O ano, já não sei. Foi no ano em que foi fundado o Jornal Brasil de Fato, e o lançamento do mesmo aconteceu no Auditório Araújo Viana, lá em Porto Alegre, durante o Fórum Social Mundial, e o mesmo estava totalmente lotado, três ou quatro mil pessoas ocupando cada espacinho possível, e o palco iluminado lá na frente, com uma longa mesa repleta de celebridades que, cada uma por sua vez, levantou-se e, de pé, diante de um microfone suspenso, falou da importância daquele jornal estar nascendo e da importância de tantas coisas neste mundo que todos nós acreditávamos que poderia ser melhor. Íamos de emoção em emoção, aplaudindo cada celebridade daquelas, sem estarmos, de fato, preparados, para o que viria abalar com a maior força de todas os nossos corações – e já não lembro quem tudo ali levantou e falou, mas lá estavam Sebastião Salgado, e Eduardo Galeano, e a Madre Hebe de Bonafini, vinda diretamente da sua Plaza de Mayo com a carga dos seus filhos mortos pela ditadura argentina, e todos tinham sua história de lutas e de resistência, e todos da longa mesa falaram o que iriam falar ... até que, lá na mesa, restaram apenas duas pessoas, uma mulher e um homem.
Até hoje não sei quem era aquele homem, pois ele foi o último a falar, e quando o fez, a emoção apaixonada que tomara conta de todas aquelas milhares de pessoas um pouco antes fez com que nenhum de nós prestasse atenção a ele – e não há que se dizer que havia ali tantos milhares de mal-educados, por terem feito tal coisa com aquele homem que ficara para o final, mas já conto o que aconteceu, e penso que não haverá quem não nos absolverá.
A penúltima pessoa a falar, portanto, era uma mulher. Teria cerca de 40 anos, era clara, um pouco loira, muito bonita, com um jeito de doçura e amplidão que a gente costuma imaginar nas mães, um pouco cheinha dentro de um simples vestido florido que lhe dava um jeito de primavera, e como eu, penso que quase a totalidade daquele grande público não fazia ideia de quem ela poderia ser. No seu jeito bonito e seguro, suave e doce, ela caminhou até o microfone suspenso, e com grande simplicidade, falou para todos nós:
- A última vez em que eu vi o meu pai, eu tinha cinco anos...”
Enquanto ela tomava fôlego para continuar a sua fala, um silêncio de pedra caiu no grande auditório, e penso que, como eu, cada um de nós fazia uma rápida conferência das suas memórias, olhando incredulamente para aquela linda mulher e comparando a sua imagem com outras imagens conhecidas, fotos famosas em todo o mundo, de um homem tão lindo por fora quanto por dentro, imortalizado pelas lentes de Alberto Korda e de outros, e penso que, como aconteceu em mim, ao mesmo tempo aconteceu com todo o mundo, e houve aquele instante em que “caiu a ficha”, e antes que a mulher pudesse continuar a sua fala, o silêncio de pedra espocou nos mais vibrantes aplausos que já ouvi em minha vida, como fogos de artifício na beira do mar em noites de Ano Novo, e aquele imenso público foi tomado por tal intensidade de amor por aquela mulher que ficara ali sentada um tempão, incógnita e bonita no seu vestido simples e florido, que já nada mais se ouviu do que ela tentou falar.
Diante de nós, em carne e osso, estava Aleida Guevara, a filha do Che, e penso que muita gente fez o que eu fiz: obedecendo ao coração, sem pensar em mais nada, saí às cegas, descendo as altas arquibancadas em direção ao palco, disparando o flash da minha pobre máquina fotográfica até o fim, tentando fixar de alguma forma aquele momento para sempre.
Havia um fosso de segurança, separando o palco das enormes arquibancadas, e com centenas de outras pessoas, eu encalhei ali, e os guardas que eram encarregados de manter a ordem naquele lugar sorriam-nos com simpatia e nos entendiam, porque também eles estavam encantados e apaixonados, pois um dia houvera um homem que nos dava o direito de sermos todos irmãos, e havia tal fraternidade ali, por conta daquela mulher de vestido florido que nos trazia, muito próxima, a presença do Che, que em nenhum outro momento da minha vida eu me lembro de ter vivido coisa igual.
Foi por conta de Aleida Guevara que não ficamos sabendo quem era o último homem que falou, mas penso que não faz mal – ele deve ter entendido que há forças que são maiores que todas as outras.
Então, o evento acabou, e milhares de pessoas foram saindo dali, mas algumas centenas ficaram, e os guardas não podiam nos liberar para irmos até ela, mas, irmãos como agora éramos, entregávamos a eles nossas máquinas fotográficas para que a fotografassem mais de perto para nós – e então fez ela sinal para que nós nos aproximássemos, e os seguranças ajudaram a nos organizar em fila.
Aleida Guevara, linda, serena e doce, aconchegante como uma mãe dentro do seu vestido colorido, ficou ali naquele lugar até que o último de nós pudesse trocar uma palavra com ela, pegar seu autógrafo, pousar para uma foto ao seu lado. Ela tinha a compreensão das coisas incompreensíveis – ela nos entendia. Foi uma noite para nunca mais esquecer. Tenho a foto daquele dia pendurada na parede da sala da minha casa.
Vi-a, de novo, dois ou três anos depois, em Caracas, no Fórum Social Mundial, e o amor que ela suscitava era o mesmo. Hoje faz 40 anos que assassinaram o seu pai. Não podia deixar de contar esta história.
Blumenau, 09 de Outubro de 2007.
Urda Alice Klueger - Escritora e historiadora
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