Conto: "Bico de ouro" -David Gonçalves / trecho 1


Aquele domingo acabou virando o destino pelo avesso. Compadre Jiló – um homem grande e gordo, barriga enorme, as papadas da pança caindo sobre as virilhas – estacionou a caminhonete vermelha na frente de casa no domingo cedo. Eu vadiava pelo quintal. O sol da manhã penetrava gostoso na pele.

– Vamos dar um passeio, compadre!

– Até que não é má ideia.

Pulei dentro da cabine.

– Pra onde vamos?

– Mire o que está aí na carroceria.

Havia uma gaiola de arame enferrujado e um galo.

– Vender na feira?

– Que barbaridade! É o Bico de Ouro! Nunca ouviu falar deste campeão?

– O que ele faz, além de paparicar as galinhas? – mofei.

– Briga. Nunca vi igual.

Sempre soube que Jiló era louco por rinha. Mas nunca procurei saber mais sobre o assunto. Depois... as brigas de galos eram proibidas.

– O que vai fazer com ele? Vender?

– Quê! Vamos ao rinhadeiro. Nesta semana, sequer dormi. O Bico de Ouro foi desafiado. Você já ouviu falar do Pluma de Águia? Pois é, o galo do Alonzo, aquele espanhol papudo, que diz que faz, mas duvido. Achegou-se em minhas orelhas e foi dizendo, empombado: “Sei que você tem um galinho metido... É verdade? O povo anda falando coisas dele.” Mirei o intruso, magoado. O Bico de Ouro não é nenhum galinho. Então eu disse: “É apenas de estimação. Não está à venda.” O Alonzo se coçou. A gente estava no Fim da Picada, aquele bar de putas descaídas. “Você topa colocar o seu galinho no rinhadeiro? Faz dias que o Pluma de Ouro não dá uma surra...” E me olhou com aquele ar soberbo, como se o meu galo fosse um garnizé. Respondi afoito: “Marque o dia e a hora. Arrume um juiz decente.”

Compadre Jiló espalmou as mãos para o alto, enquanto a direção da caminhonete ziguezagueava. E soltou uma risada aberta, mostrando as falhas entre os dentes. A barrigona dançou. A caminhonete quase pendeu de lado. Estava gordo igual capado.

– Aquele espanholzinho de merda! Hoje é o grande dia. O danado vai conhecer a força das bicadas.

– Quer dizer... que vamos a um rinhadeiro? – gaguejei. – Mas é proibido. Podemos ir presos. E sair na página policial...

– Pare! Gente graúda tem galos de briga. Ninguém vai preso. É papo de gente à toa, que vive protegendo os animais. Esse pessoalzinho só conhece galinha em supermercado e com os pés para o alto. Desde o começo do mundo tem briga de galo. Ora essa, é diversão, pura adrenalina.

Estacionou a caminhonete atrás de um armazém de beira de estrada, distante da cidade. No fundo da construção, havia um pequeno curral coberto e ali já se encontravam várias gaiolas cheias de cacarejos. Um punhado de gente – por incrível que pareça, todos da cidade e bem de vida – chegara cedo e tecia comentários sobre a raça, o sangue e o tanto de lutas ganhas e também perdidas.

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Acomodamo-nos ao redor do curral, onde a plateia se alojava e podia torcer pelo galo preferido. 

Tudo, para mim, era novo. Os olhos dilatavam. A curiosidade me roía. Havia uma fileira da bancada reservada, com grandes letras mal traçadas. Sempre apareciam os figurões com o seu pessoal – três a quatro guarda-costas corpulentos, em geral, os melhores bandidos disfarçados de anjos protetores, escolhidos a dedo por números fabulosos de encrencas resolvidas.

– Bom mesmo – relatou Compadre Jiló, esfregando as mãos e falando alto – é quando dois figurões desses são rivais. Aí a coisa preteja, ferve: um toma partido por um galo, o outro imediatamente se condói, e as apostas explodem, o dinheiro rola alto e os ânimos também. Por isso, os guarda-costas ficam com as orelhas em pé, como burros ariscos. Já aconteceram coisas...

E me contou histórias. Balas e sangue se misturavam num frenesi relâmpago. “Não duvido”, pensei, enquanto observava algumas pessoas bebendo afoitamente. “No final da tarde, como estarão?”

Nem sempre o falatório desandava. Depois dos desaforos, gritos, opiniões afrontosas, empurra-empurra, touros medindo forças, os adversários batiam em retirada e, na saída, davam-se as mãos e cobriam-se de grandes abraços e, um pouco adiante, no velho armazém, bebiam e riam juntos, cada vez mais cúmplices de alguma coisa que o povo desconhecia.

Esses armazéns de beira-estrada, cotovelo de velhas estradas, palco de despachos de macumbas e pactos com o demônio, não têm capacidade de abrigar multidões. Antigas vendas – observei – de balcões gastos e ensebados, outrora velhas olarias, pois o barro da região é de qualidade, quase todas têm, nos fundos, barracões cobertos de adobes. Nesses barracos compridos, para minha surpresa, estava a rinha, com bancadas improvisadas ao redor. Um público fanático sentava-se precavido, ávidos por aventura.

– Espera-se, hoje, por vários figurões de nossa política... Essas bancadas vão ficar lotadas.

Até aquele momento, ainda cedo, não havia nenhum sujeito importante. Só um pessoalzinho de pouca estima, tranqueira de curva de rio, cada qual sedento por sangue quente jorrando da pobres aves incautas.

– Antes de nossa peleia – contou-me Jiló, sempre atento ao burburinho do público -, há várias brigas. O Bico de Ouro não faz sala pra ninguém. De começo, os de pouca fama, um galinho Catarina, de um certo alemão desconhecido que anda proseando alto aqui na região, e o outro de Quadrínculo mesmo, mas de poucas histórias. E os demais, está vendo aquelas gaiolas no canto, desconheço a procedência. Tudo é pra aquecer o rinhadeiro, despertar o ânimo dos apostadores. Nada mais.

O galinho Catarina era dourado, posudo, a crista retalhada por filetes escuros e tinha porte de rei. As apostas não foram fortes. O Catarina tinha crédito. Já o galo de nossa cidade não inspirava confiança, tendo em vista que em outras ocasiões apanhara e até fugira desesperado, correndo em círculo.

– Merdinha de galo, não passa de um maricas! – sentenciou Jiló, mostrando-se conhecedor do assunto.

Colocado na rinha, o galo de Quadrínculo se arrepiou, ameaçou dar algumas bicadas, mexeu nervosamente as patas, depois se encolheu num canto, enquanto o galo dourado avançou feroz, sem piedade. O esporão acertou o esporão do galo fujão. O sangue espirrou quente. O público se eletrizou. Em poucos segundos tudo se acabou. Havia apenas uma massa disforme no chão. O alemão, sacudindo a vasta barriga nutrida a chope caseiro, segurava o galo dourado e o acariciava como a um filho.

– Meu garoto esperto! Você me dará muitas alegrias ainda!

Jiló fez descaso.

– Com um bostinha assim até galinha ganha- disse, entredentes, acrescentando: Quero ver topar o Bico de Ouro!

Eu estava chocado. O perdedor se transformara numa pasta, encharcando a serragem de vermelho vivo.

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