Rousseau

Para Rousseau, o Homem nascia livre e bom, a sociedade é que o corrompia. Suas ideias podem ser sintetizadas com a belíssima frase inicial de sua principal obra, O Contrato Social,: "“O homem nasceu livre, e por toda a parte geme agrilhoado; o que julga ser senhor dos demais é, de todos, o maior escravo".

Dor - conto - Odenilde Nogueira Martins

Dor

            Parecia que lhe esmagavam o peito, tamanha era a dor que sentia.
            - Sua vaca! Você trouxe essas merdas aqui! Você vai me pagar! Te suma da minha frente e leve essas fedorentas daqui!
            Foi assim que a mãe gritou-lhe ao avistar, chegando ao portão, as duas fisioterapeutas, que a custa de muita economia, os filhos contrataram para reabilitá-la, fora vítima de um AVC isquêmico.
            Dona Leôncia fora encontrada caída no chão de seu quarto por um dos filhos. Ficara internada em uma unidade especializada em AVC agudo por vinte dias, depois, transferida para um hospital clínico por mais dez. Foram dias muito sombrios e, alguns deles, sem esperança de que teriam a mãe de volta.
            No entanto, lá estava dona Leôncia de volta a casa. O Natal foi comemorado com muita gratidão a Deus por permitir que ela voltasse. Tinham pela frente um caminho árduo, sabiam disso.
            - Mãe, por favor, se acalma. Elas estão aqui para te ajudar a deixar a cama, para que você volte a andar.
            - Cala a boca! Eu vou quebrar a tua cara! Eu não comando mais a minha vida? Já não disse que não quero? É você que decide na minha casa? Sua vaca! Cadela!
            - Mãe, por favor, é para o teu bem. Nós só queremos te ver andando novamente. Se você não fizer a fisioterapia, vai ficar entrevada na cama.
            A cena descrita já acontecera outras vezes desde que a reabilitação começara, e a dor também não era nova, mas sempre sentida com a mesma intensidade pela filha.
2
            - Nelson! Nelson! Onde se enfiou esse homem de Deus!
            - O Nelson tá no outro mundo, mulher!
            - Eu sei!
            - Então, por que tá chamando? Quem eu sou?
            - Não tô chamando! Você tá louco, Mauro! Onde é que você tava que demorou tanto? Atrás de mulher, seu sem-vergonha! Pensa que eu sou boba? Tô de olho aberto com você. Vou contar pro meu filho. Você vai ver! Vou te mandar embora! – gritava, dedo em riste.
            - Se me mandar embora, quem vai cuidar de ti?
            - Arrumo outro!
            Todas as noites, era Nelson, o falecido marido que dona Lia chamava. Parecia que Mauro, o marido atual, não existia em sua memória delirante. Sofrera um AVC no mesmo dia que dona Leôncia. Tem três filhos que não aparecem nunca! É o pobre Mauro, chamado nos delírios por Nelson, o falecido, quem ficava vinte e quatro horas, todos os dias, como acompanhante.
3
            - Então você vai viajar? Para onde?
            - Vou para a Europa.
            - Com quem?
            - Com três amigas.
            - Está cheio de “amigas”!
            - É verdade. Sempre estive cercado de muitas mulheres.
            - Por que veio aqui se tem tantas mulheres?
            - Vim te visitar. Você é minha amiga.
            - Que amiga! Não quero ser tua “amiga”!
            - Parece que está com ciúme! Não tenho culpa se as mulheres vivem me cercando! – tudo foi dito com voz e trejeitos efeminados pelo homem de cabelos brancos a uma senhora de noventa e dois anos! - Eu e você somos amigos. Só isso! Não quero nada mais com você.
            - Ele gosta muito de mim. Casa comigo na hora que eu quiser. Para a minha família, ele é meu noivo - dizia dona Valda a uma moça que se encontrava no quarto, depois que o assediado pretende saiu. – Eu é que não me decidi.
            Dona Valda se expressava muito bem, era pintora e contava que o filho construíra um atelier novo para que pudesse pintar em um espaço amplo, arejado e com boa iluminação.
            Mayara estranhou o filho ter se preocupado em construir-lhe um bom atelier, já que no dia em Valda chegou, ele a deixou dizendo que voltaria logo e nem sinal. A senhora passou a noite sozinha. Quando foi servido o lanche da noite, penalizada, a moça acordou a anciã:
            - Dona Valda, trouxeram um lanche. A senhora quer comer?
            - Ah! O meu filho trouxe? Onde ele foi? – perguntou ansiosa, os olhos correndo pelo quarto.
            - Não. O seu filho ainda não chegou. Quer que eu ajude a senhora a sentar-se?
            - Sim. Obrigada, minha filha. Eu não consigo comer deitada. Será que você pode me dar um copo de água? O meu filho disse que ia buscar um ventilador e que já voltava.
            - Então ele não vai demorar.
            Mayara nunca viu o tal filho. Quem passou a acompanhar a mulher, durante a noite, foi uma jovem estagiária de enfermagem, paga pela própria Valda. Durante o dia contava com a ajuda de outras pessoas que por ali passavam, enquanto se recuperava de uma pneumonia.
4
            - Essa balofa, aí do lado, roubou uma blusa minha! – gritava dona Leôncia, apontando para Lia.
            - Não, vó. Ninguém roubou nada – tentava acalmá-la, Silmara, a nora.
            - Roubou sim! Eu vi! Tá dentro da bolsa dela. Pegue a minha blusa!
            - Vó, não faz assim. Dona Lia vai se ofender.
            - Devolva já, sua ladrona!
            - Eu não roubei nada – defendia-se a mulher. – Pode olhar!
            - A senhora desculpe. Claro que a senhora não roubou. Dona Leôncia está confusa – explicava a nora, tentando desculpar a atitude da sogra.
            - Ela tá roubando todas as minhas coisas! Até os meus cremes e sabonete. Quero a minha blusa de volta! – gritava.
            Quando a filha chegou ao hospital, encontrou a mãe vestindo uma camiseta cor de abóbora, com os pés calçados e de fralda geriatra.  O olhar da cunhada dizia: O que fazer? Explicou que, com a permissão de dona Lia, mostrara a Leôncia as coisas de sua bolsa. A camiseta regata, segundo a sogra, fora roubada e para garantir que não mais seria furtada, fez com que a vestissem.  Mayara não sabia se ria ou se chorava, a cena era no mínimo tragicômica.
5
            Ainda não conseguia entender sua incapacidade de ver a fragilidade daquela mulher. Para ela, a velhice, a fraqueza muscular e óssea, a carência de atenção, eram insignificantes. Ela era uma mulher forte, altiva e independente.
            - Seis filhos e ninguém pra me socorrer! – foi o que disse, ainda de maneira clara.
            Era terça-feira, 11.30, quando entrou em casa, o celular, que havia deixado sobre a cama, estava tocando. Era um de seus irmãos, que sequer conseguia lembrar qual deles, dizia-lhe:
            - Nossa mãe está aqui no Hospital Santo Antônio. Ela está muito mal.
            O resto de que foi falado, também não se recorda. Se é que algo mais foi dito.  Incapaz de entender o que estava acontecendo, viu-se diante do hospital.
            “Minha mãe em um hospital!” – pensava incrédula. Aquela mulher, que sempre vira como uma rocha, em um hospital?
            “Deve ser um engano ou um afobamento de meu irmão que sempre foi muito medroso quando o assunto é saúde” – tranquilizava-se.
            Como atravessou a rua? Não sabe. Passando pelo portão, viu seus irmãos. Era claro o desespero no rosto de cada um. Santiago estava sentado sobre uma mureta com o rosto encravado entre as mãos, soluçando convulsivamente.
            “Meu Deus! O que era aquilo tudo? Minha mãe! Imagine! Eles devem estar dramatizando!” – tentava convencer-se.
            - O que aconteceu? Por que a mãe está aqui?
            - Ela teve um AVC – respondeu uma das irmãs. – Nós te ligamos muitas vezes, deixamos mensagens, mas você não atendia.
            “Eu e minha maldita mania de achar que não devia levar celular para a escola, já que é expressamente proibido o uso do aparelho pelos alunos. Amaldiçoou o meu senso de “certo” e “errado”, a obsessão em cumprir regras!”- maldizia-se.
            - Às cinco horas me levantei pra ir ao banheiro, vi a luz do quarto dela acesa e pensei: “A mãe tá se levantando agora, dá pra dormir mais um pouco. E voltei pra cama.” Às sete e pouco, levantei pra me arrumar pra trabalhar, olhei pela janela, vi que a porta estava fechada e a cuia de chimarrão estava em cima da mesa. Chamei:
            - Vó! Tá tudo bem? – ouvi ela resmungar e pensei: “Tá no banheiro escovando os dentes.” Fui no muro e chamei novamente e ela resmungou. Pensei que ela estava mesmo escovando os dentes. Entrei, terminei de me arrumar, peguei a moto e falei pra Miranda:
            -Venha junto. Vamos passar na mãe pra ver se está tudo bem. A Miranda entrou e eu fiquei no portão, em cima da moto. A Miranda olhou pela janela do quarto e ela estava caída no chão. Arrombei a porta, deixei a moto, peguei o carro e levei pro PA. É o mais perto. O médico examinou, botou na ambulância e veio acompanhando. Disse que ela teve um AVC e que o atendimento nas quatro primeiras horas era muito importante para a recuperação dela.  Quanto tempo ela estava caída? Por que eu não fui lá quando vi a luz acesa? Por quê? Meu Deus! Por que eu não fui lá antes! – lamentava-se, desesperado.
            - Estava na casa dela e fui dormir na casa da minha cunhada ao invés de ficar ali. Falei pra ela: “- Vó, eu vou dormir lá na Mari. Ela me ajuda a passar a limpar o terreno e depois venho limpar a tua casa. Ela me disse: “Pode ir”. Ela estava bem! Se eu tivesse ficado, ela tinha sido socorrida antes. Por que eu não fiquei! – dizia em pranto uma de minhas irmãs.
            Por que, por que... Por quê? As culpas começaram a ser confessadas, pensava que era a forma de se aliviar o desespero. Como não perceberam que a mãe estava vulnerável, que tinha envelhecido? Setenta e seis anos! E achavam que nada lhe aconteceria! Refletia, agora, que existe uma incapacidade de se perceber que os pais são mortais, assim como quando jovens, a mãe é um ser assexuado. Não se enxerga a mulher com necessidades de mulher. Acha-se que mãe sempre vai estar por perto para confortar e segurar a barra, inquebrável, forte, inatingível pelas mazelas, que no dia a dia atingem outras mães! A deles não! A deles viveria para sempre! Triste engano! E quando nos deparamos com a realidade, ficamos completamente desprotegidos e cheios de culpas. A mãe não mais estaria por perto para perder sono, por causa de um dos filhos, sofrer porque sofriam, sempre vigilante as suas falhas, aos seus problemas. A mulher que jamais se arcaria, está ali... Completamente indefesa e pode deixá-los em um segundo! Como lidar com essa verdade? Tirar forças de onde se é ela quem sempre fez isso?
            Ah! Dona Leôncia! Que vida a tua! As lembranças corriam por sua cabeça. Estava diante de Mayara, a mulher alta, forte, com uma vida de sofrimentos: seis filhos, marido alcoólatra que a espancava. Viveu com ele uma vida de tristezas. Seis filhos, tinha de aguentar! dizia ela quando perguntavam por que não o deixara! Viúva aos vinte nove anos! O marido morrera vítima de cirrose hepática. Não precisariam mais, no meio da noite, pedir socorro em casa do primeiro vizinho que lhes abrisse a porta.  Aquele tempo acabara finalmente! Vida nova! Nem conseguiu sentir verdadeiramente sua morte. O que sentiu foi certo alívio. Lembrava-se que, chegando a casa, após o enterro, sentou-me com três de seus irmãos e, aos doze anos, planejou como seriam suas vidas sem o pai. Não havia tristeza.
6
            Mayara e os irmãos têm visto a mãe, dia a dia, como uma pessoa diferente: já viram a mulher de setenta e sete anos ser uma mocinha apaixonada, querendo estar perfumada e maquiada, enfeitada com muitos badulaques para impressionar o cuidador- amor de sua vida-, a paixão pelo médico que a acompanha, as crises de ciúme por julgar estar sendo traída pelas filhas, ora a mãe amorosa ora violenta, por vezes, uma casca sem lembranças, por vezes, de uma lucidez dolorosa, consciente de sua completa dependência. Precisam saber lidar com os momentos terríveis em que a mãe não os reconhece e os chama incessantemente, implorando que a levem para a casa dela. São tantas as provações!
            Mayara, quando se sente perdida, pensa:
            “É isso que temos. E podemos suportar. Se, quase o tempo todo, ela não sabe quem somos, nós sabemos que é nossa mãe.”

           A imagem pode conter: 2 pessoas, pessoas sorrindo, pessoas sentadas, árvore e atividades ao ar livre
Odenilde Nogueira Martins

           
           
           

            

Unidade de resgate - conto - Odenilde Nogueira Martins -

– Pessoal, ocorrência próximo ao posto da Polícia Federal. Acidente entre dois veículos com vítimas presas às ferragens – a notificação era recebida via rádio.

O som das sirenes imediatamente se fizeram ouvir. Era preciso alertar motoristas e pedestres de que havia uma emergência para que abrissem espaço para a passagem das viaturas, já que cada segundo podia significar a diferença entre vida e morte. 

Os ponteiros do relógio de parede mostravam o adiantado da hora: 23:h45min.

– Vou na lanchonete do Alemão buscar um x-salada. Quer que te traga alguma coisa? – perguntou Gracindo ao companheiro.

Não era rotina duas pessoas permanecerem na unidade, mas Gracindo havia sofrido uma torção no joelho e, por conta disso, não sairia para atender a pedido de socorro.

– Não, companheiro. Trouxe um rango de casa e mais tarde preparo um café. Aqui tá tudo dentro do esperado para uma noite de sexta-feira. Não precisa se apressar.

O som de metal, riscando o piso áspero, doía não só nos ouvidos, doía nos nervos! Era meia-noite. Até, então, tudo estava tranquilo na unidade do corpo de bombeiros, que ficava próxima a uma rodovia federal. A presença de um corpo, vítima de acidente, que aguardava o rabecão do instituto médico legal, não era novidade. Fazia parte da rotina dos plantonistas. O saco preto em um canto não era motivo de desconforto. Ali, convivia-se com sacos pretos, diariamente.

Jucão era o atendente, naquela noite. Tinha como missão receber os chamados de socorro e repassar aos colegas que saíam para atender à ocorrência. Acabara de fazê-lo, os companheiros haviam saído há uns quinze minutos. Estava só. Não que isso o preocupasse. Dizia sempre que se sentia em segurança, pois os mortos não fazem mal a ninguém.

– Tenho medo é dos vivos! – respondia, quando perguntado, sobre o indigesto ofício de recolher cadáveres à beira da rodovia.

O local era famoso por conta das muitas histórias contadas. Padre Jucélio, a cada dois meses, ia ao local para dar uma benção:

– Reza e canja não fazem mal a ninguém. É bom estar de bem com o Todo Poderoso. Com tanta desgraça que vimos todos os dias, nosso espírito preciso se fortalecer na fé – dizia o comandante da corporação. 

Os pelos de Jucão, da cabeça aos pés, eriçaram. Um frio percorreu-lhe a espinha. Estava só! Que barulho era aquele? 

– Do lado de fora. Deve ser alguém do lado de fora! Deixa de bestagem, homem – falou consigo mesmo.

Relaxou. Tantos anos servindo, ali, nunca tivera medo! Voltou a concentrar-se na tela do computador. Dez minutos depois, já esquecido do som de metal riscando o piso áspero, tornou a ouvi-lo, ainda mais cortante. Parecia descer e subir a rampa que dava acesso a um depósito, que também servia de dormitório em noites calmas.

– Não é do lado de fora. É aqui dentro!

Levantou-se e espiou através do quadrado de vidro que havia na porta. Estava tudo quieto. Já estava dando as costas para a porta, quando ouviu:

– Jucãooo... Jucãooooo... 

Alguém estava querendo se divertir as suas custas.

– Quero ver quem é o engraçadinho – murmurou, tomando a direção da rampa de onde vinha o ruído de metal riscando o cimento áspero do piso, e de onde vinha o som da voz que o chamava. 

Do alto da rampa, viu o saco negro, que aguardava o rabecão, mover os braços. Em uma das mãos, um pedaço de ferro que usava para riscar o chão.

– Creio em Deus Pai todo poderoso, criador do céu e da Terra...

Enquanto rezava ia saindo de costas, olhos pregados na assombração. Quando tomou certa distância, empreendeu uma corrida para fora da unidade. Ouvia a voz:

– Jucãoooo, volte! Não me deixe aqui. Volteeeeeee!

Só parou de correr quando chegou às margens da rodovia.

Ainda ouvia alguém chamando:

– Juca, venha cá! Sou eu, o Gracindo! 

Não teve conversa. Ninguém conseguiu convencê-lo a voltar. Pelo sim, pelo não, padre Jucélio continua visitando a unidade regularmente.



Odenilde Nogueira Martins


POBREZA POLÍTICA - Pedro Demo


Em tempos, politicamente, tão bicudos, leitura mais do que recomendada. Após ler atentamente, sugiro a leitura de "O príncipe" - Maquiavel e, se por ventura, o governo que você apoia estiver seguindo os conselhos dados por Maquiavel ao príncipe, há que se repensar seu apoio. Antes que se discuta política partidária, que se entenda política.


POBREZA POLÍTICA (POBREZA HUMANA)

Pedro Demo

Pobreza política não é outra pobreza, mas o mesmo fenômeno considerado em sua complexidade não linear. A realidade social não se restringe à sua face empírica mensurável, mas inclui outras dimensões metodologicamente mais difíceis de reconstruir, mas, nem por isso, menos relevantes para a vida das sociedades e pessoas. Estamos habituados a ver pobreza como carência material, no plano do ter: é pobre quem não tem renda, emprego, habitação, alimentos, etc. Esta dimensão é crucial e não poderia, em momento algum, ser secundarizada. Mas a dinâmica da pobreza não se restringe à esfera material do ter. Avança na esfera do ser e, possivelmente, alcança aí intensidades ainda mais comprometedoras. Mais drástico do que não ter mínimos materiais para sobreviver é não ser nada na vida. O PNUD, desde o RDH de 1997, maneja o conceito de pobreza humana, para indicar – por mais incipiente que a discussão ainda seja – que, ao lado da pobreza material, existem outras dimensões importantes, sinalizadas na noção de pobreza humana. O aspecto mais desenvolvido até ao momento é o da democracia e regimes democráticos, mas espera-se que este conceito possa desdobrar-se em análises mais pertinentes da complexidade não linear da pobreza e tornar-se referência ainda mais explicativa desta realidade tão desafiadora hoje.

Sugere-se que pobreza tem seu fulcro mais renitente na dinâmica política que a envolve, por mais que, à primeira vista, pareça reduzir-se a carências materiais já bem conhecidas nos estudos recorrentes. Cada vez mais se aceita que pobreza tem, por trás, o problema da desigualdade social, o que implica reconhecer que se trata substancialmente de dinâmica política. Ser desigual quer dizer várias coisas, mas o centro mais duro da questão estaria no confronto entre minorias que comandam a cena e maiorias que sustentam os privilégios dessas minorias. Este jargão é, em poucas palavras, o resumo mais consistente da história humana conhecida. Em sociedade não disputamos apenas bens materiais escassos. Disputamos talvez ainda mais poder, prestígio, vantagens, liderança, oportunidades, não só porque somos, biologicamente falando, “score keepers”, mas sobretudo porque historicamente falando nos organizamos em espaços dialéticos de poder. É por isso que muitos abandonam a pretensão de igualdade social, a não ser como utopia crítica negativa, preferindo a noção de igualitarismo. Aquela é exageradamente linear, como se fosse possível alinhar a todos em padrões reversíveis, enquanto este é mais realista, à medida que aceita a unidade de contrários: as pessoas querem ser, simultaneamente, iguais e diferentes. Carência material, em si, não implica necessariamente desigualdade, se for a mesma para todos. Quando há seca, temos carência de chuva, mas não necessariamente desigualdade, a menos que surja a “indústria da seca”, ou seja, a transformação política de uma carência material em fonte de privilégios para minorias. Para resolver este problema, sequer bastaria “fazer chover”, porque, mesmo havendo água para todos, alguns saberiam tornar seu acesso um privilégio social. Teríamos que mudar também e, possivelmente, sobretudo, as relações de acesso a poder. Assim, não existe propriamente desigualdade econômica, porque bens materiais não são agentes históricos – desigualdade somente aflora entre agentes históricos que disputam poder e outras dimensões correlatas, como prestígio, oportunidade, vantagens, liderança.

Em educação, Paulo Freire cunhou o termo “politicidade”, para designar que aí se trava confronto substancialmente político entre incluídos e excluídos, não se restringindo a disputa a coisas materiais, mas implicando principalmente a habilidade de conduzir com autonomia seu próprio destino. Enquanto o oprimido esperar sua libertação do opressor, não será o construtor e gestor de sua própria vida, já que oprimido não é apenas quem não tem bens materiais, é principalmente quem não é capaz de se governar. O oprimido não pode, assim, ser apenas objeto de distribuição de bens na condição de simples beneficiário, porque isto não desfaz o nó mais duro desta dinâmica: ser massa de manobra. Por isso, toda estratégia de combate à pobreza supõe que o pobre se torne sujeito crucial da alternativa. Enquanto for apenas objeto, está à mercê de forças políticas que não domina e, muitas vezes, sequer tem ideia delas. O conceito de “desenvolvimento como oportunidade” já acena para esta dimensão e, não por acaso, o indicador primeiro é educação. A guinada mais efetiva desta conceituação foi mudar a perspectiva de análise para dimensões políticas, mais do que para dimensões materiais. Ao fundo da dinâmica da pobreza não existem apenas carências, mas principalmente rugem confrontos desiguais entre minorias privilegiadas e maiorias subordinadas. Aceitando-se esta politicidade da realidade social, segue que as sociedades poderão ser mais igualitárias, mas não propriamente iguais, o que, aliás, sempre foi a pretensão das democracias: instaurar sociedades que sabem negociar as oportunidades dentro de regras de jogo de um Estado de direito. Isto supõe que toda democracia gerencia conflitos, não harmonias, mas os gerencia de maneira democrática, ou seja, dentro de perspectivas igualitárias. “Igualdade de oportunidades” é, no fundo, algo contraditório, porque desfaz-se a noção de “oportunidade” que sempre está imersa em expectativas de vantagens relativas. Talvez fosse mais realista, na história conhecida, falar de igualitarismo de oportunidades: todos têm direito às mesmas chances, mas, mesmo que estas fossem as mesmas, os disputantes e suas condições sociais e pessoais nunca são os mesmos, do que segue que o resultado da disputa sempre é diverso e também desigual. Isto também pode fundamentar o multiculturalismo, à medida que se consagra tanto o direito a ser igual, quanto a ser diferente. O termo “igualitário” poderia enfeixar esta ideia democrática: a sociedade na qual as pessoas podem ser, ao mesmo tempo, iguais e diferentes. Evidentemente, trata-se de obra da mais refinada arte conseguir este tipo de negociação, que supõe a autoridade do argumento, nunca o argumento de autoridade. Pode-se convencer sem vencer.

Politicidade é, entre as razões humanas, talvez a mais humana, porque sinaliza que a história pode ser relativamente própria, à medida que for possível conquistar autonomia crescente. Nunca somos totalmente autônomos, porque nossa autonomia invariavelmente se choca com a autonomia dos outros, sendo este um dos traços mais relevantes desta complexidade não linear. O eurocentrismo sempre pretendeu autonomia exagerada, predatória, às custas da autonomia dos outros. Entretanto, é possível alargar a autonomia humana, por mais dúbia que seja esta trajetória histórica, através principalmente da capacidade de aprender e conhecer, ao lado de se organizar politicamente para construir e impor alternativas. Conhecemos principalmente a tecnologia como tática de dominação da natureza, porque é inegável o quanto soubemos mudar as condições de vida em sociedade em tão pequeno espaço de tempo: há 40 mil anos habitávamos cavernas; hoje habitamos Nova York. A autonomia cresceu astronomicamente, mas não para desfrute de todos. Aí está sua ambiguidade, porque está fundada, vastamente, na dinâmica do conhecimento disruptivo e não menos ambíguo: quem sabe pensar, geralmente não aprecia que outros também saibam pensar. A habilidade de mudar sempre foi disputada ferozmente, porque não estão em jogo propriamente a mudança, mas os privilégios da mudança. Saber pensar é, possivelmente, o “recurso” mais escasso e disputado na história da humanidade e que determinou, mais que outros fatores, as desigualdades hoje persistentes no planeta. Por isso, para combater a pobreza, possivelmente, política social do conhecimento será estratégia das mais agudas, porque é principalmente neste patamar que se condicionam as oportunidades. A dimensão material não se torna secundária, apenas se toma em consideração a dinâmica das desigualdades em sua complexidade não linear. O lado mais alvissareiro desta noção é que, tendo sido pobreza forjada na história, o que é histórico pode ser mudado. Mesmo que não possamos, tomando-se em conta a história conhecida, fundar sociedades iguais, podemos negociar sociedades igualitárias, democráticas, desde que todos os seus membros possam participar da disputa por oportunidades dentro de regras de jogo que tomam o bem comum como fulcro central, não o mercado. Este é essencial, mas é meio.

Pobreza política começa, geralmente, com a ignorância. Não se trata de ignorância cultural, pois esta não existe, já que todos estamos incluídos em contextos de patrimônios culturais, possuímos língua própria e saberes compartilhados. Trata-se da ignorância historicamente cultivada, através da qual se mantêm grandes maiorias como massa de manobra, cujo destino está lavrado na sustentação dos privilégios de minorias cada vez mais minoritárias. Assim, pobreza pode ser mais bem definida, não como apenas carência material, mas como repressão do acesso a oportunidades disponíveis em cada sociedade. É, pois, causada, mantida, cultivada historicamente, fazendo parte de legados passados e dinâmicas presentes, através dos quais se manieta a população na condição de objeto de manipulação política. Politicamente pobre é o escravo que se vangloria da riqueza de seu patrão, não atinando que esta riqueza lhe é devida, pelo menos em parte; é o oprimido que espera sua libertação do opressor; é o ser humano reduzido a objeto e que mendiga direitos; é quem faz a história do outro, a riqueza do outro, os privilégios do outro e, com isso, é coibido de história própria. Não só é destituído de ter, é principalmente destituído de ser, ainda que não seja o caso interpor qualquer dicotomia entre ter e ser. Presume-se, porém, que a esfera do ser é mais profunda e comprometedora, donde segue que o conceito de pobreza política certamente é mais explicativo desta complexidade. O contrário de pobreza política é “qualidade política”, designando em especial a dinâmica da cidadania individual e sobretudo coletiva. Entende-se a capacidade de construir consciência crítica histórica, organizar-se politicamente de modo a emergir sujeito capaz de história própria, e arquitetar e impor projeto alternativo de sociedade. Esses três passos nutrem-se, em grande parte, da habilidade de saber pensar, compreendido tanto como capacidade crítica, quanto como capacidade prática: conceber e realizar alternativas e oportunidades. Mas, para a construção de adequada qualidade política existem outras dimensões fundamentais, ao lado do papel da educação e do associativismo, como acesso à informação, à comunicação social, cultivo de identidades e oportunidades culturais e de esfera pública de discussão e negociação democrática, sem falar no papel do Estado, não como promotor e menos ainda condutor da cidadania, mas como instância delegada de serviço público, cuja qualidade depende, antes de tudo, do controle democrático. A sociedade que é minimamente capaz de controle democrático pode privilegiar o bem comum acima do mercado e do Estado. Este foi também o feito maior no início do welfare state, a par do boom econômico provocado pelo Plano Marshall, quando foi relativamente possível, em particular pela organização sindical efetiva e ampla dos trabalhadores, colocar Estado e em particular mercado como meios, não como fins da sociedade.

Para definir mais concretamente pobreza política, destacam-se algumas dimensões mais proeminentes:

a) quem é politicamente pobre não sabe que é pobre e é coibido de saber que é pobre; está submetido a processo histórico de ignorância cultivada e que tem como resultado mais palpável uma população imbecilizada, marginalizada e manipulada; a população não é imbecil, mas é imbecilizada, geralmente através de políticas sociais assistencialistas que conseguem, em troca de migalhas materiais, comprar a adesão política do pobre; surge aí o fenômeno esdrúxulo de minorias majoritárias, quando se definem como “minoria” populações como negros, mulheres e outros; esta condição de ignorância permite políticas pobres para os pobres, bem como aceitação de rendas mínimas quase invisíveis, sem falar na tendência de esperar a libertação do próprio algoz; esta ignorância é cultivada de várias maneiras, desde a opressão do professor básico em sistemas educacionais corruptos e ineficientes, passando pela falta de informação e comunicação, restrições e manipulações do associativismo, até destruição de identidades culturais; 

b) quem é politicamente pobre é massa de manobra, objeto de manipulação; isto reflete a tendência histórica de minorias privilegiadas conseguirem colocar grandes maiorias a serviço de privilégios concentrados, por vezes sob o sarcasmo dos “direitos adquiridos”; não raro o pobre vê a concentração de riqueza como mérito, sabedoria, superioridade, sem atinar para a parte que lhe deveria tocar, por conta de seu trabalho; a condição de massa de manobra faculta o surgimento e manutenção de “famílias reais” na esfera política, à medida que tendencialmente os mesmos se elegem e reelegem, comandam presente, passado e futuro da sociedade, à revelia de processos pretensamente democráticos de acesso ao poder; faculta também “ilhas da fantasia” em termos de condições de trabalho e acesso orçamentário, como são os casos notórios das remunerações de deputados, senadores, juízes e seus funcionários elevados; faculta a corrupção generalizada dos recursos públicos, porque torna-se impraticável mínimo controle democrático debaixo para cima; faculta que política vire, vastamente, politicagem, como é uso na maioria das sociedades em desenvolvimento;

c) quem é politicamente pobre não é cidadão, porque não se organiza politicamente para poder impor mudanças; primeiro, não constrói consciência crítica adequada, porque, em geral, não sabe pensar; segundo, não chega a perceber a importância do associativismo, para potencializar as forças e conseguir volume de pressão; terceiro, não concebe, nem impõe alternativas, porque ainda não se constituiu sujeito capaz de história própria; tal condição leva o oprimido a esperar a libertação do opressor ou pelo menos a esperar a solução de um “bom príncipe”, que vê como salvador da pátria; trabalha para os outros, sem contar com os frutos de seu trabalho; sustenta privilégios alheios, sem capacidade de reivindicar os mesmos direitos; o déficit de cidadania espelha-se facilmente em políticas sociais de cima para baixo, de tendência avassaladoramente assistencialista, reservando para os pobres sobras orçamentárias, enquanto se cuida assídua e subservientemente do mercado; meios viram fins e fins viram meios, porque o não cidadão, por falta de saber pensar, é literalmente pensado por outros; 

d) quem é politicamente pobre é massacrado como sujeito, restando-lhe a condição de objeto, por vezes como maioria residual; comparece assim a maior indignidade social imaginável, quando não se permite que as sociedades e pessoas tenham história própria, disputem oportunidades, organizem-se como sujeitos; a inclusão se dá na margem, dentro do processo dialético da necessidade de tantos pobres para tão poucos ricos; o pobre emerge como beneficiário apenas, na artimanha clássica de induzir que ele aceite ser “cuidado” pelo Estado e governos, e mesmo pela elite; faz parte desta mesma artimanha manipular estatísticas de tal sorte que o número de pobres e sobretudo sua condição marginalizada sejam escamoteados, colocar Estado e governos como patronos da cidadania popular, em particular colocar a elite econômica e política como garante da equidade, brincar de transferência de renda, como se renda estivesse alegremente disponível, oferecer coisa pobre para o pobre, formular políticas sociais que se destinam acima de tudo a domesticar os pobres; como resultado, o pobre agradece e vota, no mais escancarado pão e circo;

e) quem é pobre politicamente não descobre que tem direitos, porque continua esmoler; por vezes, esta condição é tão drástica, que o pobre parece pedir permissão para ter direitos, pois considera natural sua exclusão e até mesmo, por razões religiosas tortas, merecida; tende a ver pobreza como sina, destino, vontade de Deus, ordem natural das coisas; facilmente se resigna, mostrando docilidade histórica assustadora; tem a história do outro, nela sobrevive e por vezes parasita, sem chance de história própria; por força dos meios de comunicação, é frequente que o pobre tenha escutado sobre direitos e ouvido de “politiqueiros” usuais, mas não sabe de que se trata efetivamente, sobretudo aguarda que os direitos lhe sejam doados; não constrói a noção essencial de que sua libertação só pode ser obra sua, embora isto não descarte outras estratégias, nas quais se inclui o papel do Estado democrático em primeiro lugar; o pobre não reivindica, pressiona, toma iniciativa, mas espera que tudo se resolva de cima para baixo, caindo na armadilha mais indigna da sociedade: imbecilizar o marginalizado a ponto de o convencer que seu lugar é na margem; 

f) quem é politicamente pobre vive de cidadania tutelada, no máximo assistida; cidadania tutelada é, em si, sua própria negação, quando o pobre se submete à tutela de elites que conservam sua propensão escravocrata quase intacta na história; cidadania assistida pode representar ganho histórico de causa, porque assistência é política social necessária para enfrentar riscos de sobrevivência; mas, ao restringir-se a este gesto assistencial, torna-se assistencialista, porque oblitera as expectativas de auto-sustentação (inserção no mercado) e autogestão (cidadania); resultado principal deste processo histórico de tutela e assistência é o refreamento do controle democrático e, em particular, o escamoteamento do confronto social, indispensável para se combater a pobreza política; enquanto Estado e mercado não são controlados, subsiste impávida a sempre mesma elite, com ares de mérito histórico intocável.

Embora seja visível a recenticidade e incipiência desta discussão, cabe assinalar que poderia desvendar horizontes mais promissores de enfrentamento da pobreza. Em primeiro lugar, torna-se claro que, para enfrentar a pobreza, é mister acertar seu fulcro político e isto quer dizer, sem tirar nem por, que não é possível fugir do confronto. Este termo parece excessivamente agressivo, mas quer apenas denotar sua dialética intrínseca política. Se o pobre não souber confrontar-se, entra no cenário como massa de manobra e disto não sai mais. Confrontar-se é a habilidade da cidadania democrática, feita dentro de regras de jogo do Estado de direito, mas plantada na capacidade do pobre de fazer história própria. Não se combate a pobreza sem o pobre no comando deste processo. Em segundo lugar, não basta distribuir, é imprescindível redistribuir renda, tocando decisivamente no espectro das desigualdades vigentes. Os pobres não são pobres apenas porque produzem pouco, são desqualificados, heterogêneos, mas principalmente porque são “desiguais”, ou seja, espoliados, marginalizados, imbecilizados. É preciso tocar nesta chaga e virar o sentido histórico do acesso às oportunidades. Redistribuir renda implica necessariamente retirar de quem tem demais, equalizar oportunidades, privilegiar os desprivilegiados, o que coloca outro sentido ao debate sobre focalização das políticas sociais. Quando feita de cima, a focalização acaba em coisa pobre para o pobre, inapelavelmente. Quando o pobre é figura central e comanda a focalização, pode ter como resultado iniciativas redistributivas de renda e poder.

Sobre este pano de fundo, o combate à pobreza poderia ser organizado em três dimensões hierárquicas e essenciais: a) primeiro, é mister haver assistência social, porque o direito à sobrevivência é um direito radical; sem ele, não há nada depois; todavia, o mais imediato nem sempre é mais importante; b) segundo, é mister haver inserção no mercado, para que o pobre se auto-sustente, ande com pernas próprias, tenha projeto de vida; c) terceiro, é mister haver cidadania, para que o pobre assuma seu destino com devida autonomia. Todos os três componentes são essenciais, mas há uma hierarquia entre eles: o mais decisivo é a cidadania, seguindo-se a inserção no mercado, e, por fim, assistência. No cenário atual, política social tende a reduzir-se a assistência, se tanto. Esta capitulação perante o neoliberalismo está na raiz da incapacidade de confronto.