Gostaria de usar este espaço para apresentar um escritor: David Gonçalves.
Meu primeiro contato com a obra de David ocorreu em 1986 quando, em um ponto de ônibus em Curitiba, encontrei Vicente Ataíde, conhecido meu do tempo da PUC onde ele era professor. Tinha uma bolsa cheia de livros. Sem mais lá nem cá, perguntou-me de chofre se eu não queria escrever um livro para a editora dele, pois havia lido minha recente publicação. Então me mostrou GERAÇÃO VIVA, do David e me deu seu telefone. Quando nos despedimos na Praça Tiradentes, eu estava convencido a escrever e curioso para ler o livro que recebera.
O início bíblico do primeiro texto me ganhou: “Joãpó gerou Reboão, Reboão gerou André, André gerou Santônio e seus irmãos, Santônio gerou – de Rosário a Pedro Simão – um parindo outro:” E o texto continuava nesse ritmo aparentemente repetitivo, mas envolvente. Eu queria saber onde aquela corrente me levaria e fiz, em duas páginas, uma viagem pelo sertão e pela cidade encontrando os desvãos da vida com suas mazelas e odores. Não parei mais de ler o autor. Hoje somos amigos.
De recente, li SANGUE VERDE e antes de ontem terminei o mais recente: PÉS-VERMELHOS. Ambas as obras não me permitiram parar a leitura e quando parava, por força das circunstâncias, remexia na memória as vivências das personagens e minhas expectativas sobre a condução da narrativa. SANGUE VERDE é um belíssimo painel sobre a colonização e destruição da Amazônia. Muito veraz, fruto de cinco anos de pesquisa do autor. Obra atualíssima. PÉS-VERMELHOS é outro romance-painel sobre a colonização do Norte do Paraná desde a Segunda Guerra até tempos mais recentes.
O trabalho é um dos focos temáticos de suas obras desde o princípio, o trabalho suado que constrói a duras penas algum equilíbrio econômico e que é solapado ou pelas intempéries ou por mãos de ganância. Dentro deste viés, está a tecnologia usada pelos trabalhadores. No início com machados e enxadas, depois com motosserras, caminhões e tratores. No início, sem dinheiro; depois com dívidas. David não é contra o progresso, apenas relata a ação de homens e mulheres nesse contexto de assentamento e de mudanças.
Não se trata de autor preocupado com uma linguagem sofisticada nem inovadora, não atende à expectativa bastante comum das academias, porém seu texto está integrado ao mundo que elabora em linguagem. Ali estão os ditados populares, as frases de para-choque, as sabedorias do povo, as personagens reais da vida em sua linguagem verdadeira. Não faz salamaleques com as palavras e por isso são tão convincentes.
Em PÉS-VERMELHOS há personagens como o padre Silvino, ativo e polêmico, não por suas ideias, mas pelas ações; o matador Galo Cego, frio e objetivo a serviço dos mais poderosos e inescrupulosos; o Chiquinho Preto, objeto de chacota e maldades nas ruas por onde mendigava; o político Rodoão, típico defensor de costumes e aparências, é fraudulento, egoísta, mesquinho e vulgar; Santônio, o agricultor à moda antiga, trabalhador e honesto, acostumado com pouco e persistente; a Maria Alegre, dona do prostíbulo; o Damaso, farmacêutico sem formação, que vendia fiado e acompanha a transformação da cidade; o menino Gabriel e sua trajetória de filho de agricultor a escritor; o pastor que vem da cidade grande para convencer o povo simples através de milagres preparados; o Fritz, alemão construtor da estrada de ferro, sempre com calor e bebendo cervejas; e tantos outros mais ou menos presentes nesse conjunto em ebulição, na efervescência das mudanças de um tempo de conquistas e derrocadas da economia do café e depois da soja.
O mundo não é dividido em bons e maus, brutos e sofisticados, estudados e ignorantes. Os simples têm sua sabedoria, os brutos suas fraquezas, os bons suas idiossincrasias, os maus sua bondade. É um mundo misto ou um misto de pessoas que constituem um verdadeiro mundo com suas nuances e variedades, singularidades e discrepâncias que fazem a verossimilhança da ficção.
Isso é apenas uma pitada do tempero eficiente que é a literatura de David Gonçalves.
Juarez Poletto: Doutor em Letras pela Universidade Federal do Paraná (2007)e Professor na Universidade Tecnológica Federal do Paraná; Escritor com experiência na área de Letras e, ênfase em Poesia e Ficção, atuando principalmente nos seguintes temas: poesia e crônica.
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