Veio a segunda briga. Quase sem nenhuma importância. Apenas um atrativo para a manhã de domingo. Coisa de circo. O Asa Quebrada contra o Perneta. Ninguém apostou. Asa Quebrada tinha história de campeão em diversas cidades. Mas um esporão assassino o liquidara, dobrando sua asa direita como a de um morcego de bambuzal. Não perdera, entretanto, a ferocidade e brigava como possuído. Perneta também tinha fama de campeão, mas perdera a pata esquerda, no alto da canela, por uma navalhada de puaço. O dono, que o amava, não quis sacrificá-lo, medicando-o com receitas caseiras e assim conseguiu salvá-lo. Apresentava-o nos rinhadeiros como parte do espetáculo. Achei ridículo. Um gosto doentio.
– É absurdo! Existem tantas formas de chamar atenção!
– Você não viu nada – comentou Jiló, eufórico. – O dono desse Perneta, segundo os boatos, vive num casarão com o galo. Cuida dele como se fosse da família...
Os violeiros chegaram. Uma dupla da região. Lá no canto, longe do burburinho, começaram a afinar as violas. Jiló os cumprimentou e trocou algumas palavras. Depois se postou novamente na cabeceira da rinha.
Os galos foram colocados frente a frente. E o que se ouviu foram piadas de mau gosto. Desinteressado pelo circo, até mesmo arrependido por estar ali naquela bela manhã de domingo, levantei os olhos para o pessoal que havia chegado. Era gente importante, talvez um dos figurões esperados. Logo atrás da figura imponente, entrevi três a quatro homens fortes e atentos, que vigiavam o ir-e-vir da plateia. Num repassar de olhos, qualquer idiota descobria que eram capangas.
Na mesma caravana, ao redor do ilustre cidadão, duas mulheres: uma loira oxigenada, de bom corpo, mas espevitada, de pele lisa, muito bela; outra, de vasta cabeleira crespa sobre os ombros nus, olhos grandes e negros como jabuticaba. Um corpo firme de meter inveja e cobiça. Ombros altos, seios empinados e quadris bamboleantes.
Por Deus, fiquei suspenso. Uma mulher tão bonita! Senti as mãos trêmulas, o coração disparado. De imediato, percebi que estava ligada ao figurão. Enquanto falava aberto com o povaréu, ele se voltava risonho, cochichando aos ouvidos dela, pecaminoso e indecente.
Por todo o rinhadeiro só havia risos e piadas. Asa Quebrada perseguia Perneta por toda parte. O coitado não tinha o esporão anavalhado, tropeçava e dava cambalhotas divertidas. O público delirava. Um engraçadinho não se conteve e quis apostar no Asa Quebrada.
– Cem mangos por vinte! É pegar ou largar! O Asa Quebrada fatura o aleijadinho.
Logo alguém topou. Mais por gozação. Outros também se animaram. Era uma aposta injusta. Compadre Jiló ficou brabo, resmungando:
– É como tirar marmelada da boca de criança! Só porque não tem uma pata sadia...
Eu não conseguia prestar atenção. A morena grudara em meu cérebro como visgo. Se quer olhava os galos palhaços. Ela conversava com a amiga e dava ouvidos à figura imponente.
– Pois eu vou defender esse galinho aleijado! – esbravejou Jiló, coração cheio de bondade, feito um Dom Quixote. – Ofereço cinquenta por vinte no Perneta. Ele tem jeito de campeão!
– Está doido! – eu disse, boquiaberto. – De que jeito ele vai meter o navalhaço no pescoço do outro?
– Pouco me importa. Quero botar fogo neste circo!
Muitos aceitaram a estopada. “O Jiló se ralou”, pensei. “Mas ele é louco mesmo. E o dinheiro é dele.” O que eu sabia sobre brigas de galo? Eu estava aceso naquela mulher de vasta cabeleira crespa. Que olhos de jabuticaba! E assim nem percebi o desenlace. De repente, o rinhadeiro silenciou. E lá estava Asa Quebrada estirado no chão, sem vida. Compadre Jiló vibrava:
– Eu não disse! O aleijadinho tem jeito de campeão. Pulou de lado, flanqueou, ficou suspenso no ar e estuporou o pescoço do adversário. Passem o dinheiro!
Pela primeira vez, observei o espanhol, o desafiante de Bico de Ouro. Não se conformava com a derrota. Estava enfurecido. Falava alto e grosso:
– Foi sorte. Quero ver quem tem culhões quando meu Pluma de Águia entrar na rinha!
Havia um punhado de dinheiro nas mãos gordas de Jiló, que me repassou por baixo do sovaco cuidadosamente, dizendo:
– Bote nos bolsos. Vamos precisar. Depois dessas briguinhas é a nossa vez. É preciso ter peito e bolsos forrados.
4
As palavras se amontoavam à procura de uma explosão. As sílabas se entrechocavam. Padre Zeca gaguejava em alguns períodos. As frases nervosas se atropelavam. Os significados se espremiam. Ansiava por encerrar a missa. Que remédio! Encurtar o sermão? Cortar alguns trechos sem importância? Mas a igreja estava lotada. O domingo brilhava. Por que tanta gente assistia à missa naquele domingo? Se cortasse um pedaço da liturgia? Mas havia o bando de mulheres devotas que não o perdoariam... Um domingo ótimo para se divertir e aquela gente o segurava no altar... Um dia romântico para passeios no campo... Simplesmente extraordinário para curtir os ares da serra... Mas aquelas pessoas estavam ali, recitando as orações. Padre Zeca não queria perder aquele domingo. Em sua cabeça, rodavam muitos planos.
O texto do sermão dizia:
"O julgamento é este: Que a luz veio ao mundo, e os homens amaram mais as trevas do que a luz; porque suas obras eram más.
Pois todo aquele que pratica o mal, aborrece a luz e não se chega para a luz, a fim de não serem arguidas as suas obras."
Quando lia apressado, viu de relance, através da porta da sacristia, o Ludovico – magro, um dente de ouro e outros podres, a calvície adiantada a começar pela testa – fazer-lhe sinais para terminar logo a liturgia, pois estavam atrasados. Ficou ainda mais impaciente. Não havia como acabar. Aquele bando de mulheres devotas não o perdoariam. Na comunhão, aquela fila esticada. Distribuiu as hóstias, abençoando ao mesmo tempo, nervosamente. Suas mãos, ao entregar o Corpo de Cristo, tremiam, como se estivesse com o mal de Parkinson. De relance, novamente avistou a cabeça calva de Ludovico reluzindo à porta. Apontava o relógio de pulso. “Estamos ferrados. Acabe com essa ladainha. Os que chegam por último só recebem os ossos” – seus lábios carnudos e suas mãos compridas e magras falavam. Padre Zeca sentiu o suor escorrer pelas costas. Tinha que ir até o fim.
Ludovico não gostava de chegar atrasado. Principalmente nas brigas de galos. Era locutor. Mas não havia sido contratado para aquele dia. Narrava como se fosse uma luta de boxe, com voz esganiçada, como se alguém lhe apertasse firme a garganta com as duas mãos. Anunciava aos gritos as ordens do juiz. Vibrava com os esporaços cortantes quando atingiam a garganta do perdedor. Tudo que conseguira na vida, perdera em apostas. Atualmente, cuidava de uma chácara e criava galos de briga. Empobrecido, maldizia a sorte, e tudo que ganhava, através de esforços árduos ou por apostas, gastava com os galos.
– Ferrados, padre! Ferrados! O que fazer? O tempo se foi. O sol já está no meio do céu.
– Pé na tábua, Ludovico! Não respeite os buracos. Mantenha o sangue frio. Neste país, tudo se atrasa. Por não com as brigas?
O jipe saiu cantando os pneus largos e gastos.
– Quantos galos você trouxe? Só três?
Atrás dos bancos, três galos em gaiolas separadas.
– Para que mais? Três brigas, e só. Escolhi os melhores. Veja como estão inquietos. Já sabem que hoje a parada é de arrepiar. Mire o galo Índio...
Padre Zeca concordou.
– Aquelas mulheres papa-santos me enojam! A cada dia me aborrecem mais! Trouxe o Espora Dourada?
– Está aí, não reconhece? Jamais esqueço dos compromissos. Dê uma espaiada. Éo que está do lado direito. O mais inquieto!
Satisfeito, padre Zeca espalmou a cortina de sol do meio-dia.
– Boas chances, Ludovico! Uma bolada não faz mal a ninguém. Aquelas beatas ainda me pagam... Sou capaz de espinafrá-las. Essa gente vive azeda com a vida. Só reclama. Oh, missa demorada. Mas temos chances. O que acha?
– Sei, não. Escutei gabolices sobre os galos do espanhol e do Jiló, aquele pançudo.
– Bobagem. Artimanhas...
O jipe deixou o asfalto e enveredou por uma estrada forrada de pedregulhos. Padre Zeca abriu uma bolsa de couro já gasto e retirou diversos apetrechos. Um canivete de três lâminas com cabo de osso, um pente pequeno e uma peruca. Um dos galos cantou fora de hora. Ludovico fechou o cenho. Não era bom agouro.
– Essa cabeleira me irrita. Quando um padre terá liberdade de fazer o que gosta? Por uma diversão, a gente tem que usar disfarce... Que bobeira! Sabe de uma coisa Ludovico: a igreja só está interessada nos imóveis grandiosos que possui. Enquanto isso, ferra os seus servidores. Me diga: por que não posso frequentar um rinhadeiro?
Enfiou a peruca de cabelos negros na cabeça. Em seguida, colocou óculos escuros. Sua fisionomia mudou. Parecia mais jovem, com menos de trinta anos.
– Como estou? Pareço outra pessoa?
Ludovico mirou-o de soslaio.
– Perfeito, padre. Irreconhecível!
– Não me chame de padre. Que nome devo usar? Seja meu conselheiro. Então?
– Então, o quê?
– Escolha um nome. Decente, é claro.
– Não sei.. O que prefere? Nunca fui bom em nomes. João, Moisés, Lucas?
– Bíblicos, não. Use a imaginação.
– Pois não me vem nome algum na cabeça. Leôncio? Gervásio? Francisco?
– Gervásio me parece bom. Isso mesmo! Gervásio da Silva. Agora, preciso incorporar o espírito desse nome. Sabe, Ludovico, os nomes possuem alma também.
– Espírito! Isso me assusta só de pensar.
– Veja só: Gervásio me faz lembrar de um amigo da infância. Era sapeca, ria muito e adorava fazer diabruras. Acho que vou incorporá-lo. Nunca perdeu uma briga entre a molecada. Tinha tutano. Não levava desaforos pra casa.
– Ele já morreu?
– Que me importa. Eu não sei. Posso incorporar vivos. E daí? Ou não posso?
Um leve tremor passou pelos lábios carnudos de Ludovico. “Que conversa esquisita”, pensou, pisando fundo no acelerador. “Alguém pode incorporar a alma do outro? E ainda vivo?”
– Sei lá, padre. Tenho medo de mexer com essas coisas. Os espíritos vivem em mundo diferente.
– Não me chame de padre. Gervásio, entendeu?
O galo voltou a cantar.
– É mau agouro. Com a breca! Este galo não se dará bem na rinha. O canto fora de hora anuncia desgraça. Por mim, dava um tiro nele já.
– Superstição, rapaz. O que tem a ver o canto do galo com nossas ações? Absolutamente nada.
– Tomara! Uma suspeita desde criança.
– Crendice... preocupação vã... O que interessa agora é chegar a tempo. Pise fundo. Os galos estão bem acomodados.
Ludovico apertou mais o pé no acelerador. Um canudo de poeira se levantou ao longo da estrada.
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