Unidade de resgate - conto - Odenilde Nogueira Martins -

– Pessoal, ocorrência próximo ao posto da Polícia Federal. Acidente entre dois veículos com vítimas presas às ferragens – a notificação era recebida via rádio.

O som das sirenes imediatamente se fizeram ouvir. Era preciso alertar motoristas e pedestres de que havia uma emergência para que abrissem espaço para a passagem das viaturas, já que cada segundo podia significar a diferença entre vida e morte. 

Os ponteiros do relógio de parede mostravam o adiantado da hora: 23:h45min.

– Vou na lanchonete do Alemão buscar um x-salada. Quer que te traga alguma coisa? – perguntou Gracindo ao companheiro.

Não era rotina duas pessoas permanecerem na unidade, mas Gracindo havia sofrido uma torção no joelho e, por conta disso, não sairia para atender a pedido de socorro.

– Não, companheiro. Trouxe um rango de casa e mais tarde preparo um café. Aqui tá tudo dentro do esperado para uma noite de sexta-feira. Não precisa se apressar.

O som de metal, riscando o piso áspero, doía não só nos ouvidos, doía nos nervos! Era meia-noite. Até, então, tudo estava tranquilo na unidade do corpo de bombeiros, que ficava próxima a uma rodovia federal. A presença de um corpo, vítima de acidente, que aguardava o rabecão do instituto médico legal, não era novidade. Fazia parte da rotina dos plantonistas. O saco preto em um canto não era motivo de desconforto. Ali, convivia-se com sacos pretos, diariamente.

Jucão era o atendente, naquela noite. Tinha como missão receber os chamados de socorro e repassar aos colegas que saíam para atender à ocorrência. Acabara de fazê-lo, os companheiros haviam saído há uns quinze minutos. Estava só. Não que isso o preocupasse. Dizia sempre que se sentia em segurança, pois os mortos não fazem mal a ninguém.

– Tenho medo é dos vivos! – respondia, quando perguntado, sobre o indigesto ofício de recolher cadáveres à beira da rodovia.

O local era famoso por conta das muitas histórias contadas. Padre Jucélio, a cada dois meses, ia ao local para dar uma benção:

– Reza e canja não fazem mal a ninguém. É bom estar de bem com o Todo Poderoso. Com tanta desgraça que vimos todos os dias, nosso espírito preciso se fortalecer na fé – dizia o comandante da corporação. 

Os pelos de Jucão, da cabeça aos pés, eriçaram. Um frio percorreu-lhe a espinha. Estava só! Que barulho era aquele? 

– Do lado de fora. Deve ser alguém do lado de fora! Deixa de bestagem, homem – falou consigo mesmo.

Relaxou. Tantos anos servindo, ali, nunca tivera medo! Voltou a concentrar-se na tela do computador. Dez minutos depois, já esquecido do som de metal riscando o piso áspero, tornou a ouvi-lo, ainda mais cortante. Parecia descer e subir a rampa que dava acesso a um depósito, que também servia de dormitório em noites calmas.

– Não é do lado de fora. É aqui dentro!

Levantou-se e espiou através do quadrado de vidro que havia na porta. Estava tudo quieto. Já estava dando as costas para a porta, quando ouviu:

– Jucãooo... Jucãooooo... 

Alguém estava querendo se divertir as suas custas.

– Quero ver quem é o engraçadinho – murmurou, tomando a direção da rampa de onde vinha o ruído de metal riscando o cimento áspero do piso, e de onde vinha o som da voz que o chamava. 

Do alto da rampa, viu o saco negro, que aguardava o rabecão, mover os braços. Em uma das mãos, um pedaço de ferro que usava para riscar o chão.

– Creio em Deus Pai todo poderoso, criador do céu e da Terra...

Enquanto rezava ia saindo de costas, olhos pregados na assombração. Quando tomou certa distância, empreendeu uma corrida para fora da unidade. Ouvia a voz:

– Jucãoooo, volte! Não me deixe aqui. Volteeeeeee!

Só parou de correr quando chegou às margens da rodovia.

Ainda ouvia alguém chamando:

– Juca, venha cá! Sou eu, o Gracindo! 

Não teve conversa. Ninguém conseguiu convencê-lo a voltar. Pelo sim, pelo não, padre Jucélio continua visitando a unidade regularmente.



Odenilde Nogueira Martins


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