A Máscara
Publicado em: - ÚLTIMOS CONTOS. Marcado: Maupassant, Séc. XIX.
Havia naquela noite um baile à fantasia no Elisée Montmartre. Era por ocasião da mi-careme, e, como a água através da comporta de uma represa, a multidão despejava-se no corredor iluminado que leva ao salão de baile. O irresistível apelo da orquestra, estrondeando como uma tempestade musical, atravessava as paredes e o teto, espalhava-se pelo bairro e ia despertar, nas ruas e a té no fundo das casas vizinhas, aquele invencível desejo de saltar, de aquecer-se e divertir-se que dormita no íntimo do animal humano.
E os frequentadores da festa também vinham dos quatro cantos de Paris, pessoas de todas as classes sociais, amantes de diversões barulhentas, um tanto quanto licenciosas, tocadas de libertinagem. Eram empregados, cáftens, mulheres alegres, que conheciam toda espécie de lençóis, do mais grosseiro algodão à mais fina batista, mulheres ricas, velhas e cheias de diamantes, e mulheres pobres, de dezesseis anos, desejosas de divertir-se, de entregar-se a homens, de gastar dinheiro. Elegantes casacas negras à cata de carne moça, de primícias defloradas, porém saborosas, erravam por entre aquela multidão aquecida, procuravam, pareciam farejar, enquanto os mascarados eram impelidos, sobretudo, pelo desejo de divertir-se. Quartetos famosos de dançarinos já tinham reunido em torno das suas piruetas um largo círculo de assistentes. Aquela cerca ondulante, aquela massa buliçosa de mulheres e de homens, que rodeava os quatro dançarinos, torcia-se como uma serpente, ora se aproximando, ora se afastando, de acordo com os deslocamentos operados pelos artistas. As duas mulheres, cujas coxas pareciam ligadas ao corpo por molas de borracha, moviam as pernas com incrí vel agilidade. Atiravam-nas para cima com tanta violência que pareciam voar em direção às nuvens, depois subitamente as afastavam como se tivessem sido rasgadas até a metade do ventre e, fazendo-as deslizar, uma para a frente, a outra para trás, tocavam o solo com o corpo com um movimento rápido, cômico e repulsivo.
Os dois cavalheiros pulavam, moviam agilmente os pés, agitavam-se, sacudindo os braços levantados como cotos de asas sem penas e, sob as máscaras, percebia-se a sua respiração ofegante.
Um destes últimos, que participava da mais reputada das quadrilhas como substituto de uma celebridade ausente, o belo Songe au Gosse, e que se esforçava para acompanhar a infatigável Arête-de-Vau, executava figuras curiosas, que despertavam a alegria e o sarcasmo do público.
Era magro, vestia-se como um janota e usava uma bonita máscara envernizada, uma máscara de bigodes louros, frisados, e toucada por uma peruca anelada.
Lembrava uma figura de cera do Museu Grévin, estranha e fantástica caricatura de página de figurino, e dançava com esforçada compenetração, porém desajeitadamente, com entusiasmo grotesco. Parecia enferrujado ao lado dos outros, ao tentar imitar-lhes as piruetas; parecia tolhido, pesado como um cão fraldeiro que brincasse com galgos. Encorajavam-no alguns aplausos zombeteiros. E, ébrio de entusiasmo, ele sacudia as pernas com tal frenesi que, de repente, levado por um impulso violento, foi dar de cabeça contra a muralha dos assistentes, que se entreabriu para deixá-lo passar e depois tornou a fechar-se em torno daquele corpo inerte, estendido de borco, o dançarino inanimado.
Alguns homens o levantaram, carregararn-no. Alguém gritou: “Um médico!” Apresentou-se um cavalheiro ainda jovem, muito elegante, de casaca negra com grandes pérolas na camisa branca. “Sou professor da faculdade”, declarou, com entonação modesta. Deixaram-no passar e ele se dirigiu a uma saleta cheia de caixas de documentos, como o escritório de um procurador, onde o dançarino, ainda desacordado, fora estendido sobre cadeiras. Antes de tudo o médico procurou retirar a máscara, e percebeu que fora fixada de maneira embaraçosa, com uma porção de pequenos fios de metal; estes a atavam habilmente às bordas da peruca, e encerravam a cabeça inteira numa sólida ligadura, cujo segredo seria preciso conhecer. O próprio pescoço estava envolto numa pele artificial que prolongava o queixo, e aquela pele de luva, pintada da cor da carne, prendia-se na gola da camisa.
Foi preciso cortar aquilo tudo com grandes tesouras; e depois de ter feito no surpreendente conjunto um talho que ia do ombro à têmpora, o médico entreabriu a carapaça e descobriu um rosto gasto e envelhecido, magro, pálido e enrrugado. Tamanha foi a surpresa dos que tinham trazido o jovem mascarado de cabelos negros, que ninguém se riu nem pronunciou uma única palavra.
Contemplavam o triste rosto que descansava sobre a cadeira, de olhos fechados, cabelos brancos, alguns longos, caindo da fronte sobre o rosto, e curtos os que lhe guarneciam as faces e o queixo; e, ao lado daquela lamentável cabeça, a pequena e bonita máscara envernizada, a máscara jovem, que continuava a sorrir.
O desconhecido voltou a si depois de ter permanecido longamente desacordado; parecia, porém, tão fraco, tão doente, que o médico receou alguma complicação perigosa.
- Onde mora o senhor? – indagou.
O velho dançarino pareceu revolver a memória, e depois se lembrou e deu o nome de uma rua que nenhum dos presentes conhecia. Foi preciso pedir-lhe algumas explicações sobre o bairro. Forneceu-as com enorme dificuldade, com uma lentidão e uma incerteza que bem traiam a confusão da sua mente.
O médico declarou:
- Eu mesmo irei levá-lo.
Acometera-o a curiosidade de saber quem seria aquele estranho bailarino, de verificar onde morava aquele saltador fenômeno.
E pouco depois um carro de praça levou ambos ao outro lado das colinas de Montmartre.
Desceram na frente de um prédio alto, de aspecto pobre, com urna escada viscosa e construído entre dois terrenos baldios, um desses prédios eternamente inacabados, crivados de janelas, nichos imundos que abrigam uma multidão de seres maltrapilhos e miseráveis.
Segurando-se fortemente ao corrimão, um rolo de madeira que girava e no qual a mão ficava grudada, amparou até o quarto andar o ancião aturdido, que começava a recuperar as forças.
Abriu-se a porta à qual bateram e apareceu uma mulher, também velha, asseada, com uma touca de noite muito branca emoldurando-lhe a cabeça de ossos fortes e traços acentuados, um desses rostos grandes, rudes e bons, que freqüentemente possuem as fiéis e ativas esposas de operários. Exclamou:
- Meu Deus! O que teve ele?
Explicado o incidente com vinte palavras, ela se tranquilizou e tranquilizou o próprio médico, contando que aquela mesma aventura já acontecera antes, muitas vezes.
- É preciso deitá-lo, doutor, mais nada; ele dormirá e amanhã acordará outro.
O médico observou:
- Mas ele mal pode falar!
- Oh! Não é nada, um pouco de bebida, mais nada. Ele não jantou para sentir-se leve, e depois bebeu dois copos de absinto para animar-se. O senhor vê, o absinto lhe ativa as pernas, mas lhe tira as idéias e as palavras. Não é adequado à sua idade dançar como faz. Não, não há mesmo esperança de que ele tome juízo algum dia!
Surpreso, o médico insistiu:
Mas por que dança ele desse jeito, velho como está? Ela ergueu os ombros, vermelha sob a ação da cólera que pouco a pouco a excitava:
- Ah, sim, por quê? Para falar a verdade, é para que o imaginem moço embaixo da máscara, para que as mulheres ainda o julguem um galanteador e lhe digam libertinagens ao ouvido, para esfregar-se na pele dessas mulheres, peles sujas de perfumes, de pós e cremes … Ah! É incrível! Imagine, doutor, a vida que tenho levado durante os quarenta anos que isto vai durando… Primeiro, porém, precisamos deitá-lo, para que ele não se sinta mal. Não se importa de judar-me? Quando fica neste estado, é muito difícil para mim lidar com ele sozinha.
O velho estava sentado na cama, com jeito de bêbedo, os longos cabelos brancos caídos no rosto.
Sua companheira observava-o com olhos enternecidos e furiosos. Continuou:
- Repare como tem uma bonita cabeça para a idade; não precisava disfarçar-se de malandro para que o supusessem moço. É uma lástima! Não é verdade que ele tem uma bela cabeça, doutor? Espere, vou mostrá-la ao senhor antes que ele se deite.
- Encaminhou-se para uma mesa sobre a qual estavam colocados a bacia de mãos, o jarro de água, o sabão, o pente e a escova. Apanhou a escova, voltou para junto da cama e, depois de lidar por uns momentos com a cabeleira embaraçada do bêbedo, deu-lhe à cabeça a aparência de um modelo de pintor, com grandes madeixas caídas no pescoço. Recuou a fim de contemplá-lo e observou:
- Não é verdade que está bem para a sua idade?
- Muito bem – concordou o médico, que começava a divertir-se bastante.
- E se o senhor o tivesse conhecido quando tinha vinte e cinco anos! – exclamou ela. – Mas é preciso pô-lo na cama; sem isso, os seus absintos lhe ficariam dando voltas na barriga. Olhe, doutor, quer puxar a manga? .. Mais em cima … Assim … Bem … Agora a calça … Espere, vou tirar-lhe os sapatos … Está bem. Agora, conserve-o de pé para que eu arrume a cama. .. Pronto… Vamos deitá-lo. .. Se pensa que ele se afastará daqui a pouco para ceder-me lugar, o senhor está enganado. Terei que arranjar um cantinho, seja onde for. Isso não o preocupa. Ah, que estróina!
Ao sentir que estava estendido debaixo das cobertas, o velho fechou os olhos, tornou a abri-los e novamente os fechou, enquanto uma enérgica determinação de dormir se lhe refletia no rosto satisfeito.
O médico indagou, depois de observá-lo com acrescido interesse:
- Então, ele gosta de fingir-se de moço nos bailes à fantasia?
- Em todos, doutor, e só volta pela manhã, num estado que ninguém pode imaginar. Veja, é a tristeza que o leva aos salões, e que o obriga a colocar um rosto de papelão sobre o próprio. Sim, a tristeza de não ser mais o que já foi, e também de não obter mais o mesmo sucesso que já obteve!
O velho dormia, agora, e começava a roncar. Ela contemplou-o com ar apiedado e prosseguiu:
- Ah! Saiba o senhor que este homem já fez muito sucesso! Muito mais do que seria de supor, mais do que senhores elegantes da sociedade, mais do que todos os tenores e todos os generais.
- Realmente? Que fazia ele?
- Oh! O senhor vai ficar surpreendido, no começo, pois não o conheceu nos seus belos tempos. Quando o encontrei, também num baile, porque ele sempre os frequentou, fiquei presa, ao vê-lo, presa como um peixe no anzol. Ele era bonito, doutor, bonito a ponto de fazer vir lágrimas aos olhos quando o fitávamos, com seus cabelos negros como um corvo, crespos, e uns olhos negros do tamanho de janelas. Ah, sim, era um belo rapaz. Nessa noite ele me levou consigo, e não mais o deixei, nunca, nem por um só dia, apesar de tudo! Oh! Fez-me comer fogo!
O médico indagou: – Casaram-se?
Ela respondeu, com simplicidade:
- Sim … Sem isso ele me teria largado, como largou as outras. Fui sua mulher e sua criada, tudo, tudo quanto quis … e fez-me chorar … lágrimas que não lhe deixei ver! Pois me descrevia as suas aventuras … a mim … a mim … doutor, sem compreender o mal que me fazia ouvi-lo falar …
- Afinal, que profissão tinha?
- É verdade … Esqueci-me de contar. Era o primeiro ajudante de Martel, mas um primeiro ajudante como não houve outro igual. .. Um artista de dez francos a hora, em média …
- Martel? Quem é esse Martel? …
- O cabeleireiro, doutor, o grande cabeleireiro da Ópera, de quem todas as atrizes eram freguesas. Sim, todas as atrizes, mesmo as mais emproadas, faziam questão de ser penteadas por Ambroise, e davam-lhe gratificações que o enriqueceram. Ah, doutor, todas as mulheres são iguais, sim, todas. Quando um homem lhes agrada, elas o tomam. É tão fácil. .. e causa tanta mágoa quando a gente sabe! Pois ele me contava tudo .. .” Não podia calar-se … Não, não podia. Essas coisas causam tanto prazer aos homens! Talvez mais ainda quando as contam do que quando as fazem …
“Quando o via regressar, à noite, um pouco pálido, com um jeito satisfeito, o olhar brilhante, dizia comigo mesma: “Mais uma. Tenho a certeza de que arranjou mais uma.” E sentia vontade de interrogá-lo, uma vontade que me dilacerava o coração, e também vontade de nada saber, de impedir que falasse quando a isso se dispusesse. E nos entreolhávamos.
“Sabia bem que ele não se calaria, que ia tocar no assunto. Sentia-o pelo seu jeito, pelo jeito risonho com que me dava a entender: “Tive uma boa, hoje, Madeleine”. Fingia nada ver, nada perceber; e punha a mesa; trazia a sopa; sentava-me à frente dele.
“Naqueles momentos, doutor, era como se esmagassem com uma pedra, no meu corpo, a minha amizade por ele. Doía, sim, e bastante. Mas ele não percebia, não sabia; tinha necessidade de contar aquilo a alguém, de gabar-se, de mostrar que era amado. .. E só a mim podia contar. .. O senhor compreende. .. Só a mim. ” Então … eu precisava escutá-lo e engolir aquilo como se fosse veneno.
“Ele começava a tomar a sopa e depois dizia: “- Mais uma, Madeleine.
“Eu pensava: “Pronto. Meu Deus, que homem! Por que fui encontrá-lo?
“E ele continuava: – Mais uma, e bem bonita! – Tratava-se de uma pequena do Vaudeville ou então de uma pequena das Varietés, ou também de alguma dessas senhoras do teatro, das mais importantes, das mais conhecidas. Dava-me seus nomes, descrevia-me seus móveis, e tudo, tudo, sim, tudo, senhor … Pormenores que me dilaceravam o coração. E ele insistia, e recomeçava a história, do começo ao fim, tão contente que eu fingia rir-me para que não se zangasse comigo.
“Talvez nem tudo fosse verdade! Gostava tanto de gabar-se que seria muito capaz de inventar coisas desse gênero! Mas também podia ser verdade! Nessas noites, ele se queixava de cansaço, queria deitar-se logo depois da ceia. Ceávamos às onze horas, pois nunca ele regressava mais cedo, por causa dos penteados dos saraus.
“Quando terminava de contar a sua aventura, fumava cigarros, passeava pelo quarto e era tão bonito, com seus bigodes e seus cabelos crespos, que eu ponderava: “É verdade, mesmo, o que me contou. Já que sou louca por esse homem, por que as outras também não se apaixonariam?” Ah! Muitas vezes tive vontade de chorar, de gritar, de fugir, de atirar-me pela janela, enquanto tirava a mesa e ele continuava a fumar. Bocejava, abrindo a boca para mostrar quão cansado estava, e dizia duas ou três vezes, antes de meter-se na cama: “Meu Deus, como vou dormir bem esta noite!”
“Não lhe guardo rancor, pois não sabia quanto me magoava. Não, não podia saber! Gostava de gabar-se das mulheres como um pavão que desdobra a cauda. Chegara ao ponto de achar que todas o olhavam e o desejavam.
“Foi duro para ele quando envelheceu.
“Oh, doutor, ao ver seu primeiro cabelo branco, senti uma emoção que me fez perder o fôlego, e depois uma alegria – uma alegria perversa, mas tão grande, tão grande!!! Disse comigo mesma: “É o fim … é o fim … ” Pareceu-me que iam tirar-me de uma prisão. Seria meu, só meu, quando as outras não o quisessem mais.
“Era de manhã, estávamos na cama. Ele ainda dormia, e me inclinava para despertá-lo, beijando-o, quando divisei nos seus cabelos, na têmpora, um fiozinho que brilhava como prata. Que surpresa! Não teria acreditado que aquilo fosse possível! Primeiro pensei em arrancá-lo, para que ele não o visse! Porém, examinando melhor, avistei outro, um pouco acima. Cabelos brancos! Ele ia ter cabelos brancos! Meu coração pulsava e eu transpirava; contudo, estava bem contente, no fundo!
“É feio pensar assim, mas tive prazer em cuidar da casa naquela manhã, antes de acordá-lo; e quando ele abriu os olhos espontaneamente, eu lhe disse:
“- Sabe o que descobri enquanto você dormia? “
"- Não."
“- Descobri que está com cabelos brancos.
“Ele teve um sobressalto de despeito, que o pôs sentado como se eu lhe tivesse feito cócegas, e observou, com uma expressão má:
“- Não é verdade!"
“- Sim, na têmpora esquerda. São quatro. “Ele saltou da cama para correr ao espelho.
“Não encontrou os cabelos brancos. Então lhe mostrei o primeiro, aquele crespinho, mais embaixo. E comentei:
“- Não é de admirar, com a vida que você leva. Daqui a dois anos estará acabado.
“Pois bem, doutor, eu falava a verdade: ninguém o reconheceria dois anos depois. Como é possível um homem mudar tão depressa! Ainda era bonito, mas ia perdendo a frescura, e as mulheres já não o procuravam mais. Ah, que vida dura levei naqueles tempos! Bem boas ele me fez sofrer! Nada lhe agradava, absolutamente nada! Abandonou sua profissão para fabricar chapéus, e perdeu dinheiro. Depois quis ser ator e falhou, e em seguida começou a freqüentar bailes públicos. Afinal, teve o bom senso de guardar um pouco de dinheiro, com o qual vivemos. Dá, mas não é grande coisa! E dizer-se que houve um momento em que podia ser considerado quase rico!
“O senhor viu o que ele faz agora. É uma espécie de delírio que o possui. Precisa sentir-se jovem, precisa dançar com mulheres que cheirem a perfume e a brilhantina. Coitado do meu querido velho!”
Emocionada, prestes a chorar, ela contemplava o velho marido, que roncava. Depois, aproximando-se com passos cautelosos, beijou-lhe os cabelos. O médico levantara-se e preparava-se para retirar-se, não encontrando o que dizer ante aquele estranho caso.
Porém, ao vê-lo sair, ela indagou:
- Assim mesmo, não quer deixar o seu endereço? Se ele piorar, irei chamá-lo.
Guy de Maupassant
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