Bico de ouro - conto - David Gonçalves - trecho 4


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Com nome e espírito de Gervásio, ostentando a peruca preta, padre Zeca não cabia de contente: o Espora Dourada chegara a tempo de topar um desafio. O sujeito provocativo dizia coisas de arrepiar os galeiros ali reunidos.

– Não está nesta rinha galo para abater o Pitoco. Aposto duas por uma. Até hoje nunca perdeu briga alguma. Quem topa?

Ludovico mirou padre Zeca, depois o tal galo avermelhado, com listas douradas no rabo, mestiço a índio, baforou o cigarro barato entre os dentes corroídos, cusparou por entre as tábuas da arquibancada improvisada.

– É muita areia pro nosso caminhão? – perguntou. Esperamos mais? Ainda não sondamos a temperatura do rinhadeiro. O que acha? Será verdade o que diz ou só está provocando?

Então, padre Zeca ergueu-se, dizendo:

– Eu topo. O meu Espora Dourada não leva desaforo pra casa. E meus ouvidos não são penico.

A pequena multidão cala-se para observar quem falava. Padre Zeca se apresentou:

– Estou de passagem. Sou o Gervásio. Aquele ali é o Espora Dourada. O que acham?

O desafiante também se apresentou. Morava além do Ivaí. Viera às pressas para usufruir as contendas. Não voltaria de mãos vazias, sem o entrevero. Os galos, quando folgam demais, tornam-se inúteis.

– O Pitoco, onde moro, é famoso. Nunca perdeu. E não é hoje que ele vai virar galinha. Por lá, ninguém o aceita pra uma boa briga...

– Veremos – disse padre Zeca.

O juiz pediu que colocassem os galos na arena. Repetiu as regras. Ordenou que soltassem as aves. Mas tudo foi muito rápido. O galo índio levou um esporaço já de começo e se amoitou. O Espora Dourada bateu como quis. O estranho jogou a toalha, pagou o que devia e saiu chateado.

– Eu não disse, Ludovico! Com três avanços cortou a garganta do metido. Não deu nem pro cheiro, rapaz!

– Uma barbada, padre.

– Caramba, Ludovico. Já te avisei. Me chame de Gervásio. Quer que esta multidão me linche?

– Perdão, padre, digo Gervásio. A gente não esquece o hábito. Fico confuso...

– Não se faça de bobo. Eu sou, hoje, um cidadão do povo.

– Perdão, seu Gervásio. O costume...

Padre Zeca virou-se para a direita.

– Quem é o figuraço lá? Aquele que balança a pança?

– É o Jiló.

– Por que se agita tanto? Até parece que está com sarna. A pança dele é uma gelatina.

– É o dono do Bico de Ouro, o desafiado. Aquele outro lá é o espanhol, o Alonzo. Um sujeito desprezível. Tem o rei na barriga, só conta vantagens. É igual pinheiro: ao redor, ninguém se cria.

– Ainda vou desafiá-lo. Este galinho aqui não me faz passar vergonha. O que acha de a gente topar outra briga?

– Vou falar com o juiz. Quem sabe... ainda é tempo. Mas duvido. Chegamos tarde.

– Não custa tentar. Já ganhamos algum dinheiro. Vá ao armazém e compre um litro de uísque. Estou com a garganta seca.

– Uísque?

– O que foi? Estou cansado daquele vinho de sacristia. Quero algo melhor. Vá logo!

Ludovico pegou o dinheiro que o padre recebera como oferta na missa daquele domingo e saiu, desviando os espectadores. Padre Zeca sentou-se na arquibancada improvisada, observando o começo de um novo confronto. Alguém se aproximou e, em voz baixa, se apresentou.

– Com licença. Sou o Evaristo. Que belo galo!

Padre Zeca mirou de soslaio. Conhecia-o? Não, nunca o tinha visto.

– Gervásio, ao seu dispor. Sente-se. Já mandei buscar a bebida.

Doutor Evaristo sentou-se, espremendo outras pessoas. Em seguida, Ludovico voltou com o litro de uísque e dois copos de plástico.

– É a primeira vez... Nada sei sobre esse negócio. Pelo que vejo, muitos gostam.

– Há pessoas que não conseguem fazer outra coisa senão criar galos de briga. É uma paixão. Está vendo este galo? Pois é tratado como filho. A melhor ração, o melhor veterinário, não fica exposto ao vento frio, muito menos a chuva. Cuido dele com prazer. Viu a sova que ele deu no galo índio agora mesmo?

– Cheguei agora. Não sabia o endereço. Vim a rumo. Então, já lutou? E ganhou?

– Nem deu pro cheiro. Ainda tem mais: se ele não desse no couro, eu tenho lá no jipe mais dois de reserva. Mas nem foi preciso. Está vendo este uísque? Ele quem está pagando! – gabou-se, esquecendo de que o dinheiro dado a Ludovico era da igreja. – Até merece um brinde. Viva! Este galinho me dará muitas alegrias!

Ambos ergueram um brinde ao galo.

Depois, doutor Evaristo despediu-se. Um outro compromisso o esperava. Quem era aquele figurão que esnobava arrogância diante do povaréu?

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O bater de asas era brusco e desafiante, bem mais forte do que ao raiar do dia. Ao contrário, do amanhecer, quando o bater de asas é para saudar e desafiar o novo dia, naquele momento era para desafiar e anunciar a morte.

Curiosos e olheiros, que nunca se arriscavam em apostas, frequentavam as arquibancadas nas brigas preliminares. Na contenda principal, entretanto, o público mudara. Os violeiros ainda estavam presentes e com certeza ficariam até o último esguicho de sangue. O figurão e suas duas mulheres invejáveis eram o centro das atenções. Até um ignorante, que nunca presenciara coisa semelhante e nada entendia dessas artimanhas, pressentia que o público naquele momento estava ávido por sangue e dinheiro. A rinha mudara: as arquibancadas estavam ocupadas por gente de categoria. Os pés-rapados espiavam de longe, fora do barracão, exalando bafo de cachaça.

Novamente, fiquei impressionado com o bater de asas brusco e desafiante dos galos, que sempre anunciavam nova aurora, com promessas de felicidade e propícia estação. Mas, ali, o anúncio da barbárie, de um massacre, me deixava com os pelos arrepiados.

Compadre Jiló estava excitado: segurava o galo de estimação e ao mesmo tempo me cutucava:

– É sucesso! Só gente graúda. Meu galo, até que enfim, é vitrine. Ah, Bico de Ouro, é a hora de mostrar o que sabe. Não se avexe. Que público! Está entupido.

Eu olhava atônito. De que diabos ele falava? Por que tanta empolgação? Em minha cabeça, entre tanta gente espremida, só havia Geovana, a morena de cabeleira crespa, e muito horror. O resto eram figurantes, espectros tortos.

– Espie: aquele baixote de bigode espesso é o doutor Farias, especialista em doenças renais. É galeiro famoso. Possui mais de trinta galos. Tem mais zelo com os galos do que com seus pacientes. Aquele outro, veja só, é professor benemérito e diretor de escola na cidade vizinha. Você está vendo o gorducho? É forrado de grana: faz agiotagem. A rinha mudou de cor. É sucesso!

E acariciava o galo, dizendo:

– Por Deus, não faça feio. Nada de vexame. Você, pra mim, é tudo. É o céu, a terra, a vida. Não esqueça de minhas lições. Espere o adversário mostrar seus feitos. Depois, como o raio, você dispara a espora sem dó. Bem na altura do pescoço. Não se afobe. Esse povaréu vai à loucura, gritando urras. Não se apresse, mostre desinteresse, rodeie pra cá, pra lá, espere o momento certo...

O galo ouvia quieto. Olhos abertos, inclinava levemente o bico e balançava a crista bonita. A rinha estava repleta. Animação e entusiasmo brilhavam nas pupilas cada vez mais dilatadas.

No outro lado, no melhor lugar da arquibancada rústica, a morena de meus sonhos. Sorria feliz. O nobre deputado sussurrava-lhe algumas palavras indecorosas, dando-lhe beijinhos mordiscados em seu rosto. O sangue me subiu às têmporas.

– Ora, que grandíssimo filho de uma mãe! Por que não escova urubu até ficar branco? – ruminei, despeitado.

Brotava, no fundo da alma, o ciúme doentio, visguento e inútil. O coração bateu acelerado. Parecia locomotiva. Uma mulher tão bonita sendo vítima de um pilantra endinheirado.

Finalmente, mediante pessoas inquietas, o espanhol soltou um galo retinto, negro, pescoço pelado e muito vermelho, que começou a passear pela arena, exibindo seu porte, olhando em todas as direções, à procura de seu oponente.

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– Os galos, os galos!

O juiz, sujeito alto feito pau de virar tripas, o rosto tomado por manchas de espinhas, vestido de preto, se colocou na cabeceira do rinhadeiro e pediu que fossem trazido os galos. Jiló moveu-se até a caminhonete, pesadamente, carregando o Bico de Ouro debaixo do braço, retornando em seguida, sempre conversando sorrateiramente com o galo.

O espanhol, sentado na primeira fila, ria aberto, comentando as peripécias de seu galo. Mais de vinte confrontos, mais de vinte vitórias. Não podia ver galo metido pela frente que soltava as esporas fatais em linha reta, como raio. Ria e atiçava o público.

– Aceito qualquer aposta. Graúda ou miúda, tanto faz! Ainda não nasceu galo algum! Quem quiser apostar, cruze o dinheiro aqui – espalmava as mãos grandes. – Mas advirto: é dar grana de mão beijada. É como tirar dinheiro de cego!

Só então observei que o galo tinha o pescoço vermelho e pelado, um olhar de mau-caráter, e o bico se parecia com uma foice, as esporas afiadas como espada.

– Esse galo só come alpiste, milho importado e osso de tutano ralado!

Logo alguém se enfezou.

– Bazófia não ganha batalha.

O espanhol engoliu seco, engrossou as veias do pescoço e contra-atacou enfurecido:

– Mais de vinte galos famosos comeram areia e serragem por causa de suas esporas. Conheço o bárbaro desde o ovo. Não há nenhum outro que chegue perto. Bote o inimigo na frente que ele sabe o que fazer!

Compadre Jiló endureceu a pança.

– Elogio em boca própria é vitupério.

Em seguida, incomodado, me cochichou:

– Você vai presenciar um massacre. O Bico de Ouro sabe das coisas! Esse borra-bosta entrou numa fria.

O juiz magricelo pediu os galos. Pesou-os numa balança enferrujada. Observou minunciosamente os bicos, as esporas, peitos e asas. Depois, devolveu-os aos donos, distribuindo as puas.

Havia um mundaréu de pessoas chegando. Cada qual procurava abancar-se onde havia espaço, mas o ângulo de visão ideal já se esgotara. Jiló, que exibia um tique nervoso feio, repuxando a orelha direita, me chamou de lado.

– Venha cá!

Fomos atrás da caminhonete.

– Toma! É para as apostas. Não enjeite nenhuma. Pegue todas.

E me passou um punhado de notas novíssimas. Me assustei. Poucas vezes havia segurado tanto dinheiro.

– Mas... Eu não sei apostar. Nunca estive numa rinha. Sequer sei como funciona!

– Não se preocupe. Aquele espanhol vai ficar sem as calças, quem sabe sem as ceroulas, se tiver! Comigo é assim.

E voltamos ao rinhadeiro.

Havia discussão, numa espécie de alarido, em torno da peleia. O juiz trombeteou, a voz grossa:

– O depósito! Quinhentos reais por galo.

– Mexa-se – me cutucou compadre Jiló, excitado, o tique nervoso na orelha. – Dê o dinheiro. Faz parte do acordo. Dinheiro cruzado na frente do juiz. É garantia. Se deixar pro final, o cabra negaceia igual cavalo mordido por cobra diante de minhoca.

Meti a mão na algibeira e saquei cinco notas de cem, ainda novinhas, e joguei nas mãos do pau de virar tripas. O espanhol resmungou: “Bueno, mui Bueno, Bueno... hummm”, e fez o mesmo, mas de forma soberba como se aquelas notas significassem muito pouco. Um ódio começou a brotar lá no fundo. Não era bem ódio. Apenas uma pontinha de raiva. A primeira vez que via o fulano e já me enojava. Mirava as pessoas por cima e quando falava sequer cruzava os olhos. Não podia ser boa gente. Vaidade e orgulho dominavam aquela criatura infeliz. Crescia dentro de mim a raiva. Engoli o cuspe a seco. E despejei vingança brutal em cima de seu galo. O filho de uma égua, o filho de uma mãe, o filho de Belzebu. O danado haveria de comer a serragem da arena, ensanguentado.

– Saibam os donos dos respectivos galos a regra básica: a peleia é, conforme o justo e acertado, até a morte, ou se um dos donos pedir clemência em voz alta e jogar a toalha no chão.

– Mas... que toalha? – pensei. – Isso não é ringue.

Jiló me explicou:

– No caso de massacre evidente, quando não há o que fazer, o perdedor implora pelo fim, dando a batalha por perdida.

Eu não estava acostumado com tanto movimento e algazarra. Quedei-me analisando o redondel vazio cercado de pano vermelho, reforçado por uma cerca de tela forte, de modo que os galos não fugissem e também não voassem. A discussão fervia. Probabilidades, ofensas e chacotas. Uma rinha difícil e parelha. Qualquer palpite poderia cair em vexame. Galos de peso igual, talhe e porte semelhantes, cuja única diferença estava no pescoço pelado de Pluma de Águia. Pela conversa quente, cada qual já pisara na arena por muitas vezes. E nenhum havia sido derrotado. O páreo seria duro. Alguns diziam:

– O Pluma de Águia é bom na espora. O golpe é fatal. Cutuca com o bico e golpeia rápido, sem chances para o inimigo, como uma rajada brilhante de metralhadora.

Outros defendiam Bico de Ouro.

– Não há combatente igual. Eu já vi no serviço. Olha só pra ele: parece tranquilo, não se move, como se falasse: “Na hora, eu resolvo”. Mas seus olhos são ágeis, de uma cor indefinida, um poço profundo. Não se afoba, fica aguardando o momento. Primeiro, dá um cansaço no adversário. Anda pra cá, anda pra lá, faz de conta que tem medo, depois zás! A bicada certa. A espora voa.

Jiló inchou de contente. A barriga balofa dançou sob as calças sustentadas por gastos suspensórios.

– Posicionem os galos! – ordenou o juiz.

As aves foram colocadas pelos donos em posição de combate, bem no meio do círculo. As expectativas ficaram tensas. O suor desceu no rosto gordo e crispado do compadre. Aquela orelha que se mexia incontinente me incomodava.

Então, soou a campainha.

Pluma de águia retesou as pernas, firmando-se no solo misturado com serragem nova, asas abertas, feito um chapelão de chuva, o pescoço pelado encolhido, bem vermelho, as pupilas negras firmes. Mas nada aconteceu nos primeiros segundos. Bico de Ouro, com pouco alarde, nenhuma importância deu à presença do desafiante. Aproximou-se vagarosamente, passos miúdos, como se estivesse passeando com as galinhas, cabeça alta, o topete da crista ondulando.

O silêncio se abateu sobre a rinha. Ouvia-se a respiração de cada pessoa. Alguém quebrou a monotonia nervosa.

– Trinta pratas no pescoço pelado!

O espanhol rebateu, o brio ferido:

– Pescoço pelado é a mãe! O galo tem nome. Não foi criado em seu galinheiro sujo. É de origem respeitada. É Pluma de Águia!

– Que se dane! – revidou o desconhecido. –Pra mim, é pescoço pelado! Mais ainda: respeite minha mãe!

O espanhol ia responder, mas as atenções foram para o centro do rinhadeiro. Num arranque, Pluma de Águia encurtou a distância, e os bicos se retiniram num jogo rápido, como se afiassem as ferramentas para a luta, num prelúdio. Tanto a cabeça de um quanto a de outro tremulavam, um vaivém para baixo e para o alto. E aconteceu o primeiro ataque de Pluma de Águia, as veias do pescoço inchadas, as asas abertas como chapéu. Mas Bico de Ouro recuou, desviando-se da bicada e do puaço, que passou sobre sua cabeça.




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