Bico de Ouro - conto - David Gonçalves - trecho 3


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Entre uma briga que se findava e a seguinte, uma folga para o pessoal ir ao armazém e se abastecer de cerveja e cachaça. Ânimos exaltados, o álcool irrigava as emoções. Compadre Jiló sacou uma garrafinha de aguardente que trazia no bolso do colete e, após beber e estalar a língua, me ofereceu uma talagada. “É das boas!” – aprovei. Os violeiros, já posicionados numa espécie de palco improvisado, repicaram as violas e soltaram as vozes. Faltava entusiasmo na cantoria. “Esses caipiras de bosta!”, pensei, “só conhecem frango em supermercado, e congelado.” Era uma toada triste que relatava a história de uma cabocla chamada Teresa, que abandonara o amado por outro. O infeliz jurou vingança, prometeu matá-la.

Há tempo fiz um ranchinho pra minha cabocla morá,
Pois era ali nosso ninho, bem longe deste lugá,
No arto lá da montanha, perto da luz do lua,
Vivi um ano feliz sem nunca isto esperá.
E muito tempo passou, pensando ser tão feliz,
Mas a Teresa, doutor, felicidade não quis.
O meu sonho neste oiar, paguei caro meu amor,
Pra mor de outro caboclo, meu rancho ela abandonou.

Não é que os danados cantavam bem! Uma tristeza me invadiu. Raio de música! Entristecido, botei os olhos gulosos em cima da morena. Aquele figurão que fosse às favas. Para minha surpresa, ela me olhava de soslaio, atenta, muito arisca. Por alguns segundos, ficamos parados, olhos nos olhos, apesar da distância. Depois, jogando a cabeleira crespa sobre o rosto, sorriu e desviou os belos olhos de jabuticaba.

Senti meu sangue ferver, jurei a Teresa matar.
O meu alazão arriei e ela fui procurar.
Agora já me vinguei, é esse o fim dum amor,
Essa cabocla eu matei, é a minha história, doutor.

Estava assim nesses enleios quando compadre Jiló me cutucou.

– Fique atento. É nossa hora e vez. Esse espanhol papudo terá o merecido.

– Quem é aquele figurão?

– Mais um devorador da inocência pública. O deputado federal Graciliano Torres, dono de uma fortuna rápida. Um cidadão que sabe se aproveitar das vantagens. Fez fortuna na política!

– Anhn... e aquelas mulheres?

– Não mexa com vacas sagradas.

– Por quê?

– Ora, não seja tolo. Não é areia pro seu caminhão.

– Esse graúdo vive com as duas?

– O homem é poderoso. Tem café no bule. Nesta terra, quem pode, faz e desfaz. E o resto se sacode.

Calei-me. Onde estava metendo meu nariz? A bexiga pedia por um banheiro. Saí rápido. O mijatório era uma espelunca. O cheiro azedo se espalhava e impregnava as narinas. Queria lavar as mãos, mas não havia água, a torneira fora destroçada por vândalos. Limpei as mãos nas calças jeans e retornei aliviado. No pátio, estava a morena observando as pastagens ao longe, um olhar perdido, possivelmente triste. Criei coragem.

– Vejo que admira a natureza...

Ela se voltou. E nada disse. Apenas fixou os grandes olhos em minha direção. Depois, confessou:

– Nenhum prazer sinto num lugar como este. É uma barbárie. Algo medieval.

– Por que veio?

– Há certas coisas... Bem, o que importa!

Novamente seus grandes olhos pousaram em mim. O chão fugiu. Uma atração fatal.

– Nem sei porque estou aqui também – confessei. – O compadre Jiló, aquele lá, o pançudo, me trouxe. Estou surpreso comigo mesmo...

– É tão cruel, ignóbil. Estou apavorada. Que gente cruel. Pensei que as brigas de galos fossem proibidas.

– Algumas leis ficam no papel... O espetáculo da crueldade motiva as pessoas...

– Um espetáculo de horror. Aves indefesas sendo atiçadas por instintos selvagens. Há nesta gente um obcecado prazer por sangue.

Ficamos parados, imersos nos pensamentos. O sol do meio-dia brilhava intenso e aquecia a pele.

– Preciso ir... se ele me vê conversando com estranhos vira uma fera... Até logo.

Girou leve sobre os pés. Segurei-a pelo braço.

– O teu nome. Pode me dizer?

– Que importa... Entre nós há uma lacuna do tamanho do oceano. Esqueça esse pequeno encontro.

– Eu me importo. Como se chama?

– Geovana. Preciso ir – e partiu, talvez um pouco perturbada.

Por alguns segundos, permaneci respirando o doce perfume que ficara. Depois, fui arrastado ao rinhadeiro. Jiló trocava felpas com o espanhol. Envolvido, perdi de vista a fada que povoara por minutos os meus sonhos.

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O rinhadeiro estava concorrido. Talvez pela abundância das colheitas ou pelo bom preço do gado. Sem dúvida, festa bem animada. Compadre Jiló, como outros criadores, preparara-se há meses. A profissão de galeiro exige até as vísceras. Mais ainda: exige paixão. Está no sangue. Sente-se o prazer correr pelas veias.

O entusiasmo reinava, planava. Os galeiros pareciam meninos prestes a ganhar doce premiado. Tinham gasto reservas próprias para dar condições de luta às aves. Não era ofício barato. Um galo de raça valia um pote de ouro. O espanhol ficara rico às custas de rinhadeiros e esperava, neste dia, acumular boa soma, por isso apostava alto, tanta confiança colocava em seu galo predileto.

As brigas começavam mornas. Depois, ganhavam vulto. Os mais fracos e de pouca fama iam primeiro e eram arrasados sem piedade. No meio do rinhadeiro ficava como lembrança uma massa disforme de sangue. Aos poucos, do meio para o final, os mais fortes e famosos se enfrentavam. As apostas pegavam fogo. Os abonados queimavam dinheiro.

Muitos competidores vinham de fora, de regiões distantes, além do vale do Ivaí, todos crentes que seus galos fariam história. Carregavam as aves cuidadosamente, com muito carinho. Sentiam-se eletrizados quando o galo vencia, gritavam, abençoavam e, quase sempre, gastavam o prêmio pagando rodadas de bebidas. Quando o galo perdia, havia frustração, desgosto, resignação. As piadas eram ferinas e grosseiras.

Embora as rinhas fossem improvisadas, feitas em surdina – as leis eram claras e duras: quem promovia tais festas era punido com alguns anos de cadeia –, o volume de dinheiro era espantoso. Gente miúda não tinha vez. Caso de sorte, quando convidada por um galeiro, podia assistir, porém, de boca fechada. O lugar do rinhadeiro nunca era o mesmo. Ninguém desejava levantar suspeita.Acontecia, por vez, num pátio de olaria, ou no fundo de armazém beira-estrada, ou numa fazenda pouco conhecida. Nunca, porém, na cidade, onde vizinhos maldosos viessem a denunciar. Surdina, boca fechada, nenhuma divulgação. Mas as notías corriam como um raio entre os galeiros. Uma parte da polícia local fazia vistas grossas, recebendo pequenas gratificações.

Mas, nesta ocasião, chegara à cidade um jovem doutor recém-formado para ocupar a louvada função de delegado. O anterior se aposentara gordo e bêbado. E o vulgo costuma dizer: vassoura nova varre bem enquanto a velha deixa sujeira por todos os cantos. Doutor Evaristo pretendia exercer a função com brilho e dignidade. Não se contentava em prender pequenos ladrões e bêbados. Queria algo maior. Então, ouviu boatos sobre os rinhadeiros. Mas tudo era muito camuflado, invisível, impreciso. Muito ambicioso, desejava crescer rápido. Não pretendia apodrecer em Quadrínculo. Procurava, assim, realizar feitos grandiosos para despertar os meios de comunicação. Infelizmente, na cidade, para seu desespero, só ocorriam roubos de galinhas, de gado, brigas no meretrício, rixas entre adolescentes mimados...

– Nada mais acontece nesta cidade? Só merrecas? – perguntava aos seus dois ajudantes, ambos com barrigas prósperas e com o péssimo hábito de palitar os dentes.

– O que o doutor deseja mais? Está bom assim. Se quer barra pesada, vá pra cidade grande. Somos da paz. O pessoal dorme com as janelas abertas. Os grandes centros nos invejam.

Ao que o doutor contornava, às vezes, caindo em grotesca contradição:

– Bem, eu não gosto de violência. Também adoro este sossego. A paz me deixa repleto de ideias. Mas... é bom que saibam: morno demais não faz bem. É capaz de algum político achar que somos imprestáveis e tentar fechar nossa delegacia. Todo mundo na repartição só fala em corte de verbas. Entenderam? Se não despedirem a gente, com certeza nos mandarão para os confins de Judas. Entenderam?

Os policiais olharam espantados. Para eles, acostumados com o tédio, a violência dos grandes centros não passava de ficção. O doutor estava deveras irritado. Um deles pensou: “O chefinho está precisando de uma fêmea. Vou falar com a Eleonora...”

– Até o jogo de bicho por aqui é deplorável – reclamou doutor Evaristo. – É a decadência.

Imaginava-se esquecido naquela cidade. O seu fim seria jogar dominó com os aposentados em bares de putas empobrecidas! “Estudei anos a fio para entrar numa cova de duas aberturas: se abro uma tampa, o futuro é negro; se abro a outra, é cinza.”

Numa quinta-feira chuvosa, desesperado, saiu para um breve passeio de carro. Parava nos bares e bebia cerveja. Enquanto a chuva fina cobria a noite, criando uma cortina de neblina nas lâmpadas dos postes e o asfalto ganhava cor vermelha por causa das enxurradas, ele pedia mais e mais cerveja. O que estava fazendo naquela cidade medíocre? Jogando a vida fora. Nascera na capital, gostava do frenesi noturno, bebendo com amigos e mulheres bonitas. Entretanto, estava enterrado naquela bosta de cidade.

Ouviu, então, perto da meia-noite, a conversa entre dois trabalhadores. O ruivo dizia:

– Você não sabe? Pois é, o negócio é pra valer. Fala-se muito neste rinhadeiro. Vem gente de longe, até de outro Estado. Grana alta, rapaz! Ninguém aposta merreca. É pra gente graúda. Carteira recheada manda ver. Pobre fica de fora olhando, lambendo os beiços, doido por uma aposta de cinco reais.

O sujeito alto e magro falava lentamente, como se estivesse com a boca cheia de milho.

– Ora, veja só... Estou mesmo por fora. Quem diria? Que coisa, hein! Eu aprecio muito.

– Conhece o Jiló?

– De vista. Nenhuma amizade. É tipo gordão, com muita banha?

– Esse mesmo. Pois não se cabe de contente. Só fala no rinhadeiro. Apostou tudo que tem. O seu rival, o espanhol, jurou que o deixará sem calças. E deixará mesmo. O espanhol é raçudo. Quando coloca alguma ideia na cabeça fica doido.

Doutor Evaristo ouvia atento. O assunto o entusiasmava. Que oportunidade! Viu-se famoso. Uma mina de ouro. O momento chegara. Enfim, poderia mostrar sua força... Achegou-se ao balcão ensebado. Fez sinal para o dono da bodega. “Mais dois mercedinhos aqui” – cochichou, esfregando as mãos. “Esse pessoal merece. Bem caprichado. Nada de miséria.”

Os dois já se achavam tomados pela cachaça. Riam por qualquer coisa e mostravam os dentes falhos. Ficaram deslumbrados com a oferta. “É canja obter informação. Nem se aguentam de pé”, pensou.

– Por isso que gosto desta cidade – disse o ruivo, emborcando de uma só vez a bebida. – Que povo hospitaleiro. Nem conheço o senhor e e nos paga um trago. Em outro lugar, com certeza, seria pé na bunda...

– Ora, rapazes, eu gosto de fazer amigos. E também de briga de galos. Já senti que vocês são do ramo, conhecem o terreno que pisam. Faz gosto conversar com pessoas assim...

– Ah, só um pouco... quase nada – voltou a dizer o ruivo, limpando com o dorso das mãos calejadas o bigode esfiapado, enquanto estalava a língua pastosa. – É divertido. Por essas bandas, a vida corre ordinária. A gente precisa de algum passatempo...

– Tem razão. Por aqui nada acontece. Estou enjoado de perambular à toa. A rotina mata. Eu gosto de rinhadeiro. Mas não conheço nenhum. O frenesi dos galos me faz o sangue ferver. Sou capaz de fazer apostas estúpidas. Brigo comigo mesmo. O sangue esquenta, parece que tenho o diabo no couro. Vocês também?

O ruivo riu, as mãos na boca, confessando:

– Pra mim não há limites. Sinto algo estranho por dentro. Certa vez, acreditem, trabalhava para o doutor Odilon, criador de galos. Era louco por peleias. Tinha uma picape só pra carregar os galos de estimação. Por onde ia, nos dias de folga, de sexta à tarde até domingo, sempre se envolvia em apostas.Deixava os pacientes esperando em seu consultório. Gostava mais dos galos do que da medicina. Fomos noutra cidade. Sempre me convidava, eu cuidava das tralhas. “Ruivo, coloque os bichinhos na picape. Hoje, a sorte está pro nosso lado. Fiquei a noite inteirinha com os olhos arregalados.” Então, eu colocava uma meia dúzia em grades separadas e lá íamos nós. Era patrão bondoso, a bebida corria solta. Em diversas ocasiões, dormimos pelas estradas, podres de cachaça. Ganhava, perdia. Mas, certa vez, em Ponta Grossa, só me lembro que fazia um frio dos diabos, ele apostou tudo num rinhadeiro podre, onde as brigas já estavam marcadas. Quanto mais apostava, mais perdia. Por último, colocou a fazenda no páreo. E perdeu. Suava frio. E me olhava perturbado. Eu o puxei de lado, aconselhei: “É podre, chefe. É coisa feita!” Ele retrucou: “Impossível, Ruivo. Conheço esse pessoal há tempo...” Voltei a dizer: “Chefe, é roubo! Coisa encomendada, é quadrilha.” Então, com os olhos que pareciam bolas de gude, ele puxou do trinta e oito e começou a estourar pipocas. Fiz o mesmo. Dois safados ficaram estendidos. Que dia! Fizemos os bandidos colocarem o dinheiro no meio da rinha. Recuperamos o dinheiro. Que tempo! Foi sangue por todo lado.

Doutor Evaristo pediu mais duas doses. Ofereceu cigarros. Aceitaram. Com um só fósforo, ele acendeu os três cigarros. As baforadas inundaram o bar.

– Onde encontro um rinhadeiro? Quero quebrar a rotina, preciso de novas emoções. O sangue me dá prazer. Onde acho uma briguinha de galos?

O ruivo riu.

– Ah, é fácil. Mas...

– Mas?...

– Sigilo, chefe. A polícia não pode ficar sabendo. É proibido. Consegue guardar segredo, chefe?

– Sou um túmulo.

Então, o ruivo contou, a voz baixa. Em seguida, doutor Evaristo se despediu. Ainda era quinta-feira. A chuva continuava a cair. A lama vermelha tingia o asfalto. Até domingo montaria uma estratégia. Estava feliz. Que oportunidade! “Um raio nunca cai no mesmo quintal. É pegar ou largar!”

                                                  7

O que era a rinha? Apenas um jogo. Uma espécie de roleta. “É absurdo esperar alguma coisa do jogo”, pensei. O jogo se assemelha a qualquer outro negócio? O comércio, a indústria, os serviços? Neste mundo, tudo é uma forma de ganhar dinheiro. Alguém sempre ganha e outros perdem. O que atiça as pessoas a jogar é exatamente esta possibilidade de ganhar ou de perder.

Nunca estive numa rinha. Então, decidi: “É preciso estudar o próprio jogo”. Mas é sujo, repulsivo, bárbaro. Mas o que é, pois, uma tourada? A farra-do-boi? Diversão? O desejo de ganhar algumas moedas sem esforço e isto faz do homem o ser mais vulnerável. Ficar rico em alguns segundos, num golpe de sorte. O sangue corre inquieto. Tem sangue morno quem se arrisca pouco. Sangue de barata. Rinhadeiro exige sangue forte.

Mesmo que seja a primeira vez, o coração bate descontrolado. Senti medo. Qual era o receio? Faltava-me, confesso, sangue frio. Já me convencera que o domingo mudaria minha vida. Não sairia daquele lugar do mesmo modo como havia chegado. Ruim? Bom? Acontecimento radical, eu pressentia, e decisivo, estava para desabar em meu destino.


Quando padre Zeca chegou, estavam na rinha um galo branco – de outra cidade, cujo dono era um abastado comerciante – e um galo dourado, também de outra região, que ninguém conhecia. Um peão magro, alto, mais parecido com um pau de virar tripas, trouxe-o à rinha. As apostas se intensificaram, os ânimos estavam acirrados, e houve quem desse um lance de cinco mil reais, outro de sei mil, só na vantagem do galo branco, que se mostrava valente, aceitando a briga, mirando o galo dourado com ferocidade, disparando, assim que foi encarado, dois ou três esporaços que passaram ao longe do pescoço do rival. Mas, diante das investidas do dourado, encolheu-se: postou-se de cabeça baixa, asas encolhidas e murchas. Aproveitando-se da situação, o galo dourado achegou-se firme, disparando bicadas ferinas, com arremedos de esporaços, atiçando. Mas o galo branco murchara. Encolhera-se, as asas arriadas. Os apostadores se indignaram. O juiz encerrou a contenda. O comerciante pegou o galo e, na frente de todos, cortou o pescoço com uma navalha. O sangue espirrou. Envergonhado, sujo de sangue, retirou-se. Os apostadores diziam-lhe palavras ásperas.

– O que posso fazer? Era tudo que eu tinha. Cuidei do bicho como ninguém. O que aconteceu é desprezível. Na hora do vamos ver, se afinou!

Abancou-se no bar, desolado.

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