Contava nove anos. Menino travesso que só! Não havia árvore alta demais para ele na busca de uma fruta madura. Nenhum quintal era muito pequeno ou muito grande. Não importava o tamanho, sempre havia algo para se ver, para se descobrir ou um mistério para se inventar.
Perdia-se no tempo, contemplando o ir e vir das fileiras de formigas laboriosas, que assim como seu pai, tratavam de estocar comida pensando em não deixar faltar mantimentos. Discreto, trepado nas árvores, observava a engenhosidade dos ninhos dos pássaros. Observava todos: com ovos, com filhotes e até os vazios, sabia pelo tipo de ninho qual pássaro pusera, ali, seus ovos.
Admirava-se toda vez que se deparava com uma teia brilhante, bordada de insetos desprecavidos. Penalizado, concluía: “A aranha precisa viver”.
Certa vez, presenciara uma cobra devorando um sapo. Assustou-se! Penalizado, quis interferir e livrar o pobre daquela agonia, mas conteve-se, a cobra também precisa alimentar-se. “Assim é a vida.” Em sua casa, animais eram mortos para alimentá-los.
Em todas as suas incursões, Trovão o acompanhava. Tinham a mesma idade, nasceram com apenas uma semana de diferença, contara-lhe a mãe. E, por vezes, era o amigo que o alertava de algum perigo que não percebera.
– Poxa, Trovão! Se não fosse você, não sei o que teria acontecido. Acho que te devo a minha vida.
Quantas vezes Trovão ouvira aquilo... Tinha perdido a conta. Mesmo por que, não tinha memória muito boa para números.
Antes mesmo de o menino aparecer na porta da cozinha, Trovão saía debaixo da varanda, bastava ouvir a voz do amigo no interior da casa. Assim que o travesso pisava o chão do terreiro, o companheiro começava a saltitar, era hora do café da manhã. Jamais se esquecera de alimentá-lo antes de saírem.
Em poucos instantes, estavam ambos prontos para iniciar o dia. Chegando ao destino, Trovão esperava, pacientemente, do lado de fora. Aprendera que, ali, não podia entrar. Distraía-se com o vaivém dos carros e das pessoas. Alguns, acostumados a sua presença, faziam-lhe agrado, dando-lhe algo para comer e coçando-lhe a cabeça.
– Ah, Trovão! Você é mesmo muito esperto! Nem chegando de mansinho, tentando me esconder, eu consigo te enganar!
Depois de uma prosa e de festinhas, partiam os dois amigos. Aventuras os aguardavam e já começavam na saída da escola.
Malaquias não gostava dos dois amigos e não perdia a chance de demonstrar.
– Lá vem confusão, amigão.
– Esse teu sarnento é tão feio quanto você – dizia sempre que os encontrava, chutando o cão e dando um safanão em seu dono.
– Ele vale por mais de mil de você, seu piolhento! E ele não fede a mijo!
E lá vinham mais chutes, safanões e tapas pela cabeça. Trovão arreganhava os dentes e ensaiava uma investida contra o agressor, mas era contido pelo dono que sabia das consequências se alguém fosse mordido.
– Quieto, Trovão! Não suje os teus dentes de mijo, nem se arrisque a pegar piolho.
E lá se iam os dois estrada afora, já esquecidos do perrengue, olhos e ouvidos atentos, parando, vez por outra, para observar algum pássaro, preá, ou uma borboleta colorida. Certa vez, arrumou confusão com um enxame de abelhas quando resolveu bisbilhotar à de procura mel.
Naquele dia, Trovão disparara latindo atrás de alguma coisa que Kiko não percebera, de algum tatu talvez.
– Espera, Trovão! Eu não consigo correr tão rápido!Trovão, me espera!
O cão seguiu correndo e sumiu de vista, rumo a um barranco ao lado da estrada empoeirada.
– Trovão, cadê você!
Nem sinal do cão. Desceu barranco abaixo e sumiu por entre as árvores.
– Não vou descer aí! Volte já.
Esperou, esperou e nada. O amigo devia ter ido mesmo atrás de algum tatu ou de algum preá. Não que matasse qualquer bichinho, só se divertia assustando-os.
– Você sabe o caminho pra voltar! – disse aborrecido, cansado de esperar que o companheiro voltasse, ameaçando ir-se sem ele.
Quando se levantou para tomar o caminho de casa, ouviu os ganidos de Trovão. Desceu barranco abaixo rolando, o amigo podia estar em perigo. Sem nem sentir os arranhões que a descida lhe causara, empreendeu uma corrida por entre as árvores. Depois de procurar por alguns instantes, ouviu um riso abafado vindo detrás de uma árvore mais distante. Correu em direção do som. Lá estava Trovão, pendurado pelo pescoço em um galho de uma árvore.
– Teu sarnento já era!
Caiu de joelhos, incrédulo, enquanto o som do riso ia ficando mais e mais distante.
Entendia a aranha prender insetos em sua teia para devorá-los, entendia a cobra engolir o sapo, entendia o pai criar animais para abater. Entendia tantas coisas! Mas aquilo não! Por mais que tentasse. Entendeu mais tarde, que, naquele dia, fora-lhe apresentado, sem maquiagem, o retrato da Perversidade.
Odenilde Nogueira Martins
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