Havia dois anos e oito meses que sumira. Dia desses, quando os pais chegaram a casa no final do dia, eletro eletrônicos da sala haviam sumido. A policia foi chamada. O apartamento térreo, em que moravam, fora furtado. Sinais de arrombamento não havia.
– O furto foi cometido por alguém com acesso à casa – dissera o policial. – Quem mais tem a chave daqui?
– Ninguém, além de nós e de Joacir – respondera o proprietário.
– Quem é Joacir?
– Nosso filho.
– E onde ele está?
– Na escola, onde mais haveria de estar? O senhor não está pensando que...
– Por enquanto, penso em tudo, minha senhora!
– Isso não tem o menor cabimento! Joacir é um rapaz tranquilo que nunca nos causou preocupação – dizia.
– Nunca tivemos nem incomodo na escola. É um aluno aplicado. Nunca reprovou! Passou no primeiro vestibular que fez pra medicina. E numa universidade federal – exaltava o pai cheio de orgulho.
– Quando seu filho chegar, quero conversar com ele. Saber dos amigos que vinham aqui.
– Nosso filho é muito reservado. Não trazia amigos.
– Nem os colegas de faculdade?
– Nem os colegas de turma. Minha esposa até insistia para que trouxesse, mas ele não gosta de dar trabalho. Diz que não lhe agrada ver a mãe tendo que arrumar a bagunça dos amigos. Mas ele tem muitas amizades, passa os finais de semana em companhia deles na praia ou acampando. A namorada parece ser uma boa moça. É bem moderninha. Usa umas roupas meio rasgadas e o cabelo despenteado e mal cortado, como esses jovens gostam de usar. Veio aqui procurar por Joacir.
– Ela disse o que queria?
– Sim. Convidamos pra entrar e ela pediu para ir ao quarto do nosso filho pegar um livro. Ia precisar pra estudar. Nem deu tempo de perguntar se estudava medicina também. Disse que estava atrasada. Haveria de voltar outro dia com tempo.
– Ela levou o livro? Vocês viram que livro era?
– Não vimos porque ela pôs na mochila. Mas disse que tinha encontrado.
– Qual o nome dessa moça?
– É um nome estranho. – Mulher, como é o nome da namorada do nosso filho?
– Tamires.
– Tamires, e o sobrenome?
– Ela não disse.
– Aqui está o meu cartão. Quando seu filho chegar, quero conversar com ele – disse o policial, estendendo a mão e se retirando.
– Aí tem coisa. Na semana que vem vamos investigar – comentou com o colega, já dentro do elevador.
2
– Gostaria de falar com o delegado Gilmar. – Eu sou Raul. O pai do Joacir. O delegado esteve em meu apartamento na sexta-feira, por causa de um furto.
– O senhor aguarde, vou avisar – disse o atendente da décima regional.
– Então, seu Raul, o que o traz aqui? Seu filho apareceu?
– O meu filho não apareceu em casa, desde sexta-feira. Ele nunca fez isso. Alguma coisa séria aconteceu com ele.
– Vai ver resolveu prolongar o final de semana. Esses jovens gostam de fazer isso!O senhor já falou com alguém, vizinhos, pessoas da faculdade?
– Sim. Os vizinhos não viram nada.
– Silveira!
– Pois não, delegado.
– Registre o desaparecimento do filho do seu Raul e se encarregue da investigação. Acompanhe o Silveira. Ele vai lhe fazer algumas perguntas. Depois, volte aqui, Silveira.
– Sim, senhor. Venha comigo, seu Raul.
– O que achou? – perguntava o delegado ao investigador.
– O pai não sabe muita coisa da vida do filho. O que acontece fora de casa, não sabe. O filho não dá preocupação. É um bom rapaz. Será sequestro?
– Sei não. Gente certinha, de bem, boa família, as cadeias têm bastante. De um simples furto, temos agora um desaparecimento. Mantenha-me informado sobre a investigação.
Durante o tempo em durou as investigações, todo tipo de informação foi recebida: Joacir tornara-se um traficante perigoso, perdera-se nas drogas e estava vivendo nas ruas – vez por outra – alguém ligava dizendo que fora visto em diferentes pontos da cidade, sempre em lugares suspeitos, até que estava em outro estado, fora visto com uma mochila nas costas, pedindo carona na estrada que dava acesso à cidade. Mas, o que de verdade sabiam? Somente que o rapaz frequentara o primeiro semestre de medicina, com excelente desempenho.
– Uma pena que tenha desistido. Tinha um futuro promissor! – dissera um dos professores.
Os colegas de turma não ajudaram nas investigações.
– Ele não gostava de muita conversa. Eu tentei fazer amizade com ele, mas era muito arredio. Não permitia aproximação. Sempre muito sério. É um gato! Fiquei atraída por ele. Até convidei pra sair com a turma, mas disse que não gostava de conversa fiada. Depois desse fora, desisti – contava uma garota da turma de Joacir.
3
– Vocês não estranhavam o fato do filho de vocês não trazer amigos, não apresentar a namorada, não falar da faculdade?
– Cada um tem um jeito de ser. Nosso filho sempre foi quieto, desde pequeno. Até nas festas de aniversário, não brincava com as outras crianças. A última festa, fizemos quando tinha nove anos. Ele disse que não gostava, preferia que déssemos dinheiro pra ele se divertir do jeito que queria.
– E como ele se divertia? – perguntava o investigador, tentando traçar o perfil do rapaz.
– Ele guardava o dinheiro que a gente dava. Uma vez, de tanto que eu insisti, aceitou ir ao cinema comigo. Depois, consegui que fosse a uma loja e escolhesse um presente. Escolheu um jogo de vídeo game e um kit de desenho, a contragosto. Disse que o dinheiro podia ser melhor utilizado. Preferia guardá-lo. Eu disse que um prazer vale mais que tostão guardado. Não disse nada, mas só porque não gostava de discussão.
O mistério aumentava, alguns dos objetos furtados foram recuperados na casa de um elemento que fizera alguns consertos no apartamento do casal e, que preso, confessara ter feito uma cópia da chave. Computador, aparelho de som, uma guitarra, que havia no quarto do filho, descobriram que foram vendidas pelo próprio Joacir. O dinheiro economizado pelo rapaz fora sacado por ele. As câmaras de segurança do banco mostraram.
– Nas companhias aéreas não há registro de compra de passagens. Na rodoviária também não. A senhora tem ideia de como ele gastaria o dinheiro que economizou nesses anos todos? É uma quantia bem razoável. E ele encerrou a conta.
Não imaginavam como gastaria o dinheiro: não era vaidoso, muito pelo contrário, não fosse os cuidados da mãe, teria uma muda de roupa e um par de tênis , dizia não precisar mais do que isso.
4
Depois de dois anos e oito meses de registrada a queixa de desaparecimento, ali estavam os pais, diante da sepultura onde o filho nem enterrado estava. Só uma lápide para dizer da saudade que sentiam, com a epígrafe:
“Quando a saudade apertar, busquem-me no vento, no ar, na água e na terra. Ali me encontrarão.”
O telefone tocara no meio da noite, prenúncio de notícia ruim. O casal entreolhou-se em uma pergunta muda: quem vai atender? Não se moveram e o som parou. Continuaram sentados na cama, silenciosos. Mas coisa ruim é insistente. Raul tomou coragem, foi seguido pela esposa cuja expressão de pavor não era diferente da do marido.
– Atende, Raul! E se for notícia de nosso filho? Quem sabe o delegado descobriu onde ele está?
– Esse é meu medo. Quem liga de madrugada pra dizer coisa boa? Alô!
– Seu Raul?
– Sim. Quem está falando?
– É a Tamires. Eu estive em sua casa há mais de dois anos. Sou amiga de Joacir – a voz era tranquila.
– Por favor, você sabe do nosso filho?
– Sim. Vou passar o endereço. O senhor pode anotar?
– Eu não entendo. Como nosso filho foi parar nesse lugar?
– Só vamos saber quando chegarmos lá. Arrume as malas, mulher. Vou tratar de comprar as passagens pro primeiro voo que tiver. A moça disse que devemos estar lá o mais rápido possível.
– O que será que aconteceu com nosso filho, Raul?
5
Contemplavam a fogueira crepitante cujas labaredas pareciam lamber a noite, uma língua alaranjada, tremulante, que subia e descia. Um cheiro nauseabundo invadia as narinas. Ouvia-se um frigir estranho misturado aos estalos da madeira. Figuras esquisitas proferiam preces e entoavam cânticos, ora lamurientos, que mal se ouviam, ora celebrativos, vibrantes. Andavam de mãos dadas em torno da fogueira. Giravam, giravam, giravam... E quando a roda parava, todos retiravam de um saquinho, que traziam pendurado junto ao corpo, um maço de folhas e jogavam no fogo. Tudo parecia irreal. Tamires participava do ritual, rosto sereno, vez por outra, sorria. O rosto de Raul e da esposa ardia por causa do calor do fogo, entretanto não conseguiam se afastar, pareciam pássaros presos no olhar hipnotizador de uma serpente. Tudo parecia irreal. Quando só restavam cinzas, todos se retiraram.
– Venham. Vou mostrar-lhes onde passarão a noite. Amanhã, assim que o Sol surgir, a cerimônia continuará – dizia Tamires, despertando-os do torpor que os acometera.
Seguiram a moça silenciosamente. Ainda não haviam entendido tudo o que acontecera desde que ali chegaram.
6
– Onde está o meu filho? Diga! Por que ele não veio nos esperar? O que aconteceu?
Eram muitas as perguntas e Tamires não as respondia, aumentando o desespero dos pais que cada vez mais tinha a certeza de que o filho partira.
Quando chegaram ao lugar onde Joacir morava, o casal deparou-se com um lugar que só haviam visto em cenas de filmes. As construções de palha rodeavam uma espécie de arena a céu aberto. Que lugar era aquele?
– Eu e Joacir escolhemos viver aqui. Encontramos o que precisamos, paz. Não há violência. Somos todos irmãos. Dividimos tudo o que produzimos e o que sobra, é distribuído a outras comunidades. Joacir foi acometido de uma febre que o levou.
– Vamos. A cerimônia já vai começar. Este era o desejo dele.
Epílogo
Assim que o Sol surgiu, as cinzas foram recolhidas em uma gamela de madeira. Uma procissão encaminhou-se para o ponto mais altos da aldeia e o que restou do rapaz, foi espalhado ao vento. Fez-se a vontade dele.
Odenilde Nogueira Martins