Posted by: Maria Luiza Artese , maio 20, 2014
Através de descrições fantasiosas, Marco Polo conta a Kublai Khan sobre as suas incríveis jornadas. Mas a verdadeira viagem proposta por Italo Calvino é aos confins da alma.
Falar sobre As Cidades Invisíveis é uma tarefa árdua, do tipo mais extraordinário. Doloroso, não porque não seja bom; desconcertante, não porque seja incômodo; confuso, não porque seja mal escrito. Falar sobre As Cidades Invisíveis é mesmo brincar com este conceito, capturando linhas diáfanas e tentando organizá-las num plano divisível, quando sua própria invisibilidade tem muito a dizer. O próprio Calvino é suficientemente inexato ao se referir ao próprio livro: ”
Se meu livro As cidades invisíveis continua sendo para mim aquele em que penso haver dito mais coisas, será talvez porque tenha conseguido concentrar em um único símbolo todas as minhas reflexões, experiências e conjeturas.
Longe de ser uma jornada pessoal, contudo, as cidades fantásticas relatadas por Marco Polo em suas viagens pelo império de Kublai Khan, imperador mongol que se tornou uma lenda pela relação com o explorador e por suas conquistas, contêm uma multiplicidade de facetas sobre as mais diversas essências, proporcionando a cada leitor uma interpretação diferente, sem que essa diferença se torne indesejável ou incômoda. A própria percepção se altera ao longo da narrativa, divertindo-se com a teoria de que cada cidade é uma mulher, mas perdendo-se na limitação dessa metáfora, até finalmente se chegar à compreensão de que nada tem apenas um significado nas descrições feitas por Calvino.
Assumimos o ouvido de Kublai, líder do império ao qual Marco Polo chegou sem saber uma palavra. Isso não o impede, contudo, de relatar suas viagens, utilizando-se de gestos e vocábulos soltos, até finalmente apreender o idioma local e iniciar as detalhadas narrativas. Embalados pela sua voz mágica, viajamos por Zora, a cidade imutável que, por manter-se na memória, desaparece; Raíssa, triste, que brota em pequenas felicidades imperceptíveis; Eufêmia, que altera-se completamente a cada solstício; Laudômia, que se separa em três partes diferentes, passado, presente e futuro; só para citar algumas.
Conceitos de astronomia e geografia surgem recarregados de uma mística especial. Perínzia e Ândria parecem a mesma cidade, mas com destinos diferentes, ou ainda novas perspectivas. O caráter fantasioso de todos esses lugares é questionado diversas vezes por Kublai Khan, que por si só é também uma figura de amplos espectros. Não se sabe ao certo se Polo e Kublai estão de fato conversando, de fato nos jardins suspensos, e tal dúvida é levantada pelos próprios personagens, etéreos e simbólicos.
Mas mesmo na incerteza há um porquê muito certo, e, nas jornadas infindáveis de Polo, o mais importante são as questões. Passado e futuro se confundem, definindo-se e embaralhando-se numa aleatoriedade profética. A cada porto que se chega, o essencial são as perguntas do viajante que são respondidas. No fundo, a verdadeira viagem se dá na memória, na mente, no imaginário. E a riqueza das imagens é um bem vital sem o qual se perde todo o sentido: é através delas, reais ou não, que Polo consegue chegar à verdade das coisas factuais. Através das descrições elaboradas de cidades invisíveis, o mercador consegue evocar a Veneza que teme esquecer: “As margens da memória, uma vez fixadas com palavras, cancelam-se”.
A partir daí, é fácil entender que a compreensão d’As Cidades Invisíveis é essencialmente interna. Transpor em palavras o teor das imagens dispostas no livro é cancelá-las e limitá-las. Apesar da linguagem acessível (não por isso menos poética) e do volume reduzido de páginas, a leitura não é fácil, e não deve ser feita de uma vez.
É preciso absorvê-la e apreciar a viagem, os ventos longínquos que atiram areia sobre os olhos, as vistas imprecisas das primeiras impressões, as tênues metáforas escondidas numa partícula de poeira, numa janela que se abre, num sorriso de um desconhecido. A vida, afinal, é por si só uma viagem extraordinária, com significados invisíveis tecidos por milhares de dedos diferentes, em que dois pares de olhos jamais vêem o mesmo ou atravessam uma paisagem com as mesmas lembranças.
A cada leitor, Calvino destrincha novas fronteiras, assim como Polo, ao contar suas aventuras a Kublai, admite que, ao fazer o mesmo em outros portos, correrão outras histórias. E é perfeito ao dizer: “Quem comanda a narração não é a voz: é o ouvido”.
As Cidades Invisíveis
Italo Calvino
Fonte:http://homoliteratus.com/cidades-invisiveis-de-italo-calvino-um-imperio-de-imagens/
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