JOÃPÓ GEROU REBOÃO, Reboão gerou André, André gerou Santônio e seus irmãos, Santônio gerou — de Rosário a Pedro Simão — um parindo outro; Pedro gerou Nicanor, Nicanor gerou Alcides, Alcides gerou Batista, Batista gerou Flor dos Anjos, Flor dos Anjos gerou uma porrada de filhos sem pai, entre eles Bernardo, o dente-de-ouro, que andava sempre vestido num ternão de linho branco, roubando dinheiro das putas.
Bernardo gerou Mateus, que não tinha mãe, nem sabia o paradeiro dela. Mateus gerou Ataíde, Ataíde gerou Pé-de-Prata, Pé-de-Prata gerou Bundinha Branca, Bundinha Branca gerou Reboão Segundo, que não atendia por esse nome não, mas por Mãozinha; Mãozinha comeu uma preta, filha de escravos, gerando Alecrim. Com quinze anos, Alecrim deu pro coronel, depois pro capataz, depois pros escravos, depois pros estranhos, de forma que a geração quase se perdeu. Mas daí chegou o Jeguel, filho não se sabe de quem, e gerou Macio Semente de Abóbora, um pederasta que vivia pagando pra todo mundo comer o rabo dele. Por obrigação, não por outra coisa, casou-se com Rosa--dos-Ventos que, não sendo satisfeita com Macio Semente de Abóbora, fugiu com Zorobabel, um pernambucano; Zorobabel pariu Zeca, que vivia numa merda danada, na fazenda do coronel Abdias. Coronel Abdias comia as colonas e roubava na balança. Com a chegada das máquinas, com os tratores levantando poeira sobre os campos sangrados, Zeca, com mais de cem famílias, que eram irmãs de outras famílias, foram varridos da terra. Da cidade, sem emprego, nem casa, Zeca ia trabalhar nas roças num caminhão de lona, enquanto os filhos esmolavam. De Zeca a Salmão, passaram-se três gerações de trabalhadores denominados boias-frias: uma raça que não tinha casa pra morar, nem terra pra trabalhar, nem vida pra viver.
Salmão gerou, por descuido, com muita raiva, Lula, que fundou um monte de sindicatos pra operários, foi preso onze vezes, xingou a mãe de todos os presidentes, enfim morto numa simulada revolução de coronéis, deixando porém Natanael, perseguido também pela polícia, com o corpo marcado de choques elétricos e outros objetos desconhecidos. Encurralado, fugiu com uma cigana, andando daqui pra lá com a ciganada, até que furou a barriga do chefão dos ciganos e teve que fugir, se metendo novamente, como o pai, com os grevistas de São Paulo, preso diversas vezes. Mas gerou Damião, que já nasceu leproso, com futuro marcado.
Damião andava pelas terras pregando as notícias ruins do mundo, um bastão de grevira, torto, pra se defender dos cachorros quando chegava na casa dos colonos. Vivia pra riba e pra baixo: voz esquecida, língua presa, estômago vazio. Junto com ele andava uma corja de vagabundos que se aproveitava do santo pra comer. Onde andava, os cachorros vinham lamber suas lepras em carne viva. Virou, mexeu, morreu. De Damião a Pironga passaram-se vários anos, entre fome, cadeia e poluição. Quem viveu mais foi Damião, que era leproso e não passou dos trinta anos. Pironga vivia debaixo das pontes, dos viadutos, nas calçadas, sujo da própria merda, comendo nas latas de lixo. Pironga amigou-se com Begônia, parindo Joãpó Segundo, o último, que nasceu sem os debaixos, esculhambado. Por isso, Pironga jogou-o na primeira lata de lixo. Pironga e Begônia se perderam no podre das ruas, sem identidade, completamente apodrecidos pela sorte, esquecidos nas larvas, roídos pela terra. E ninguém gerou mais ninguém.
DAVID GONÇALVES
1 comentários:
David Gonçalves é um excelente autor paranaense, nascido em Jandaia do Sul, em 1952. O texto acima é um dos que eu mais aprecio dele.
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