MEMÓRIA, ESQUECIMENTO E LOUCURA - QUIXOTE, DALÍ E ALMODÓVAR

Salvador Dalí e Pedro Almodóvar - dois espanhóis influenciados pelo cavaleiro de La Mancha

DALÍ – UM QUIXOTE SURREALISTA

“Ninguém poderia esquecê-la, uma vez vista”, é o que teria dito a esposa de Salvador Dalí (1904-1989), pintor espanhol, ao ver, pela primeira vez, a obra “Los relojes blandos” . Também conhecida como “La persistencia de la memoria”, a pintura tornou-se marco mundial do surrealismo, e, mais que isso, é a estampa de uma visão contemporânea acerca de um dos temas que mais intrigam o ser humano: a memória e suas falhas, ou o esquecimento. A partir da repercussão sobre tal obra, Dalí permitiu-se ter a personalidade pela qual seria conhecido mundialmente: excêntrico e paranoico. A obsessão pela memória talvez seja o elemento motivador da aura de louco que o pintor deixou-se parecer ter – Salvador Dalí, o artista catalão, célebre por seus bigodes finos, compridos e curvos, foi a encarnação simbólica de Quixote no século XX. Vejamos a razão.


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A MEMÓRIA, O ESQUECIMENTO E A LOUCURA NA OBRA DE CERVANTES
A trama escrita por Cervantes retrata como a loucura, ou a perda da razão, pode advir de uma condição de esquecimento. Escrito em dois volumes pelo escritor espanhol Miguel de Cervantes (1547-1616), “El ingenioso hidalgo Don Quijote de La Mancha” narra as aventuras de um fidalgo cuja vida era dedicada à leitura de histórias de cavalaria. Perdendo a razão, Quixote sai em busca de aventuras semelhantes às que leu, empreendendo assim uma jornada interessante e divertida, em que encontra uma donzela para se apaixonar – Aldonza Lourenzo, a quem chamou de Dulcinéia – e perigos a enfrentar – como os célebres (e inofensivos) moinhos de vento. Em cima do cavalo Rocinante, Quixote conta com o fiel escudeiro Sancho Pança, um personagem baixinho e barrigudo, montado em um jegue, e possuidor de uma memória avantajada – clara antítese do protagonista.
A primeira frase do romance deixa clara a intenção que tem o autor em desconstruir a noção de memória. Mostrando desprezo pela exatidão dos fatos contados, Cervantes indica que, em sua escrita e na personalidade de seus personagens, haverá esse mesmo descaso pela precisão. “En un lugar de La Mancha, de cuyo nombre no quiero acordarme, no ha mucho tiempo que vivía un hidalgo de los de lanza en astillero, adarga antigua, rocín flaco y galgo corredor.” (Em um lugar de La Mancha, de cujo nome não quero me lembrar, não faz muito tempo vivia um fidalgo dos que tem lança em estaleiro, escudo antigo, cavalo magro e corredor galgo. – tradução livre minha). Quixote é o retrato de um louco, Sancho cumpre o papel da sobriedade. Entretanto, que seria tal loucura?
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“Quixote morre no fim da narrativa, pois não se pode enlouquecer duas vezes” – disse Saramago (1922-2010), sobre o cavaleiro em questão, em um discurso em que afirmou ser Quixote o personagem mais completo de toda a literatura. Sob essa perspectiva, a loucura de Quixote caracteriza-se pela perda da razão. Ou, ainda falando-se sobre a memória, Quixote esquece a razão, esquece sua real identidade, e preenche essas lacunas com o sonho e o desvario. Ao entregar-se à fantasia, Quixote abdica de sua sanidade mental em nome da identidade de cavaleiro e tal fuga configura-se, pois sua consciência de ser um simples fidalgo era insustentável, a realidade era enlouquecedora para ele. Quixote, então, esquece a razão para não enlouquecer. Quando recobra a consciência de sua identidade original, a razão já está perdida, e não se pode perder novamente o que não foi encontrado. Entretanto, tal realidade continua sendo insustentável, e não há saída que não a morte. Questiona-se, assim, a verdadeira noção de loucura – seria o fidalgo Quixote o louco, por entregar-se às suas fantasias? Ou o seria doido aquele que se prende à razão e à realidade? A loucura de Quixote, se assim pode ser chamada, é apenas o esquecimento de uma condição que não lhe aprazia.
Alguns elementos da narrativa se fazem pilares a serem conhecidos para a abordagem da memória na obra de Cervantes. Um deles é a personalidade de Sancho Pança, o fiel escudeiro de Quixote. Dono de uma memória privilegiada, o personagem é o contraponto aos desatinos do amigo. Quando questionado, evita expor a irracionalidade das aventuras empreendidas por Quixote, entretanto, serve-lhe de suporte racional e é quem não deixa que o fidalgo-cavaleiro se perca – mentalmente e fisicamente – em suas jornadas. Outro elemento interessante é a substituição que Quixote faz. Seu passado de fidalgo é eliminado e ele toma para si o pretérito daquilo que leu – é a transição da memória do vivido pela memória do lido, e assim constrói a personalidade que empunhará como uma espada para combater as injustiças mundanas.


ALMODÓVAR E SEU PERSONAGEM QUIXOTESCO NO SÉCULO XXI

O filme “La piel que habito” (A Pele Que Habito) , de 2011, dirigida por Pedro Almodóvar (1949) é uma das obras cinematográficas contemporâneas de maior caráter psicológico. Em resumo, um cirurgião plástico espanhol, Robert Ledgard (vivido por Antonio Banderas), perde a mulher de forma traumática e, poucos anos depois, vê a filha se suicidar após uma tentativa de estupro. O estopim propicia que o médico dê vazão a um projeto doentio – Doutor Robert captura o estuprador de sua filha, o faz refém, e, mediante uma cirurgia de mudança de sexo, inicia o processo que culminará na total transformação estética do jovem Vicente, deixando-o idêntico ao que fora sua esposa. Com esse empreendimento, o médico faz centenas de intervenções cirúrgicas para cuidar de cada detalhe, ministra hormônios femininos e, por fim, veste Vicente como Vera, cobrindo-lhe de vestidos e maquiagem. Há, na história, a figura de Marilia, a governanta da imensa casa onde o médico vive, e que, durante o filme, revela-se sua mãe. Marilia é como um portal de Robert ao passado. Tendo criado a ele, e à sua filha morta, a empregada é alguém que testemunhou cada evento que levou à criação de um louco que fez rigorosamente tudo para trazer a esposa de volta à vida.

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O caráter Quixotesco de Robert é facilmente perceptível ao destacar os elementos de ambas as histórias, e relacioná-los. Assim como Quixote, Ledgard é um homem solitário cujo passado é atraente demais para que ele possa viver o presente. No caso de Quixote, seu passado e sua memória situam-se nas histórias de cavalaria. Já para o médico, é a lembrança da existência da esposa e da filha que o prende. O projeto de transformar algo odiado em algo amado também está presente nas duas narrativas – Quixote abandona o fidalgo que era para tornar-se cavaleiro justiceiro; Robert transforma o motivador do suicídio de sua filha em dono do corpo de sua amada esposa. Ambos recorrem à imagem da musa inspiradora como encorajadora de seus empreendimentos – Dulcinéia e Vera são mulheres sem as quais não existiriam, nas mesmas condições, Quixote e Robert. Assim como Sancho é a memória e a razão do cavaleiro de La Mancha, também o é para o cirurgião plástico Marilia, sua mãe e empregada, que guarda em si cada lembrança da vida de Robert e o recorda, a todo tempo, o desvario que é manter um prisioneiro em casa e transformar-lhe o corpo.

Quando o objetivo de Robert é alcançado – a nova Vera está pronta – ela (ou ele) é a responsável por matar-lhe com um tiro certeiro. Também é assim para Quixote. Sua projeção de identidade ideal, seu projeto de vida, sua caminhada como cavaleiro é quem o surpreende e, dando-lhe um lampejo de lembrança da vida anterior, o mata subitamente. As obras de tais personagens são seus algozes.


LOS RELOJES BLANDOS

Como no quadro de Dalí, a memória funciona como representação de um passado inatingível. Os relógios derretidos da pintura mostram como a passagem do tempo deixa tudo deformado – Quixote esqueceu-se de sua razão e a volta ao conhecimento lhe tirou a vida. Sua memória, personificada em Sancho Pança, era deformada e montava um jegue, ao passo que ele próprio, significando a “loucura” montava um cavalo. O personagem de Cervantes, bem como ele próprio, desprezou a lembrança e construiu o passado que quis. O excêntrico Dalí representou a memória como algo persistente que insiste em nos fazer reviver o passado, mas que o deforma com o correr dos ponteiros. O obsessivo Robert, de Almodóvar, é o homem que não quer abdicar de sua lembrança, por isso reconstrói a memória em um protótipo oco de significado. Três autores espanhóis – Cervantes, Salvador Dalí e Almodóvar – criaram três personagens – Quixote, Dalí personagem e Dr. Robert – que tentaram retratar o que a memória lhes lembrava – uma vida de cavalaria apreendida dos livros, a noção da passagem do tempo e da deformação do vivido e a mulher perdida, em um corpo qualquer. As três obras explicitam, portanto, a mesma máxima – a memória é a representação de um passado que não existe mais e, portanto, é inatingível.

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http://lounge.obviousmag.org/ponto_e_virgula/2013/01/memoria-esquecimento-e-loucura---quixote-dali-e-almodovar.html

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