olhar. Era o que bastava para que soubesse que devia tomar chá de sumiço porque aquela era uma conversa de gente grande.

A menina afastou-se, mas não muito. Empoleirou-se em um pé de caqui. Dali conseguia ver a movimentação na cozinha da casa. O pai, a mãe e a estranha mulher conversaram, tomaram chimarrão por mais ou menos uma hora, depois despediram-se, e a visita montou a cavalo novamente e partiu.

Cacilda desceu da árvore rapidamente e correu para frente da casa na tentativa de ouvir algumas palavras que elucidassem a presença daquela senhora. Em vão, ela já se ia, numa marcha mansa. Perguntou para a mãe, assim que o pai se afastou, quem era. 

– Não é da tua conta. Vá brincar antes que teu pai volte e te passe um corretivo. Pensa que ninguém te viu trepada na árvore tentando ouvir a conversa? Raspe já daqui, sua abelhuda!

Afastou-se sem insistir mais, pois a prudência recomendava que assim o fizesse. 

Uma semana depois, lá estava a mulher novamente, a cavalo. Na garupa, desta vez, vinha acompanhada de um rapaz. No lombo da montaria, uma espécie de saco que atravessava a garupeira do animal de um lado a outro. O dono da casa e sua mulher, prontamente, ajudaram-na a apear, e o rapaz tirou o que parecia ser a bagagem. Cacilda observava a uma distância segura para que o pai não percebesse sua presença bisbilhoteira. Cumprimentaram-se com um aperto de mão e entraram. 

Poucos minutos depois, o rapaz montou e partiu, só. A mulher ficara! A garota era pura curiosidade. Subia no pé de caqui quando foi chamada pelo pai. Correu em direção à casa, quem sabe agora ficasse sabendo o que estava acontecendo por ali.

– A dona Maria vai passar uns tempos aqui pra ajudar tua mãe – limitou-se a dizer, sem nenhuma explicação maior e foi para o quarto de onde saiu, pouco tempo depois, para perguntar à esposa por que a filha estava se metendo na conversa dos adultos. Em seguida, pegou o chapéu e saiu.

Cacilda voltou imediatamente, solícita, carregando um feixe de lenha. Sua curiosidade ardia que nem brasa, ainda não entendia a presença da mulher na casa deles. 

– A dona Maria é a nossa empregada e vai ficar aqui porque logo o neném nasce e alguém precisa me ajudar com ele e com vocês – esclareceu a mãe

A menina exultou! Finalmente ia se livrar dos trabalhinhos domésticos que tanto detestava. Encheu-se de simpatia por aquela mulher, parecia-lhe velha demais para ser empregada. Com a indiscrição própria das crianças, perguntou-lhe quantos anos tinha. O rosto mostrava mais tempo do que realmente vivera, consequência da lida dura na roça, sob sol impiedoso. 

– Vim antes que a criança nasça pra ver se vai dá certo, se me acostumo longe do meu rancho e das minha criação, o vosso pai me pediu como favor – explicou com fala simples de caboclo.

Na mesma semana da chegada de dona Maria, além de detestar a comida da mulher, Cacilda descobriu que a sua rotina de trabalhos domésticos não seria alterada em nada quando a mãe mandou que esfregasse o chão da cozinha.

– Por que a gente tem empregada? 

A resposta veio na forma de um tabefe. 

– Isso é pra você aprender a respeitar os mais velhos – dissera-lhe seu pai. Sendo que, desta forma, a vinda da mulher não facilitou em nada a vida da menina. Cacilda gostava dela, mas achava que era a empregada que devia fazer o serviço doméstico, afinal, era paga para isto. No entanto, quando a mãe voltou a cozinhar, lavar e passar, chegou à conclusão que dona Maria seria uma espécie de companhia. Não tinha o menor cabimento, de acordo com seu julgamento, alguém pra fazer companhia se havia ela, os irmãos e o pai.

Em uma conversa entre o pai e a mãe, ouvira que dona Maria era idosa e, por conta disso, o patrão não permitia que esfregasse chão, lavasse as roupas, pois o poço era profundo demais para que ela tivesse condições físicas para encher o tanque. Não passava a ferro porque, ele era militar, ela não sabia engomá-las. Também não cozinhava, o molho e o feijão que fazia eram aguados, o arroz virava uma pasta e batatas, só sabia fazê-las cozidas. 

Não tinha predicativos quanto à culinária e algumas outras coisinhas, mas costurava à mão que era uma beleza. Não se viu mais roupa alguma rasgada, nem mesmo os panos de prato. Tudo era caprichosamente remendado. Até as roupas do bebê, que estava por vir, ela fazia, aproveitando até mesmo mangas de camisas e outras peças fora de uso, cosendo miúdas peças e, de lençóis rasgados, fazia fraldas e paninhos “pra limpá a boca do nenê quando regurgitá” – explicava, respondendo aos olhares curiosos que Cacilda lhe lançava. 

Quando a criança nasceu, recebeu todos os cuidados de dona Maria para que Alice pudesse descansar, pois, naquele tempo, o período puerperal, ou resguardo, era visto com bastante exagero. A mulher ficava quase que os quarenta dias de cama, não podia fazer esforço físico.

– Tem que dá tempo pra mãe do corpo vortá pro lugá” – explicava a mulher quando se perguntava por que a mãe não podia sair da cama.

Nada de lavar os cabelos, pegar vento – podia ter uma recaída - a alimentação restringia-se a canja com pão torrado e muito chá de erva-doce. Quando acabava esse período, a parturiente tinha os cabelos tão ensebados que se neles caíssem piolhos escorregariam e não se criariam, sem contar o estado de fraqueza que tomava a mulher. Com Alice, pelo menos, era assim.

Cacilda ficou muito assustada no dia que a mãe tentou levantar-se e desmaiou. Também pudera, só tomava canja no almoço e, no café da manhã e no jantar, chá com torradas.

– Não sei o que seria de mim sem a senhora aqui, dona Maria – ouviu a mãe dizer.

Depois do susto de ver a mãe desfalecer, apesar de não gostar de continuar fazendo os serviços domésticos, ficou aliviada por aquela senhora estar ali cuidando dela e do bebê.

À noite, enquanto o bebê dormia, reuniam-se perto do fogão a lenha e ouviam dona Maria contar das lonjuras de onde viera. Falava da roça, das galinhas, do porquinho, da vaquinha leiteira, dos cachorros. Denotando grande preocupação com os animais, dava sinais de que a saudade começava a apertar. Vez por outra falava dos filhos, tinha quatro, mas jamais mencionou o marido. Será que não tinha um? Mas como é que podia ser isso se tinha filhos?

– Quem que tá cuidando dos bichos e da roça? É o marido da senhora? – perguntou a enxerida, sem pudor algum.

O olhar severo do pai deixou claro que a filha tinha passado dos limites, mesmo assim, esperava ter sua curiosidade satisfeita, no entanto, a pergunta foi ignorada.

Poucos dias depois do nascimento do menino, chegou à casa, o filho de dona Maria. O mesmo que a acompanhara, quando veio para ficar. Veio a cavalo, chapéu, botas, apeou e pediu um copo de água.

– Êta calor danado! Tá de rachá a moringa – falou, enxugando o suor da testa com o dorso das mãos.

E rondando, estava a abelhuda, louquinha para desvendar o mistério do marido e, aproveitando que o pai não estava por perto, metia o bedelho na conversa de mãe e filho.

– O meu pai é soldado. O que o teu é?

A pergunta ficou no vazio, não encontrou eco. “Pergunta de criança ninguém responde, quando é pra esfregar chão, lavar louça, tirá água do poço, daí não é criança” – pensou mais zangada do que decepcionada. Deu meia volta e afastou-se, o pai estava chegando.

Logo depois do almoço, o rapaz pegando o chapéu, que ficara pendurado em um prego atrás da porta,foi dizendo que se ia porque tinha bastante chão até vencer as lonjuras.

Lonjuras? Essa informação atiçou ainda mais a curiosidade da menina, como é que pode uma mulher ficar longe de casa, do marido e dos filhos? Resolveu que na semana seguinte, ia se dedicar a descobrir aquele mistério, nem que ficasse sem brincar, só em casa cercando a mulher, ela haveria de escutar tudinho o que fosse dito. Não ia perder conversa nenhuma. Ia investigar a fundo. E assim o fez. Ninguém precisou mandar fazer nada, adiantava-se em cumprir todas as tarefas domésticas e ainda perguntava se tinha mais alguma coisa pra fazer. Tudo em vão.

Seis meses depois, despedia-se dona Maria da família, já cumprira a missão, mãe e filho já não precisavam de seus cuidados. Todos sentiriam falta da companhia tranquila da mulher. Assim como chegou, partiu. O filho chegou, o saco com aberturas laterais sobre o lombo do cavalo, dona Maria na garupa, partiram. Dona Alice,olhos marejados, já era da família.

Dez dias depois, que alegria! Chegava dona Maria, montada em seu cavalo e trazia espigas de milho, mandioca e uma galinha, bem gorda, pronta pro abate. Foi uma festa! Todos estavam felizes. 

– Apeie, mulher de Deus! Com esse calor, vindo daquelas lonjuras no lombo desse cavalo, a senhora deve estar cansada. Vamos tomar um chimarrão na sombra que logo o almoço fica pronto – falava dona Alice, com um braço segurando o bebê e com o outro abraçando a mulher que viera de longe para visitá-los.

O menino, que a senhora ninara por tantas noites, assim que ela sentou-se, passou para seu colo, enquanto o chimarrão corria e a dona da casa tratava de terminar o almoço. Parecia dia de festa e o chimarrão foi substituído por vinho tinto.

– Foi feito por seu Antonio do Palmital, esse é do bom – falava seu Rosa, animado. Até as crianças beberam no almoço uma espécie de refresco feito com vinho, já que não tinha gasosa.

– Não ia fazer mal, o refresco tá bem fraquinho – dizia a mãe.

Ainda à mesa, o dono da casa desculpando-se, iniciou a conversa, atrevido pelo excesso de bebida.

– A senhora me desculpe, mas vou perguntá, e o seu marido, por anda?

– Meu marido tá morto, seu Rosa. Mataram ele, faz dois anos.

– Como que foi isso?

– É uma coisa que dá vergonha de contá, seu Rosa. Vocês já são da minha família, então eu pensu que num podi de ter segredo. Entonce, vou falá. Quando vim pra casa de unces, era pra vê se me esquecia um pouco da tristeza de tanta desgraça de tê o marido morto e um fio preso.

A dona da casa interveio, para frustração de Cacilda.

– A senhora não precisa contar nada se não quiser. Pra nós, não tem importância o passado. Temos a senhora como pessoa da nossa família. E nossa porta vai sempre ficar aberta pra senhora.

Pronto! Era só o que faltava. A mãe ia acabar com a prosa!

–Vocês me areceberam na confiança. É justo que eu conte. Meu marido sempre foi um homem trabalhador, cumpridor das obrigação. Trababaiava de sol a sol, sem pruiguiça. Gostava de fartura. Dizia que prantava pra ter pra família e pra quem mais precisasse. Quando foi um dia, apareceu no nosso rancho um homem com a muié. Tavam desabrigados por conta da enchente e pidiam abrigo, trabaiavam pela comida e pelo pouso. Juvêncio disse que pudiam se abrigá. Que nosso rancho era piqueno, mais que se fosse do agrado deles, podiam ficá. Erum trabaiador, num tinham medo da lida. Nossa fia mais veia, Jurema, tamem trabaivava na roça. Saia bem cedo, junto com Juvêncio, Dejarma e Carmelino, o marido de Gertrudes, enquanto que nóis cuidava dos trabaio de casa e da horta. Um dia, Juvêncio desconfio que arguma coisa tava aconteceno. Me falava que num tava gostano dos oioar que via entre nossa fia e o Carmelino. Eu disse pra ele, que ele tava maldando. Foi no mês de junho que a desgraça se deu. Fizemo uma fogeura, bem arta. Cum tudo que uma festa de São Juão pede, batata doce assada, pinhão, pipoca e quentão de pinga, que era pra esquentá. Tinha até sanfona. O Zé do Uruguai veio animá um arasta-pé, que era só pra famia. Tava todo mundo alegre que só. Juvêncio que num durmia de toca, sentiu a farta de Jurema e de Carmelino. Num falô nada, saiu na surdina. Foi procurá a fia. Incontrô. Atráis do galinhero, tava os dois, num agaramento só. Dá pra imaginá a desgracera. Tiro o facão da cinta e partiu pra cima do home que carço ele na faca. Nosso fio, Josmà, ouvindo a gritaria, saiu na carera. Viu o pai caído com uma faca encravada no peito e Carmelino cum as mão ensaguentada. Puxô do facão e matô o crimonoso do pai. E foi assim que tudo aconteceu. A desgraça consumiu com nóis tudo. Ficô duas viúva e quatro fio sem pai. Um na cadeia.

– E Jurema?

– Sumiu no mundo. Não tivemô mais notícia dela. Num sei pur onde anda a minha fia – respondeu, o olhar turvo de tristeza.

O silêncio tomou conta de todos, rir de quê?O pai e a mãe sentiam o pesar daquela mulher, entendiam o drama que vivia.

No meio da tarde, lá se foi a mulher, de volta para o lugar que já fora um lar. Voltou por várias vezes, sempre do mesmo jeito. E sempre era recebida com muita alegria. Ninguém falava sobre o acontecido, nem mesmo Cacilda, pois pressentia o tamanho da tristeza que havia naquele coração.

Tempos depois, estranhando a falta de visita da antiga empregada, seu Rosa tratou de buscar informação, dona Maria morrera. Djalma, o filho mais filho, quando voltara da roça, encontrou-a caída no chão da cozinha, perto do fogão. 

– A tristeza, o desgosto encurtaro a vida da mãe, seu Rosa. Que Deus a tenha. 

Adulta, Cacilda sentiu as lonjuras daquela mulher. Eram lonjuras na alma. 


Martins, Odenilde Nogueira. Lonjuras: In: Caso encerrado, 2014.








Inocência - conto

Havia dias, Paulo estava pensativo e, por vezes, fora surpreendido pela mãe conversando consigo mesmo. Quando interrogado sobre o que estava acontecendo, esquivava-se sempre, alegando precisar estudar e, assim, trancava-se em seu quarto sem dar explicação. De lá, só saía horas depois, pensando ter escapado das perguntas insistentes da mãe que estava em uma marcação cerrada.

A mãe, cada vez mais preocupada, espiava-o de soslaio, quando entrava no quarto do garoto, constatava que o material escolar não havia sido mexido, o menino limitava-se a se deitar, olhos fixos no teto, perdido em pensamentos.

A aproximação do domingo fez aumentar o ar compungido do menino, que nem dormia mais direito. O que estava torturando o garoto?

– Meu filho, como estão suas notas? Você fez provas esta semana?

– Boas, mãe. Acho que consigo passar sem exame. Amanhã tem catequese, posso faltar?

– Faltar na catequese? Por quê? Você nunca quis faltar.

– Tô com muita dor de cabeça.

– Dor de cabeça? Será que amanhã você ainda vai estar com dor de cabeça? – perguntou a mãe mais cismada ainda. – O que aconteceu na catequese, semana passada? Pelo jeito tem alguma coisa que você precisa me contar. Você não vai faltar... Essa dor de cabeça é desculpa, é melhor contar logo. O que houve? – insistia.

– Amanhã é dia de se confessar e eu não quero. Eu fiz um pecado bem grande e Deus não vai me perdoar e o padre Santino vai brigar comigo.

Pronto! A coisa era pior do que a mãe imaginava, com medo do padre!

– Filho, não esconda nada. Qualquer coisa você deve me contar. Eu e teu pai somos teus melhores amigos. Não guarde nenhum segredo. O que aconteceu?

– Não posso – respondeu, os olhos rasos d’água.

– Então, promete que vai contar pro padre?

Paulo não respondeu nada e foi para seu quarto cabisbaixo, como se carregasse todas as culpas do mundo. A mãe, angustiada, esperava que o dia seguinte chegasse, na esperança de que o filho compartilhasse com o padre a sua angústia.

Na manhã seguinte, por força da autoridade materna, Paulo saiu para ir à igreja, o dia da comunhão estava próximo, no que foi discretamente seguido pela mãe, temerosa de que o filho não fosse para a aula de catequese.

Depois de certo tempo, segura de que o filho entrara na igreja, a mulher volta para sua casa e espera, ansiosa, a volta do filho. Aliviada, ouviu a voz do filho que a chamava antes mesmo de entrar pelo portão:

– Mãe! Mãe! O padre Santino disse que Deus sabe quem se arrepende de verdade e perdoa! Ele disse que Ele já me perdoou!

– Que bom, meu filho! Agora já pode me contar o que você fez?

– Eu matei uma criatura de Deus.

Um arrepio percorreu o corpo daquela mãe e a voz não saiu.

– O padre me mandou rezar vinte ave-marias e dez pais-nossos e disse pra eu não fazer nunca mais.

– Não fazer, o quê?

– Pisar nas fileirinhas de formigas.

– Ah! Formigas! – a mãe não conseguiu conter o riso

Esse era o grande pecado cometido pelo menino que ouvira a catequista dizer: ”Todas as criaturas são obras de Deus. É preciso respeitar porque também são preciosas.”

Ao sair do confessionário, aliviado da culpa, deixou o padre imerso em reflexões sobre o tanto de pecados que carregava e do tanto de formigas que sacrificara, vítimas de seus erros, de sua arrogância e de sua pseudo-santidade.


Martins, Odenilde Nogueira. Mulheres. In: Caso encerrado, 2014.


Mulheres - Conto

– As mulheres, sozinhas, depois dos quarenta e cinco, são muito fáceis de serem exploradas. Carência e solidão as tornam presas perfeitas para homens espoliadores – dizia Camilo. – Há homens que ficam à espreita, prontos para caçá-las e arrancar delas tudo o que podem.

– Infelizmente, tenho de concordar com você. Com a vida resolvida financeiramente, a mulher percebe que há uma lacuna. A vida afetiva... Quanto mais procura, mais chances tem de se dar mal. Muitas são as armadilhas preparadas pelos sedutores – assentia Sílvia, mulher de 56 e seis anos, independente e que vivia só.

– Esses bailes para terceira idade... Acontecem até mesmo durante a tarde, sempre cheios de homens jovens dispostos a se dar bem à custa de mulheres incautas e carentes de afeto. Estas são avaliadas pelos predadores, primeiramente, pelo carro que dirigem – continuava Camilo.

– Ah, meu caro, qualquer mulher está sujeita. Fico espantada, vez por outra, quando me contam sobre alguém que conheço e que está vivendo um relacionamento parasitário. O boa-vida fica instalado na casa da “vítima”, desfila com o carro da mesma, come e bebe do bom e do melhor, usa boas roupas, bons perfumes e posa de galã para as meninas.

– É o amor – conclui Camilo com sarcasmo.

– Amor? O coração feminino é um labirinto. A própria mulher se perde. A grande maioria, mulheres esclarecidas, bem informadas, de bom nível cultural. Não é fácil aceitar que alguém fique a seu lado por conta de certas vantagens. Penso que a necessidade de amar, e principalmente de ser amada, é o maior inimigo da mulher, não importa o quanto ela seja esclarecida. Julgamos estar imunes a esse perigo: exploração. É difícil reconhecer nossa fragilidade. Ter a percepção do quanto estamos vulneráveis. Entretanto, conforme já disse, até as mais jovens são presas fáceis. Especialmente àquelas que chegam aos trinta sem terem se casado.

– Mas isso é mais raro porque, nessa idade, a mulher está no auge de sua feminilidade, consciente de seus desejos, segura de si e disposta a ir à luta. O nível de tolerância com os tipos parasitas é baixo. Esse tipo de mulher não faz cerimônia alguma em mandar o cara a puta que pariu.

– Acho que as mais jovens caem em arapucas quando vão chegando perto dos trinta e cinco e seu relógio biológico avisa que a maternidade vai se tornando menos possível. Quantas não sonham com um filho? A mulher carrega em si esse desejo, mesmo que, às vezes, inconsciente – acrescenta Sílvia. – Existe amor maior do que o de uma mulher pelo seu filho? Sempre se doando, amando incondicionalmente sem esperar nada em troca.

– O vínculo do homem com os filhos não é tão forte assim. Acho que é por conta da gestação, amamentação... – conclui Camilo.

A conversa acontecia em um bar entre um chope e outro. Sílvia lembrou-se do acontecido com sua amiga Marisa, mulher de trinta e dois anos, independente, carreira profissional definida, boa situação financeira, de família estruturada e que nunca vivera relacionamento com homem que não tivesse condição semelhante.

Marisa sequer pensava na possibilidade de casar-se com alguém que não fosse capaz de lhe proporcionar o mesmo conforto e segurança que tinha na casa de seus pais. Dizia que para ligar-se a alguém de maneira tão séria, esse alguém precisava ter uma situação financeira estável, com carreira profissional definida. Passou por vários casos amorosos, sofreu, mas continuou firme em suas convicções. Pé no chão sempre, coerente com seus princípios. Até por um noivado passou! Não tinha pressa. Casar-se? Sim, ela pensava em casar-se, mas depois de ter casa própria, confortável, sem que para isso precisasse receber ajuda dos pais. Pagar aluguel? De jeito nenhum!

– O homem devia ter futuro sólido, dizia – pois quando a necessidade bate à porta, o amor foge pela janela. 

Não deixava de ter razão.

– Amor e uma cabana, só em filmes. Amor nenhum resiste a privações, começam as reclamações, as acusações e o amor rapidamente azeda – arrematou Camilo.

Com Marisa tudo acontecera muito rápido: em dois meses conhecera Caio, com mais ou menos a mesma idade que ela, já desquitado e pai de três filhos. A paixão foi fulminante e a mulher esqueceu toda sua filosofia sobre relacionamentos com homem sem eira nem beira.

– Estou muito preocupada com minha filha. – dizia dona Eliane a Sílvia. – Acho tudo rápido demais.

– Tranquilize-se. Marisa tem pé no chão. Quantas histórias conhecemos de namoros e noivados longos que, quando viraram casamento, não duraram um ano? A senhora tem um caso em sua família, não é mesmo? Isso não aconteceu com uma sobrinha sua?

– Sim, é verdade. Mas acho que minha filha está se precipitando. É uma loucura.

– Olha, dona Eliane, quem garante que essa loucura não dará certo? Ela não é nenhuma garotinha ingênua, deve saber que pode estar embarcando em uma canoa furada. E depois, não temos como livrar nossos filhos de todas as dores. Eles precisam vivê-las. Crescer dói.

Em menos de três meses, Marisa namorou, noivou e saiu da segurança da casa dos pais para viver com Caio em uma modesta casa alugada, em um bairro pobre. Todo o discurso de casa própria, confortável etc. foi esquecido.

Menos de um ano depois, o celular de Sílvia tocou, era Marisa pedindo abrigo. A primeira briga acontecera. A moça tinha um temperamento autoritário e o casal acabou brigando numa clara disputa de autoridade.

– Olha, minha amiga, digo-te o que diria para minha filha: não tente impor-se na frente de amigos de teu marido. O homem não tolera isso. Se você não gostou da atitude dele, fale com ele a sós. É claro que ele não ia aceitar que você o repreendesse de forma tão incisiva na frente de outras pessoas. A reação não podia ser outra: ele vai querer deixar claro que com ele mulher não grita. Por que você não foi para a casa de vocês?

A discussão acontecera na casa de praia dos pais de Marisa que, após a briga, jogou suas coisas no carro e foi embora, deixando o marido.

– O que você acha que vai acontecer? Que Caio virá atrás de ti e ficará assustado por não te encontrar? Que ele vai sair a tua procura? Esquece! Isso não vai acontecer porque ele está muito mais zangado que você. E não deixa de ter razão. Hoje você fica aqui, amanhã vá para casa, espere teu marido lá e resolva a situação. Não é se escondendo que as coisas entrarão nos eixos. Não aja como se tivesse quinze anos.

Pouco tempo depois, Sílvia soube que a amiga estava grávida. A amizade esfriara um pouco, Marisa não a procurara mais. O bebê nasceu e menos de um ano, Marisa estava separada. Traição, confidenciara-lhe Luisa, uma amiga em comum.

Depois de alguns meses, após a separação, Sílvia ligou para Marisa e a convidou para ir a sua casa

– Pedro é um garoto lindo! E a maternidade é reconhecida por Marisa como a melhor coisa que lhe aconteceu.

– Por que a separação?

“As brigas começaram quando Pedro estava com dois meses. Daquelas de quebrar as coisas. Durante um ano, eu tive um casamento perfeito. Depois, tudo desabou e a vida virou um inferno. Nós nos mudamos para uma casa que locamos de meu pai. Eu comprei a parte da ex- mulher dele na casa que era deles e que está alugada. Dei meu carro e meu pai emprestou o que faltava. Fiz empréstimo bancário para investir na empresa dele. Nosso casamento estava tão perfeito que achei que devíamos construir um patrimônio juntos. Agora, o que me restou é uma montanha de dívidas, que ele se recusa a assumir, e mais nada. Ainda bem que tenho o Pedro.”

– Um casamento bom não vira um inferno de uma hora para outra. O que houve de fato? – queria saber Camilo. 

“Isso só contei para a Luisa. Nem minha família sabe. Eu sempre fui muito dorminhoca, mas com filho pequeno até o sono muda e a gente acorda espontaneamente durante a noite, você sabe como é. Como não percebi? Depois disso, acabou tudo. Agora aqui estou eu, com um filho pequeno para criar sem ajuda e atolada em dívidas.”

– É, Camilo, quando minha amiga resolveu esquecer suas convicções e mergulhar em um relacionamento, deu-se muito mal. A vida dela está complicada, mas há de melhorar. 

– Veja o perigo da entrega, Sílvia – arrematou Camilo. – O que aconteceu? 

– Aconteceu que Marisa surpreendeu o marido...

– Não! Ele estava traindo a mulher dentro de sua própria casa? Mas com quem? – interrompeu-a.

– Há coisas que são mais destrutivas que um adultério, meu amigo. Marisa surpreendeu o marido cheirando cocaína! A casa caiu. Adeus confiança! Eu também não conseguiria seguir adiante com o casamento.

– Realmente é muito difícil. Mesmo que o cara jure que não usará mais, qualquer atitude um pouco diferente, vem cisma e acusação. E o desassossego chega devastando tudo. Confiança é um cristal delicadíssimo, uma vez trincado, adeus! Não tem como arrumar. 

– A maldita cocaína destrói tudo, família, amigos, trabalho, tudo. Agora lá está a Marisa, cheia de dívidas e o infeliz já partiu para outro casamento. Rapidamente, arranjou mais uma idiota que caiu em sua lábia. Até quando ele vai fazer isso? Até o dia em que será morto por um traficante ou tenha alguém da família assassinado. O pior são os filhos quando começam a entender no que o pai está metido. Quando isso acontece, o super-herói deixa de existir. E o que um pai desses pode fazer se os filhos trilharem o mesmo caminho? Nada. Só assistir a sua própria derrota com dor dobrada. Se não consegue vencer as próprias fraquezas, como ajudar os filhos a vencerem as suas?

           
 Martins, Odenilde Nogueira.Mulheres - In: Caso encerrado, 2014.