O processo criativo na literatura: opinião

A maior dificuldade enfrentada por quem tenta elaborar algumas palavras sobre O processo criativo na escrita literária é, certamente, definir para si, algo indefinível. Uma questão que se arrasta pelos séculos: afinal, o que é literatura?

Esta pergunta pode ser respondida de diversas formas. Provavelmente todos presentes no auditório sabem o que não é literatura. Mas quando nos aproximamos das margens, dos limites daquilo que claramente é literatura, nos deparamos com muitíssimas dúvidas, aporias terríveis. Sinto-me como Jorge Luis Borges, que inquirido sobre poesia disse: "... trago uma citação de Santo Agostinho, que a meu ver, vem bem a calhar. Disse ele: 'O que é o tempo? Se não me perguntam o que é o tempo, eu sei. Se me perguntam o que é, então não sei". Sinto o mesmo em relação a poesia." Esta para mim é a melhor definição sobre literatura.

Dito isto, sabendo que literatura não é algo facilmente delineável, chegamos a outro problema colocado: cada escritor tem um processo criativo particular. Há os que necessitam de silêncio absoluto e um mínimo de intervenção externa, e há os que podem escrever por horas em meio ao caos da praça de alimentação de um shopping. Há aqueles como Chico Buarque, que escrevem "rascunhos, esboços, ideias esparsas, no computador ou em qualquer papel ao alcance da mão. Quando o livro já está encaminhado, escrevo no computador, imprimo, leio, risco, rasuro, anoto, volto ao computador, imprimo, leio e assim sucessivamente. Reescrevo tudo inúmeras vezes...". Ou seja, aqueles que suam infinitamente em cima do papel. Aqueles que deixam que a estória surja enquanto se escreve; por outro lado há aqueles que concebem toda a estória previamente em pensamento, e premeditam todos os passos a serem seguidos antes de encararem a folha em branco na tela do computador. Sabe-se que J.R.R. Tolkien agia assim. Eu, por exemplo, começo sempre pelo fim, de forma que escrevo sempre o último capítulo do livro, ou a última estrofe do poema, no início de todo o processo criativo. Quando o final está claro para mim, é que o começo tem lugar para desenrolar-se. 

E isto, apesar de não parecer muito importante, apresenta-se crucial na minha opinião. Compartilho da opinião de Edgar Allan Poe, grande poeta e contista estadunidense que um bom conto deve ser lido de uma vez só, em duas horas no máximo. Para isto é necessário que o texto mantenha-se cativante da primeira à última página. Apenas um texto que mantenha uma coerência tensa - e quase esgarçada - pode prender o leitor até o seu final com o mesmo prazer do contato inicial. Por isso escrevo para que os capítulos não possam ser deixados pela metade. O leitor não deve - e ai de mim se conseguir - parar ao fim de um parágrafo qualquer para dormir. Se eu for feliz em meu intento, ele irá até o fim do capítulo, ansioso por logo dormir e logo voltar a ler o próximo capítulo. Meu capítulo é o conto de Poe.

Claro, porque considero que a felicidade da escritora ou do escritor, está ligada ao fato de que seus livros sejam avidamente lidos, até o seu final. Isto é sinal de que não escreveu em vão. Peço licença para contar uma estória que certamente vocês já conhecem: os contos das 1001 noites. 

Nesta estória persa, Sheherazade (não confundir com aquela moça que entende que pessoas sejam amarradas a postes) é uma moça de extrema beleza e inteligência que cativa o poderoso rei Shariar. Acontece que o rei Shariar havia sido traído por sua esposa e tornara-se um paranoico femicida, casando sempre com uma esposa à noite e tirando-lhe a vida de dia. Conheceu Sheherazade três anos depois que iniciou sua jornada genocida (num rápido cálculo matemático podemos perceber que 1095 mulheres perderam suas vidas) e decidiu que ela seria a próxima. Entretanto, com astúcia,Sheherazade começou a contar um conto a sua irmã mais nova, perto do rei. Num primeiro momento, Shariar aborreceu-se, mas em seguida interessou-se pela estória, querendo saber tudo. Quando estava quase amanhecendo, Sheherazade calou-se e disse que apenas continuaria a estória no outro dia. O rei não conseguia matá-la enquanto não soubesse o fim do conto. Assim ela, noite após noite, adiava a sua morte, e encantava o cruel rei. Claro que o rei encontrara espaço, em meio aos contos dela, para consumar o casório, e ela deu a luz a três filhos. Assim, depois de 1001 noites (e 1001 contos)Sheherazade conseguiu mostrar ao rei seus filhos e 'amoleceu' o seu coração. Viveram felizes para sempre. Claro que isto é um grosseiro resumo.

O importante aqui - relevemos o fato do tirano genocida acabar a estória como herói merecedor de um final feliz - é percebermos que Sheherazade é a imagem do escritor. Sempre que um leitor interrompe um livro pela metade e não chega ao seu final, mata o autor, mesmo que não saiba. Todo o processo literário, toda a escrita, é um processo de sedução, em que o autor implora ao leitor que não o mate, que não feche o livro antes de terminá-lo, que vá até o final da estória. É óbvio que todos já fechamos algum livro antes de acabá-lo, deixando-o pela metade, ou nem isso. Mas não precisamos alardear aos quatro ventos, pois assim matamos o escritor mais um pouquinho.

E todo escritor é, como Sheherazade, um contador de estórias. E nada pior para um contador de estórias que a falta de uma audiência. E a forma como se conta a estória é o que cativa, ou não, os leitores. Por isso é que, no processo criativo, mais do que saber o que se vai contar, é importante saber como é que se vai contar.

E a formação de uma audiência só é plena quando os audientes também contam estórias, pois todo bom contador de estórias é um bom audiente, porque gosta de estórias, porque sabe o que é uma boa estória. E é isso que penso sempre que alguém diz: "o Brasil é um país de poucos leitores". É de poucos leitores porque é de poucos escritores, e é de poucos escritores porque é dificílimo contar estórias para um público que não se permite contar estórias. É um círculo nefasto. Aqui estamos nós, às tantas da noite, dezenas de pessoas, e quantas se permitem contar estórias num pedaço de papel? E por quê? Precisamos colocar as estórias que queremos contar no papel. Mais do que vir até aqui para dizer que leiam, venho para dizer: escrevam, escrevam e escrevam!

Há um poema de Vinícius de Moraes que chama-se O Dia da Criação, em que ele conclui - depois de um ir e vir fantástico - que Deus deveria ter descansado no sábado, e assim não teria criado o homem, e o mundo seria perfeito. Claro que era uma brincadeira de Vinícius, que amava a vida, e não desejava não nascer. Mas o fato é que, em qualquer mito criacionista, de qualquer religião, o homem é sempre uma fonte de desgosto para o criador (ou os criadores). Sempre indo de encontro aos ideais de bondade, fraternidade e amor. Por quais motivos então, estes seres poderosíssimos nos deram vida? Se levássemos o criacionismo à sério, poderíamos afirmar que Deus precisava contar uma estória, e os animais são audiência muito desatenta e calada. 

Deus criou sua audiência e logo escreveu um livro; e o escritor brinca de Deus quando escreve em busca de alguém que lhe leia. Cria gente para que outra gente se encante e passe adiante a mania eterna de contar estórias e criar gentes. 


(Escrito por Yuri Pires - pernambucano, natural de Recife, radicado em São Paulo desde 2011. Estudante de Letras da Universidade de São Paulo (USP), cursou História na Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE) até o penúltimo ano, no entanto, não graduou-se. É autor de "O Homem e o seu Tempo" (editora Chiado) que será lançado em Dezembro em todo o Brasil e em Portugal. É ainda estudioso das relações entre futebol e literatura.)

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A primeira delas é o processo discursivo como formador do “eu” narrativo. Responde à seguinte pergunta: Por que escrevo? Aqui, temos algumas opções de escolha: gênero, tema, apelo do público e da época. O autor delineia o leitor a quem quer se dirigir e pré-formaliza o conteúdo da mensagem.

A outra etapa do processo criativo é abordar o aspecto instrumental da palavra. São os meios, que atendem às questões prosaicas da escrita: à mão, à máquina ou no computador? Lápis ou caneta? Tudo isso tem a ver com o conforto físico, a ergonomia, a serenidade, a economia de tempo. Responde à seguinte pergunta: Como escrevo”?

É fundamental haver um projeto para uma obra. Mesmo que o autor deixe a história fluir espontaneamente, há que haver um plano. Começo, meio e fim. Receita? Não existe. O processo criativo funciona diferentemente para pessoas diferentes.
Clarice Lispector escrevia com a máquina no colo.
Hemingway escrevia em pé. Immanuel Kant também.
Gabriel García Marquez primeiro fazia ponta em uma dúzia de lápis, antes de começar a escrever.
Mas há pressupostos para a produção literária. Os dois mais importantes: correção ortográfica e técnica adequada.

DEPOIMENTOS

Para Moacir Scliar, da Academia Brasileira de Letras, o processo do fazer literário, como é atividade consciente, envolve método, procedimento e rotinas.

Ignácio de Loyola Brandão, da Academia Paulista de Letras: “Escritores são pessoas maníacas e obcecadas. Quando estão produzindo alguma coisa, comem, dormem, bebem e transam com o texto. Só o texto importa, nada mais. Por instantes, escritores vivem. Depois, por instantes escrevem. Em que ponto vida e escritura se separam e onde se mesclam, se confundem, quando não sabe mais o que é vida ou literatura? Na verdade, literatura é vida e vida é literatura.”

Adélia Prado, poeta: “Eu escrevo e não sei como é que surge, não. Desejo expressar aquilo. Quando vou fazer um texto, a minha única preocupação é a fidelidade absoluta ao que estou sentindo.
(...) Rigorosamente falando, o texto não é meu. (...) Não sou dona nem dou ordens à poesia, sou serva dela e ela simplesmente se escondeu.

Amadeu de Queiroz, romancista e pesquisador: “Logo que imagino um romance, crio os seus personagens e, antes do mais, faço uma relação de todos eles, com os nomes e as características de cada qual. Assim os personagens começam a existir desde logo. Vão adquirindo personalidade... (...) Quer saber de uma coisa? Quando escrevo, procuro imitar o incrustador que, aos pedacinhos, faz o admirável conjunto de sua obra.”

Autran Dourado, romancista: “Em geral, organizo o livro antes de estar pronto. Quando me vem uma ideia súbita, minha tendência inicial é correr para casa, sentar e escrever. Por isso, onde eu estiver, ando sempre com um caderninho no bolso. Planejo, tomo notas, até que surja a forma. Leio uma porção de livros auxiliares. Estudo, faço fichas, lista de palavras boas. Deixo que a ideia súbita cresça e germine dentro de mim, crie sua própria forma.”

Chico Buarque: “Quando escrevo um livro, trabalho sem parar, até dormindo. Às vezes, viajo para ter sossego, às vezes, fico por aqui mesmo, mas mando dizer que estou na fazenda, embora não tenha fazenda. Quando começo a escrever sei exatamente o que vai acontecer depois. Só que depois acontece outra coisa...”

Vamos à Argentina. Adolfo Bioy Casares: “Em geral componho mentalmente a história antes de começar a escrever, por gosto de inventar e também por prudência, para livrar-me da ansiedade de saber se poderei ou não resolvê-la de modo aceitável. A outra parte do meu modestíssimo método consiste em escrever diariamente. Italo Svevo tinha razão: “Não há melhor maneira de escrever com seriedade do que rabiscar um pouco todos os dias”.

Vamos a Portugal. Agustina Bessa-Luís: “Trabalho com disciplina e respeito a vontade dos meus personagens, tão reais como objeto de inspiração... Os personagens ultrapassam muitas vezes as barreiras que lhes ofereço. Às vezes tenho que matá-los para me livrar de suas críticas e exigências... Não reescrevo, infelizmente. Não me levo tão a sério que pretenda ser perfeita.”

Vamos à Inglaterra. Aldous Huxley: “Escrevo um capítulo por vez, descobrindo meu caminho à medida que prossigo. Tenho apenas uma ideia geral e, então, a coisa se desenvolve, enquanto escrevo. (...) Mas jamais estou inteiramente certo quanto ao que irá ocorrer no capítulo seguinte, enquanto não o escrevo.”

Vamos à França. Paul Valéry (este foi sintético): “Os primeiros versos te dão os deuses, o resto você tem que fazer.”

E uma curiosidade:
O escritor Stephen King conta que, num bom livro de terror, é preciso haver treze sustos.

Alguns autores tentaram, digamos assim, organizar esses processos. O mais famoso é, talvez, o norte-americano Edgar Allan Poe, no ensaio “A Filosofia da Composição”. Ele descreveu o processo que seguiu para compor o seu poema mais famoso, “O corvo”. Pretendeu, assim, provar que escrita poética não é um resultado de inspiração, mas de trabalho do autor.

Resumindo o pensamento de Poe:
• Comece seu texto literário pelo final;
• Não subestime a importância da originalidade;
• Emocione o leitor;
• Tenha consciência do efeito pretendido com seu texto;
• Escolha a extensão, o tom, a linguagem, a temática do seu texto literário a partir do efeito aspirado;
• Tenha total domínio dos recursos artísticos existentes.

As considerações acima se aplicam à produção literária, mas podem ser estendidas para a elaboração de qualquer texto, inclusive o técnico. 

(Escrito por: Joaquim Maria Botelho

Joaquim Maria Botelho é jornalista. Comandou equipes na revista Manchete, TV Globo, TV Bandeirantes e jornal Vale Paraibano. Sempre cuidou para que a elaboração das notícias permitisse entendimento claro por parte do leitor e do telespectador, fosse ele empresário ou gari. Com o mesmo espírito, atuou na Embraer, no Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais e na Secretaria Estadual de Educação de São Paulo. Mestre em Crítica Literária, é autor de vários livros, além de empresário de comunicação e palestrante. Também assinou traduções do inglês (Cultrix e Global) e do espanhol (Fundação Heinrich Böll). Atualmente preside a União Brasileira de Escritores - UBE. Foi professor da Uniban e da Universidade de Taubaté, onde formou jornalistas que hoje atuam com destaque na imprensa. Seus principais livros: "Imprensa, poder e crítica", "Redação empresarial sem mistérios" e "Costelas de Heitor Batalha".)




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