Mais colocação pronominal
É o estudo da colocação dos pronomes oblíquos átonos (me, te, se, o, a, lhe, nos, vos, os, as, lhes) em relação ao verbo.
Os pronomes átonos podem ocupar 3 posições: antes do verbo (próclise), no meio do verbo (mesóclise) e depois do verbo (ênclise).
Esses pronomes se unem aos verbos porque são “fracos” na pronúncia.
PRÓCLISE
Usamos a próclise nos seguintes casos:
(1) Com palavras ou expressões negativas: não, nunca, jamais, nada, ninguém, nem, de modo algum.
- Nada me perturba.
- Ninguém se mexeu.
- De modo algum me afastarei daqui.
- Ela nem se importou com meus problemas.
(2) Com conjunções subordinativas: quando, se, porque, que, conforme, embora, logo, que.
- Quando se trata de comida, ele é um “expert”.
- É necessário que a deixe na escola.
- Fazia a lista de convidados, conforme me lembrava dos amigos sinceros.
(3) Advérbios
- Aqui se tem paz.
- Sempre me dediquei aos estudos.
- Talvez o veja na escola.
OBS: Se houver vírgula depois do advérbio, este (o advérbio) deixa de atrair o pronome.
- Aqui, trabalha-se.
(4) Pronomes relativos, demonstrativos e indefinidos.
- Alguém me ligou? (indefinido)
- A pessoa que me ligou era minha amiga. (relativo)
- Isso me traz muita felicidade. (demonstrativo)
(5) Em frases interrogativas.
- Quanto me cobrará pela tradução?
(6) Em frases exclamativas ou optativas (que exprimem desejo).
- Deus o abençoe!
- Macacos me mordam!
- Deus te abençoe, meu filho!
(7) Com verbo no gerúndio antecedido de preposição EM.
- Em se plantando tudo dá.
- Em se tratando de beleza, ele é campeão.
(8) Com formas verbais proparoxítonas
- Nós o censurávamos.
MESÓCLISE
Usada quando o verbo estiver no futuro do presente (vai acontecer – amarei, amarás, ...) ou no futuro do pretérito (ia acontecer mas não aconteceu – amaria, amarias, ...)
- Convidar-me-ão para a festa.
- Convidar-me-iam para a festa.
Se houver uma palavra atrativa, a próclise será obrigatória.
- Não (palavra atrativa) me convidarão para a festa.
ÊNCLISE
Ênclise de verbo no futuro e particípio está sempre errada.
- Tornarei-me....... (errada)
- Tinha entregado-nos..........(errada)
Ênclise de verbo no infinitivo está sempre certa.
- Entregar-lhe (correta)
- Não posso recebê-lo. (correta)
Outros casos:
- Com o verbo no início da frase: Entregaram-me as camisas.
- Com o verbo no imperativo afirmativo: Alunos, comportem-se.
- Com o verbo no gerúndio: Saiu deixando-nos por instantes.
- Com o verbo no infinitivo impessoal: Convém contar-lhe tudo.
OBS: se o gerúndio vier precedido de preposição ou de palavra atrativa, ocorrerá a próclise:
- Em se tratando de cinema, prefiro o suspense.
- Saiu do escritório, não nos revelando os motivos.
COLOCAÇÃO PRONOMINAL NAS LOCUÇÕES VERBAIS
Locuções verbais são formadas por um verbo auxiliar + infinitivo, gerúndio ou particípio.
AUX + PARTICÍPIO: o pronome deve ficar depois do verbo auxiliar. Se houver palavra atrativa, o pronome deverá ficar antes do verbo auxiliar.
- Havia-lhe contado a verdade.
- Não (palavra atrativa) lhe havia contado a verdade.
AUX + GERÚNDIO OU INFINITIVO: se não houver palavra atrativa, o pronome oblíquo virá depois do verbo auxiliar ou do verbo principal.
Infinitivo
- Quero-lhe dizer o que aconteceu.
- Quero dizer-lhe o que aconteceu.
Gerúndio
- Ia-lhe dizendo o que aconteceu.
- Ia dizendo-lhe o que aconteceu.
Se houver palavra atrativa, o pronome oblíquo virá antes do verbo auxiliar ou depois do verbo principal.
Infinitivo
- Não lhe quero dizer o que aconteceu.
- Não quero dizer-lhe o que aconteceu.
Gerúndio
- Não lhe ia dizendo a verdade.
- Não ia dizendo-lhe a verdade.
Bico de ouro - conto - David Gonçalves - trecho 4
8
Com nome e espírito de Gervásio, ostentando a peruca preta, padre Zeca não cabia de contente: o Espora Dourada chegara a tempo de topar um desafio. O sujeito provocativo dizia coisas de arrepiar os galeiros ali reunidos.
– Não está nesta rinha galo para abater o Pitoco. Aposto duas por uma. Até hoje nunca perdeu briga alguma. Quem topa?
Ludovico mirou padre Zeca, depois o tal galo avermelhado, com listas douradas no rabo, mestiço a índio, baforou o cigarro barato entre os dentes corroídos, cusparou por entre as tábuas da arquibancada improvisada.
– É muita areia pro nosso caminhão? – perguntou. Esperamos mais? Ainda não sondamos a temperatura do rinhadeiro. O que acha? Será verdade o que diz ou só está provocando?
Então, padre Zeca ergueu-se, dizendo:
– Eu topo. O meu Espora Dourada não leva desaforo pra casa. E meus ouvidos não são penico.
A pequena multidão cala-se para observar quem falava. Padre Zeca se apresentou:
– Estou de passagem. Sou o Gervásio. Aquele ali é o Espora Dourada. O que acham?
O desafiante também se apresentou. Morava além do Ivaí. Viera às pressas para usufruir as contendas. Não voltaria de mãos vazias, sem o entrevero. Os galos, quando folgam demais, tornam-se inúteis.
– O Pitoco, onde moro, é famoso. Nunca perdeu. E não é hoje que ele vai virar galinha. Por lá, ninguém o aceita pra uma boa briga...
– Veremos – disse padre Zeca.
O juiz pediu que colocassem os galos na arena. Repetiu as regras. Ordenou que soltassem as aves. Mas tudo foi muito rápido. O galo índio levou um esporaço já de começo e se amoitou. O Espora Dourada bateu como quis. O estranho jogou a toalha, pagou o que devia e saiu chateado.
– Eu não disse, Ludovico! Com três avanços cortou a garganta do metido. Não deu nem pro cheiro, rapaz!
– Uma barbada, padre.
– Caramba, Ludovico. Já te avisei. Me chame de Gervásio. Quer que esta multidão me linche?
– Perdão, padre, digo Gervásio. A gente não esquece o hábito. Fico confuso...
– Não se faça de bobo. Eu sou, hoje, um cidadão do povo.
– Perdão, seu Gervásio. O costume...
Padre Zeca virou-se para a direita.
– Quem é o figuraço lá? Aquele que balança a pança?
– É o Jiló.
– Por que se agita tanto? Até parece que está com sarna. A pança dele é uma gelatina.
– É o dono do Bico de Ouro, o desafiado. Aquele outro lá é o espanhol, o Alonzo. Um sujeito desprezível. Tem o rei na barriga, só conta vantagens. É igual pinheiro: ao redor, ninguém se cria.
– Ainda vou desafiá-lo. Este galinho aqui não me faz passar vergonha. O que acha de a gente topar outra briga?
– Vou falar com o juiz. Quem sabe... ainda é tempo. Mas duvido. Chegamos tarde.
– Não custa tentar. Já ganhamos algum dinheiro. Vá ao armazém e compre um litro de uísque. Estou com a garganta seca.
– Uísque?
– O que foi? Estou cansado daquele vinho de sacristia. Quero algo melhor. Vá logo!
Ludovico pegou o dinheiro que o padre recebera como oferta na missa daquele domingo e saiu, desviando os espectadores. Padre Zeca sentou-se na arquibancada improvisada, observando o começo de um novo confronto. Alguém se aproximou e, em voz baixa, se apresentou.
– Com licença. Sou o Evaristo. Que belo galo!
Padre Zeca mirou de soslaio. Conhecia-o? Não, nunca o tinha visto.
– Gervásio, ao seu dispor. Sente-se. Já mandei buscar a bebida.
Doutor Evaristo sentou-se, espremendo outras pessoas. Em seguida, Ludovico voltou com o litro de uísque e dois copos de plástico.
– É a primeira vez... Nada sei sobre esse negócio. Pelo que vejo, muitos gostam.
– Há pessoas que não conseguem fazer outra coisa senão criar galos de briga. É uma paixão. Está vendo este galo? Pois é tratado como filho. A melhor ração, o melhor veterinário, não fica exposto ao vento frio, muito menos a chuva. Cuido dele com prazer. Viu a sova que ele deu no galo índio agora mesmo?
– Cheguei agora. Não sabia o endereço. Vim a rumo. Então, já lutou? E ganhou?
– Nem deu pro cheiro. Ainda tem mais: se ele não desse no couro, eu tenho lá no jipe mais dois de reserva. Mas nem foi preciso. Está vendo este uísque? Ele quem está pagando! – gabou-se, esquecendo de que o dinheiro dado a Ludovico era da igreja. – Até merece um brinde. Viva! Este galinho me dará muitas alegrias!
Ambos ergueram um brinde ao galo.
Depois, doutor Evaristo despediu-se. Um outro compromisso o esperava. Quem era aquele figurão que esnobava arrogância diante do povaréu?
9
O bater de asas era brusco e desafiante, bem mais forte do que ao raiar do dia. Ao contrário, do amanhecer, quando o bater de asas é para saudar e desafiar o novo dia, naquele momento era para desafiar e anunciar a morte.
Curiosos e olheiros, que nunca se arriscavam em apostas, frequentavam as arquibancadas nas brigas preliminares. Na contenda principal, entretanto, o público mudara. Os violeiros ainda estavam presentes e com certeza ficariam até o último esguicho de sangue. O figurão e suas duas mulheres invejáveis eram o centro das atenções. Até um ignorante, que nunca presenciara coisa semelhante e nada entendia dessas artimanhas, pressentia que o público naquele momento estava ávido por sangue e dinheiro. A rinha mudara: as arquibancadas estavam ocupadas por gente de categoria. Os pés-rapados espiavam de longe, fora do barracão, exalando bafo de cachaça.
Novamente, fiquei impressionado com o bater de asas brusco e desafiante dos galos, que sempre anunciavam nova aurora, com promessas de felicidade e propícia estação. Mas, ali, o anúncio da barbárie, de um massacre, me deixava com os pelos arrepiados.
Compadre Jiló estava excitado: segurava o galo de estimação e ao mesmo tempo me cutucava:
– É sucesso! Só gente graúda. Meu galo, até que enfim, é vitrine. Ah, Bico de Ouro, é a hora de mostrar o que sabe. Não se avexe. Que público! Está entupido.
Eu olhava atônito. De que diabos ele falava? Por que tanta empolgação? Em minha cabeça, entre tanta gente espremida, só havia Geovana, a morena de cabeleira crespa, e muito horror. O resto eram figurantes, espectros tortos.
– Espie: aquele baixote de bigode espesso é o doutor Farias, especialista em doenças renais. É galeiro famoso. Possui mais de trinta galos. Tem mais zelo com os galos do que com seus pacientes. Aquele outro, veja só, é professor benemérito e diretor de escola na cidade vizinha. Você está vendo o gorducho? É forrado de grana: faz agiotagem. A rinha mudou de cor. É sucesso!
E acariciava o galo, dizendo:
– Por Deus, não faça feio. Nada de vexame. Você, pra mim, é tudo. É o céu, a terra, a vida. Não esqueça de minhas lições. Espere o adversário mostrar seus feitos. Depois, como o raio, você dispara a espora sem dó. Bem na altura do pescoço. Não se afobe. Esse povaréu vai à loucura, gritando urras. Não se apresse, mostre desinteresse, rodeie pra cá, pra lá, espere o momento certo...
O galo ouvia quieto. Olhos abertos, inclinava levemente o bico e balançava a crista bonita. A rinha estava repleta. Animação e entusiasmo brilhavam nas pupilas cada vez mais dilatadas.
No outro lado, no melhor lugar da arquibancada rústica, a morena de meus sonhos. Sorria feliz. O nobre deputado sussurrava-lhe algumas palavras indecorosas, dando-lhe beijinhos mordiscados em seu rosto. O sangue me subiu às têmporas.
– Ora, que grandíssimo filho de uma mãe! Por que não escova urubu até ficar branco? – ruminei, despeitado.
Brotava, no fundo da alma, o ciúme doentio, visguento e inútil. O coração bateu acelerado. Parecia locomotiva. Uma mulher tão bonita sendo vítima de um pilantra endinheirado.
Finalmente, mediante pessoas inquietas, o espanhol soltou um galo retinto, negro, pescoço pelado e muito vermelho, que começou a passear pela arena, exibindo seu porte, olhando em todas as direções, à procura de seu oponente.
10
– Os galos, os galos!
O juiz, sujeito alto feito pau de virar tripas, o rosto tomado por manchas de espinhas, vestido de preto, se colocou na cabeceira do rinhadeiro e pediu que fossem trazido os galos. Jiló moveu-se até a caminhonete, pesadamente, carregando o Bico de Ouro debaixo do braço, retornando em seguida, sempre conversando sorrateiramente com o galo.
O espanhol, sentado na primeira fila, ria aberto, comentando as peripécias de seu galo. Mais de vinte confrontos, mais de vinte vitórias. Não podia ver galo metido pela frente que soltava as esporas fatais em linha reta, como raio. Ria e atiçava o público.
– Aceito qualquer aposta. Graúda ou miúda, tanto faz! Ainda não nasceu galo algum! Quem quiser apostar, cruze o dinheiro aqui – espalmava as mãos grandes. – Mas advirto: é dar grana de mão beijada. É como tirar dinheiro de cego!
Só então observei que o galo tinha o pescoço vermelho e pelado, um olhar de mau-caráter, e o bico se parecia com uma foice, as esporas afiadas como espada.
– Esse galo só come alpiste, milho importado e osso de tutano ralado!
Logo alguém se enfezou.
– Bazófia não ganha batalha.
O espanhol engoliu seco, engrossou as veias do pescoço e contra-atacou enfurecido:
– Mais de vinte galos famosos comeram areia e serragem por causa de suas esporas. Conheço o bárbaro desde o ovo. Não há nenhum outro que chegue perto. Bote o inimigo na frente que ele sabe o que fazer!
Compadre Jiló endureceu a pança.
– Elogio em boca própria é vitupério.
Em seguida, incomodado, me cochichou:
– Você vai presenciar um massacre. O Bico de Ouro sabe das coisas! Esse borra-bosta entrou numa fria.
O juiz magricelo pediu os galos. Pesou-os numa balança enferrujada. Observou minunciosamente os bicos, as esporas, peitos e asas. Depois, devolveu-os aos donos, distribuindo as puas.
Havia um mundaréu de pessoas chegando. Cada qual procurava abancar-se onde havia espaço, mas o ângulo de visão ideal já se esgotara. Jiló, que exibia um tique nervoso feio, repuxando a orelha direita, me chamou de lado.
– Venha cá!
Fomos atrás da caminhonete.
– Toma! É para as apostas. Não enjeite nenhuma. Pegue todas.
E me passou um punhado de notas novíssimas. Me assustei. Poucas vezes havia segurado tanto dinheiro.
– Mas... Eu não sei apostar. Nunca estive numa rinha. Sequer sei como funciona!
– Não se preocupe. Aquele espanhol vai ficar sem as calças, quem sabe sem as ceroulas, se tiver! Comigo é assim.
E voltamos ao rinhadeiro.
Havia discussão, numa espécie de alarido, em torno da peleia. O juiz trombeteou, a voz grossa:
– O depósito! Quinhentos reais por galo.
– Mexa-se – me cutucou compadre Jiló, excitado, o tique nervoso na orelha. – Dê o dinheiro. Faz parte do acordo. Dinheiro cruzado na frente do juiz. É garantia. Se deixar pro final, o cabra negaceia igual cavalo mordido por cobra diante de minhoca.
Meti a mão na algibeira e saquei cinco notas de cem, ainda novinhas, e joguei nas mãos do pau de virar tripas. O espanhol resmungou: “Bueno, mui Bueno, Bueno... hummm”, e fez o mesmo, mas de forma soberba como se aquelas notas significassem muito pouco. Um ódio começou a brotar lá no fundo. Não era bem ódio. Apenas uma pontinha de raiva. A primeira vez que via o fulano e já me enojava. Mirava as pessoas por cima e quando falava sequer cruzava os olhos. Não podia ser boa gente. Vaidade e orgulho dominavam aquela criatura infeliz. Crescia dentro de mim a raiva. Engoli o cuspe a seco. E despejei vingança brutal em cima de seu galo. O filho de uma égua, o filho de uma mãe, o filho de Belzebu. O danado haveria de comer a serragem da arena, ensanguentado.
– Saibam os donos dos respectivos galos a regra básica: a peleia é, conforme o justo e acertado, até a morte, ou se um dos donos pedir clemência em voz alta e jogar a toalha no chão.
– Mas... que toalha? – pensei. – Isso não é ringue.
Jiló me explicou:
– No caso de massacre evidente, quando não há o que fazer, o perdedor implora pelo fim, dando a batalha por perdida.
Eu não estava acostumado com tanto movimento e algazarra. Quedei-me analisando o redondel vazio cercado de pano vermelho, reforçado por uma cerca de tela forte, de modo que os galos não fugissem e também não voassem. A discussão fervia. Probabilidades, ofensas e chacotas. Uma rinha difícil e parelha. Qualquer palpite poderia cair em vexame. Galos de peso igual, talhe e porte semelhantes, cuja única diferença estava no pescoço pelado de Pluma de Águia. Pela conversa quente, cada qual já pisara na arena por muitas vezes. E nenhum havia sido derrotado. O páreo seria duro. Alguns diziam:
– O Pluma de Águia é bom na espora. O golpe é fatal. Cutuca com o bico e golpeia rápido, sem chances para o inimigo, como uma rajada brilhante de metralhadora.
Outros defendiam Bico de Ouro.
– Não há combatente igual. Eu já vi no serviço. Olha só pra ele: parece tranquilo, não se move, como se falasse: “Na hora, eu resolvo”. Mas seus olhos são ágeis, de uma cor indefinida, um poço profundo. Não se afoba, fica aguardando o momento. Primeiro, dá um cansaço no adversário. Anda pra cá, anda pra lá, faz de conta que tem medo, depois zás! A bicada certa. A espora voa.
Jiló inchou de contente. A barriga balofa dançou sob as calças sustentadas por gastos suspensórios.
– Posicionem os galos! – ordenou o juiz.
As aves foram colocadas pelos donos em posição de combate, bem no meio do círculo. As expectativas ficaram tensas. O suor desceu no rosto gordo e crispado do compadre. Aquela orelha que se mexia incontinente me incomodava.
Então, soou a campainha.
Pluma de águia retesou as pernas, firmando-se no solo misturado com serragem nova, asas abertas, feito um chapelão de chuva, o pescoço pelado encolhido, bem vermelho, as pupilas negras firmes. Mas nada aconteceu nos primeiros segundos. Bico de Ouro, com pouco alarde, nenhuma importância deu à presença do desafiante. Aproximou-se vagarosamente, passos miúdos, como se estivesse passeando com as galinhas, cabeça alta, o topete da crista ondulando.
O silêncio se abateu sobre a rinha. Ouvia-se a respiração de cada pessoa. Alguém quebrou a monotonia nervosa.
– Trinta pratas no pescoço pelado!
O espanhol rebateu, o brio ferido:
– Pescoço pelado é a mãe! O galo tem nome. Não foi criado em seu galinheiro sujo. É de origem respeitada. É Pluma de Águia!
– Que se dane! – revidou o desconhecido. –Pra mim, é pescoço pelado! Mais ainda: respeite minha mãe!
O espanhol ia responder, mas as atenções foram para o centro do rinhadeiro. Num arranque, Pluma de Águia encurtou a distância, e os bicos se retiniram num jogo rápido, como se afiassem as ferramentas para a luta, num prelúdio. Tanto a cabeça de um quanto a de outro tremulavam, um vaivém para baixo e para o alto. E aconteceu o primeiro ataque de Pluma de Águia, as veias do pescoço inchadas, as asas abertas como chapéu. Mas Bico de Ouro recuou, desviando-se da bicada e do puaço, que passou sobre sua cabeça.
Bico de Ouro - conto - David Gonçalves - trecho 3
5
Entre uma briga que se findava e a seguinte, uma folga para o pessoal ir ao armazém e se abastecer de cerveja e cachaça. Ânimos exaltados, o álcool irrigava as emoções. Compadre Jiló sacou uma garrafinha de aguardente que trazia no bolso do colete e, após beber e estalar a língua, me ofereceu uma talagada. “É das boas!” – aprovei. Os violeiros, já posicionados numa espécie de palco improvisado, repicaram as violas e soltaram as vozes. Faltava entusiasmo na cantoria. “Esses caipiras de bosta!”, pensei, “só conhecem frango em supermercado, e congelado.” Era uma toada triste que relatava a história de uma cabocla chamada Teresa, que abandonara o amado por outro. O infeliz jurou vingança, prometeu matá-la.
Há tempo fiz um ranchinho pra minha cabocla morá,
Pois era ali nosso ninho, bem longe deste lugá,
No arto lá da montanha, perto da luz do lua,
Vivi um ano feliz sem nunca isto esperá.
E muito tempo passou, pensando ser tão feliz,
Mas a Teresa, doutor, felicidade não quis.
O meu sonho neste oiar, paguei caro meu amor,
Pra mor de outro caboclo, meu rancho ela abandonou.
Não é que os danados cantavam bem! Uma tristeza me invadiu. Raio de música! Entristecido, botei os olhos gulosos em cima da morena. Aquele figurão que fosse às favas. Para minha surpresa, ela me olhava de soslaio, atenta, muito arisca. Por alguns segundos, ficamos parados, olhos nos olhos, apesar da distância. Depois, jogando a cabeleira crespa sobre o rosto, sorriu e desviou os belos olhos de jabuticaba.
Senti meu sangue ferver, jurei a Teresa matar.
O meu alazão arriei e ela fui procurar.
Agora já me vinguei, é esse o fim dum amor,
Essa cabocla eu matei, é a minha história, doutor.
Estava assim nesses enleios quando compadre Jiló me cutucou.
– Fique atento. É nossa hora e vez. Esse espanhol papudo terá o merecido.
– Quem é aquele figurão?
– Mais um devorador da inocência pública. O deputado federal Graciliano Torres, dono de uma fortuna rápida. Um cidadão que sabe se aproveitar das vantagens. Fez fortuna na política!
– Anhn... e aquelas mulheres?
– Não mexa com vacas sagradas.
– Por quê?
– Ora, não seja tolo. Não é areia pro seu caminhão.
– Esse graúdo vive com as duas?
– O homem é poderoso. Tem café no bule. Nesta terra, quem pode, faz e desfaz. E o resto se sacode.
Calei-me. Onde estava metendo meu nariz? A bexiga pedia por um banheiro. Saí rápido. O mijatório era uma espelunca. O cheiro azedo se espalhava e impregnava as narinas. Queria lavar as mãos, mas não havia água, a torneira fora destroçada por vândalos. Limpei as mãos nas calças jeans e retornei aliviado. No pátio, estava a morena observando as pastagens ao longe, um olhar perdido, possivelmente triste. Criei coragem.
– Vejo que admira a natureza...
Ela se voltou. E nada disse. Apenas fixou os grandes olhos em minha direção. Depois, confessou:
– Nenhum prazer sinto num lugar como este. É uma barbárie. Algo medieval.
– Por que veio?
– Há certas coisas... Bem, o que importa!
Novamente seus grandes olhos pousaram em mim. O chão fugiu. Uma atração fatal.
– Nem sei porque estou aqui também – confessei. – O compadre Jiló, aquele lá, o pançudo, me trouxe. Estou surpreso comigo mesmo...
– É tão cruel, ignóbil. Estou apavorada. Que gente cruel. Pensei que as brigas de galos fossem proibidas.
– Algumas leis ficam no papel... O espetáculo da crueldade motiva as pessoas...
– Um espetáculo de horror. Aves indefesas sendo atiçadas por instintos selvagens. Há nesta gente um obcecado prazer por sangue.
Ficamos parados, imersos nos pensamentos. O sol do meio-dia brilhava intenso e aquecia a pele.
– Preciso ir... se ele me vê conversando com estranhos vira uma fera... Até logo.
Girou leve sobre os pés. Segurei-a pelo braço.
– O teu nome. Pode me dizer?
– Que importa... Entre nós há uma lacuna do tamanho do oceano. Esqueça esse pequeno encontro.
– Eu me importo. Como se chama?
– Geovana. Preciso ir – e partiu, talvez um pouco perturbada.
Por alguns segundos, permaneci respirando o doce perfume que ficara. Depois, fui arrastado ao rinhadeiro. Jiló trocava felpas com o espanhol. Envolvido, perdi de vista a fada que povoara por minutos os meus sonhos.
6
O rinhadeiro estava concorrido. Talvez pela abundância das colheitas ou pelo bom preço do gado. Sem dúvida, festa bem animada. Compadre Jiló, como outros criadores, preparara-se há meses. A profissão de galeiro exige até as vísceras. Mais ainda: exige paixão. Está no sangue. Sente-se o prazer correr pelas veias.
O entusiasmo reinava, planava. Os galeiros pareciam meninos prestes a ganhar doce premiado. Tinham gasto reservas próprias para dar condições de luta às aves. Não era ofício barato. Um galo de raça valia um pote de ouro. O espanhol ficara rico às custas de rinhadeiros e esperava, neste dia, acumular boa soma, por isso apostava alto, tanta confiança colocava em seu galo predileto.
As brigas começavam mornas. Depois, ganhavam vulto. Os mais fracos e de pouca fama iam primeiro e eram arrasados sem piedade. No meio do rinhadeiro ficava como lembrança uma massa disforme de sangue. Aos poucos, do meio para o final, os mais fortes e famosos se enfrentavam. As apostas pegavam fogo. Os abonados queimavam dinheiro.
Muitos competidores vinham de fora, de regiões distantes, além do vale do Ivaí, todos crentes que seus galos fariam história. Carregavam as aves cuidadosamente, com muito carinho. Sentiam-se eletrizados quando o galo vencia, gritavam, abençoavam e, quase sempre, gastavam o prêmio pagando rodadas de bebidas. Quando o galo perdia, havia frustração, desgosto, resignação. As piadas eram ferinas e grosseiras.
Embora as rinhas fossem improvisadas, feitas em surdina – as leis eram claras e duras: quem promovia tais festas era punido com alguns anos de cadeia –, o volume de dinheiro era espantoso. Gente miúda não tinha vez. Caso de sorte, quando convidada por um galeiro, podia assistir, porém, de boca fechada. O lugar do rinhadeiro nunca era o mesmo. Ninguém desejava levantar suspeita.Acontecia, por vez, num pátio de olaria, ou no fundo de armazém beira-estrada, ou numa fazenda pouco conhecida. Nunca, porém, na cidade, onde vizinhos maldosos viessem a denunciar. Surdina, boca fechada, nenhuma divulgação. Mas as notías corriam como um raio entre os galeiros. Uma parte da polícia local fazia vistas grossas, recebendo pequenas gratificações.
Mas, nesta ocasião, chegara à cidade um jovem doutor recém-formado para ocupar a louvada função de delegado. O anterior se aposentara gordo e bêbado. E o vulgo costuma dizer: vassoura nova varre bem enquanto a velha deixa sujeira por todos os cantos. Doutor Evaristo pretendia exercer a função com brilho e dignidade. Não se contentava em prender pequenos ladrões e bêbados. Queria algo maior. Então, ouviu boatos sobre os rinhadeiros. Mas tudo era muito camuflado, invisível, impreciso. Muito ambicioso, desejava crescer rápido. Não pretendia apodrecer em Quadrínculo. Procurava, assim, realizar feitos grandiosos para despertar os meios de comunicação. Infelizmente, na cidade, para seu desespero, só ocorriam roubos de galinhas, de gado, brigas no meretrício, rixas entre adolescentes mimados...
– Nada mais acontece nesta cidade? Só merrecas? – perguntava aos seus dois ajudantes, ambos com barrigas prósperas e com o péssimo hábito de palitar os dentes.
– O que o doutor deseja mais? Está bom assim. Se quer barra pesada, vá pra cidade grande. Somos da paz. O pessoal dorme com as janelas abertas. Os grandes centros nos invejam.
Ao que o doutor contornava, às vezes, caindo em grotesca contradição:
– Bem, eu não gosto de violência. Também adoro este sossego. A paz me deixa repleto de ideias. Mas... é bom que saibam: morno demais não faz bem. É capaz de algum político achar que somos imprestáveis e tentar fechar nossa delegacia. Todo mundo na repartição só fala em corte de verbas. Entenderam? Se não despedirem a gente, com certeza nos mandarão para os confins de Judas. Entenderam?
Os policiais olharam espantados. Para eles, acostumados com o tédio, a violência dos grandes centros não passava de ficção. O doutor estava deveras irritado. Um deles pensou: “O chefinho está precisando de uma fêmea. Vou falar com a Eleonora...”
– Até o jogo de bicho por aqui é deplorável – reclamou doutor Evaristo. – É a decadência.
Imaginava-se esquecido naquela cidade. O seu fim seria jogar dominó com os aposentados em bares de putas empobrecidas! “Estudei anos a fio para entrar numa cova de duas aberturas: se abro uma tampa, o futuro é negro; se abro a outra, é cinza.”
Numa quinta-feira chuvosa, desesperado, saiu para um breve passeio de carro. Parava nos bares e bebia cerveja. Enquanto a chuva fina cobria a noite, criando uma cortina de neblina nas lâmpadas dos postes e o asfalto ganhava cor vermelha por causa das enxurradas, ele pedia mais e mais cerveja. O que estava fazendo naquela cidade medíocre? Jogando a vida fora. Nascera na capital, gostava do frenesi noturno, bebendo com amigos e mulheres bonitas. Entretanto, estava enterrado naquela bosta de cidade.
Ouviu, então, perto da meia-noite, a conversa entre dois trabalhadores. O ruivo dizia:
– Você não sabe? Pois é, o negócio é pra valer. Fala-se muito neste rinhadeiro. Vem gente de longe, até de outro Estado. Grana alta, rapaz! Ninguém aposta merreca. É pra gente graúda. Carteira recheada manda ver. Pobre fica de fora olhando, lambendo os beiços, doido por uma aposta de cinco reais.
O sujeito alto e magro falava lentamente, como se estivesse com a boca cheia de milho.
– Ora, veja só... Estou mesmo por fora. Quem diria? Que coisa, hein! Eu aprecio muito.
– Conhece o Jiló?
– De vista. Nenhuma amizade. É tipo gordão, com muita banha?
– Esse mesmo. Pois não se cabe de contente. Só fala no rinhadeiro. Apostou tudo que tem. O seu rival, o espanhol, jurou que o deixará sem calças. E deixará mesmo. O espanhol é raçudo. Quando coloca alguma ideia na cabeça fica doido.
Doutor Evaristo ouvia atento. O assunto o entusiasmava. Que oportunidade! Viu-se famoso. Uma mina de ouro. O momento chegara. Enfim, poderia mostrar sua força... Achegou-se ao balcão ensebado. Fez sinal para o dono da bodega. “Mais dois mercedinhos aqui” – cochichou, esfregando as mãos. “Esse pessoal merece. Bem caprichado. Nada de miséria.”
Os dois já se achavam tomados pela cachaça. Riam por qualquer coisa e mostravam os dentes falhos. Ficaram deslumbrados com a oferta. “É canja obter informação. Nem se aguentam de pé”, pensou.
– Por isso que gosto desta cidade – disse o ruivo, emborcando de uma só vez a bebida. – Que povo hospitaleiro. Nem conheço o senhor e e nos paga um trago. Em outro lugar, com certeza, seria pé na bunda...
– Ora, rapazes, eu gosto de fazer amigos. E também de briga de galos. Já senti que vocês são do ramo, conhecem o terreno que pisam. Faz gosto conversar com pessoas assim...
– Ah, só um pouco... quase nada – voltou a dizer o ruivo, limpando com o dorso das mãos calejadas o bigode esfiapado, enquanto estalava a língua pastosa. – É divertido. Por essas bandas, a vida corre ordinária. A gente precisa de algum passatempo...
– Tem razão. Por aqui nada acontece. Estou enjoado de perambular à toa. A rotina mata. Eu gosto de rinhadeiro. Mas não conheço nenhum. O frenesi dos galos me faz o sangue ferver. Sou capaz de fazer apostas estúpidas. Brigo comigo mesmo. O sangue esquenta, parece que tenho o diabo no couro. Vocês também?
O ruivo riu, as mãos na boca, confessando:
– Pra mim não há limites. Sinto algo estranho por dentro. Certa vez, acreditem, trabalhava para o doutor Odilon, criador de galos. Era louco por peleias. Tinha uma picape só pra carregar os galos de estimação. Por onde ia, nos dias de folga, de sexta à tarde até domingo, sempre se envolvia em apostas.Deixava os pacientes esperando em seu consultório. Gostava mais dos galos do que da medicina. Fomos noutra cidade. Sempre me convidava, eu cuidava das tralhas. “Ruivo, coloque os bichinhos na picape. Hoje, a sorte está pro nosso lado. Fiquei a noite inteirinha com os olhos arregalados.” Então, eu colocava uma meia dúzia em grades separadas e lá íamos nós. Era patrão bondoso, a bebida corria solta. Em diversas ocasiões, dormimos pelas estradas, podres de cachaça. Ganhava, perdia. Mas, certa vez, em Ponta Grossa, só me lembro que fazia um frio dos diabos, ele apostou tudo num rinhadeiro podre, onde as brigas já estavam marcadas. Quanto mais apostava, mais perdia. Por último, colocou a fazenda no páreo. E perdeu. Suava frio. E me olhava perturbado. Eu o puxei de lado, aconselhei: “É podre, chefe. É coisa feita!” Ele retrucou: “Impossível, Ruivo. Conheço esse pessoal há tempo...” Voltei a dizer: “Chefe, é roubo! Coisa encomendada, é quadrilha.” Então, com os olhos que pareciam bolas de gude, ele puxou do trinta e oito e começou a estourar pipocas. Fiz o mesmo. Dois safados ficaram estendidos. Que dia! Fizemos os bandidos colocarem o dinheiro no meio da rinha. Recuperamos o dinheiro. Que tempo! Foi sangue por todo lado.
Doutor Evaristo pediu mais duas doses. Ofereceu cigarros. Aceitaram. Com um só fósforo, ele acendeu os três cigarros. As baforadas inundaram o bar.
– Onde encontro um rinhadeiro? Quero quebrar a rotina, preciso de novas emoções. O sangue me dá prazer. Onde acho uma briguinha de galos?
O ruivo riu.
– Ah, é fácil. Mas...
– Mas?...
– Sigilo, chefe. A polícia não pode ficar sabendo. É proibido. Consegue guardar segredo, chefe?
– Sou um túmulo.
Então, o ruivo contou, a voz baixa. Em seguida, doutor Evaristo se despediu. Ainda era quinta-feira. A chuva continuava a cair. A lama vermelha tingia o asfalto. Até domingo montaria uma estratégia. Estava feliz. Que oportunidade! “Um raio nunca cai no mesmo quintal. É pegar ou largar!”
7
O que era a rinha? Apenas um jogo. Uma espécie de roleta. “É absurdo esperar alguma coisa do jogo”, pensei. O jogo se assemelha a qualquer outro negócio? O comércio, a indústria, os serviços? Neste mundo, tudo é uma forma de ganhar dinheiro. Alguém sempre ganha e outros perdem. O que atiça as pessoas a jogar é exatamente esta possibilidade de ganhar ou de perder.
Nunca estive numa rinha. Então, decidi: “É preciso estudar o próprio jogo”. Mas é sujo, repulsivo, bárbaro. Mas o que é, pois, uma tourada? A farra-do-boi? Diversão? O desejo de ganhar algumas moedas sem esforço e isto faz do homem o ser mais vulnerável. Ficar rico em alguns segundos, num golpe de sorte. O sangue corre inquieto. Tem sangue morno quem se arrisca pouco. Sangue de barata. Rinhadeiro exige sangue forte.
Mesmo que seja a primeira vez, o coração bate descontrolado. Senti medo. Qual era o receio? Faltava-me, confesso, sangue frio. Já me convencera que o domingo mudaria minha vida. Não sairia daquele lugar do mesmo modo como havia chegado. Ruim? Bom? Acontecimento radical, eu pressentia, e decisivo, estava para desabar em meu destino.
Quando padre Zeca chegou, estavam na rinha um galo branco – de outra cidade, cujo dono era um abastado comerciante – e um galo dourado, também de outra região, que ninguém conhecia. Um peão magro, alto, mais parecido com um pau de virar tripas, trouxe-o à rinha. As apostas se intensificaram, os ânimos estavam acirrados, e houve quem desse um lance de cinco mil reais, outro de sei mil, só na vantagem do galo branco, que se mostrava valente, aceitando a briga, mirando o galo dourado com ferocidade, disparando, assim que foi encarado, dois ou três esporaços que passaram ao longe do pescoço do rival. Mas, diante das investidas do dourado, encolheu-se: postou-se de cabeça baixa, asas encolhidas e murchas. Aproveitando-se da situação, o galo dourado achegou-se firme, disparando bicadas ferinas, com arremedos de esporaços, atiçando. Mas o galo branco murchara. Encolhera-se, as asas arriadas. Os apostadores se indignaram. O juiz encerrou a contenda. O comerciante pegou o galo e, na frente de todos, cortou o pescoço com uma navalha. O sangue espirrou. Envergonhado, sujo de sangue, retirou-se. Os apostadores diziam-lhe palavras ásperas.
– O que posso fazer? Era tudo que eu tinha. Cuidei do bicho como ninguém. O que aconteceu é desprezível. Na hora do vamos ver, se afinou!
Abancou-se no bar, desolado.
"Bico de ouro" - Conto - David Gonçalves - trecho 2
Veio a segunda briga. Quase sem nenhuma importância. Apenas um atrativo para a manhã de domingo. Coisa de circo. O Asa Quebrada contra o Perneta. Ninguém apostou. Asa Quebrada tinha história de campeão em diversas cidades. Mas um esporão assassino o liquidara, dobrando sua asa direita como a de um morcego de bambuzal. Não perdera, entretanto, a ferocidade e brigava como possuído. Perneta também tinha fama de campeão, mas perdera a pata esquerda, no alto da canela, por uma navalhada de puaço. O dono, que o amava, não quis sacrificá-lo, medicando-o com receitas caseiras e assim conseguiu salvá-lo. Apresentava-o nos rinhadeiros como parte do espetáculo. Achei ridículo. Um gosto doentio.
– É absurdo! Existem tantas formas de chamar atenção!
– Você não viu nada – comentou Jiló, eufórico. – O dono desse Perneta, segundo os boatos, vive num casarão com o galo. Cuida dele como se fosse da família...
Os violeiros chegaram. Uma dupla da região. Lá no canto, longe do burburinho, começaram a afinar as violas. Jiló os cumprimentou e trocou algumas palavras. Depois se postou novamente na cabeceira da rinha.
Os galos foram colocados frente a frente. E o que se ouviu foram piadas de mau gosto. Desinteressado pelo circo, até mesmo arrependido por estar ali naquela bela manhã de domingo, levantei os olhos para o pessoal que havia chegado. Era gente importante, talvez um dos figurões esperados. Logo atrás da figura imponente, entrevi três a quatro homens fortes e atentos, que vigiavam o ir-e-vir da plateia. Num repassar de olhos, qualquer idiota descobria que eram capangas.
Na mesma caravana, ao redor do ilustre cidadão, duas mulheres: uma loira oxigenada, de bom corpo, mas espevitada, de pele lisa, muito bela; outra, de vasta cabeleira crespa sobre os ombros nus, olhos grandes e negros como jabuticaba. Um corpo firme de meter inveja e cobiça. Ombros altos, seios empinados e quadris bamboleantes.
Por Deus, fiquei suspenso. Uma mulher tão bonita! Senti as mãos trêmulas, o coração disparado. De imediato, percebi que estava ligada ao figurão. Enquanto falava aberto com o povaréu, ele se voltava risonho, cochichando aos ouvidos dela, pecaminoso e indecente.
Por todo o rinhadeiro só havia risos e piadas. Asa Quebrada perseguia Perneta por toda parte. O coitado não tinha o esporão anavalhado, tropeçava e dava cambalhotas divertidas. O público delirava. Um engraçadinho não se conteve e quis apostar no Asa Quebrada.
– Cem mangos por vinte! É pegar ou largar! O Asa Quebrada fatura o aleijadinho.
Logo alguém topou. Mais por gozação. Outros também se animaram. Era uma aposta injusta. Compadre Jiló ficou brabo, resmungando:
– É como tirar marmelada da boca de criança! Só porque não tem uma pata sadia...
Eu não conseguia prestar atenção. A morena grudara em meu cérebro como visgo. Se quer olhava os galos palhaços. Ela conversava com a amiga e dava ouvidos à figura imponente.
– Pois eu vou defender esse galinho aleijado! – esbravejou Jiló, coração cheio de bondade, feito um Dom Quixote. – Ofereço cinquenta por vinte no Perneta. Ele tem jeito de campeão!
– Está doido! – eu disse, boquiaberto. – De que jeito ele vai meter o navalhaço no pescoço do outro?
– Pouco me importa. Quero botar fogo neste circo!
Muitos aceitaram a estopada. “O Jiló se ralou”, pensei. “Mas ele é louco mesmo. E o dinheiro é dele.” O que eu sabia sobre brigas de galo? Eu estava aceso naquela mulher de vasta cabeleira crespa. Que olhos de jabuticaba! E assim nem percebi o desenlace. De repente, o rinhadeiro silenciou. E lá estava Asa Quebrada estirado no chão, sem vida. Compadre Jiló vibrava:
– Eu não disse! O aleijadinho tem jeito de campeão. Pulou de lado, flanqueou, ficou suspenso no ar e estuporou o pescoço do adversário. Passem o dinheiro!
Pela primeira vez, observei o espanhol, o desafiante de Bico de Ouro. Não se conformava com a derrota. Estava enfurecido. Falava alto e grosso:
– Foi sorte. Quero ver quem tem culhões quando meu Pluma de Águia entrar na rinha!
Havia um punhado de dinheiro nas mãos gordas de Jiló, que me repassou por baixo do sovaco cuidadosamente, dizendo:
– Bote nos bolsos. Vamos precisar. Depois dessas briguinhas é a nossa vez. É preciso ter peito e bolsos forrados.
4
As palavras se amontoavam à procura de uma explosão. As sílabas se entrechocavam. Padre Zeca gaguejava em alguns períodos. As frases nervosas se atropelavam. Os significados se espremiam. Ansiava por encerrar a missa. Que remédio! Encurtar o sermão? Cortar alguns trechos sem importância? Mas a igreja estava lotada. O domingo brilhava. Por que tanta gente assistia à missa naquele domingo? Se cortasse um pedaço da liturgia? Mas havia o bando de mulheres devotas que não o perdoariam... Um domingo ótimo para se divertir e aquela gente o segurava no altar... Um dia romântico para passeios no campo... Simplesmente extraordinário para curtir os ares da serra... Mas aquelas pessoas estavam ali, recitando as orações. Padre Zeca não queria perder aquele domingo. Em sua cabeça, rodavam muitos planos.
O texto do sermão dizia:
"O julgamento é este: Que a luz veio ao mundo, e os homens amaram mais as trevas do que a luz; porque suas obras eram más.
Pois todo aquele que pratica o mal, aborrece a luz e não se chega para a luz, a fim de não serem arguidas as suas obras."
Quando lia apressado, viu de relance, através da porta da sacristia, o Ludovico – magro, um dente de ouro e outros podres, a calvície adiantada a começar pela testa – fazer-lhe sinais para terminar logo a liturgia, pois estavam atrasados. Ficou ainda mais impaciente. Não havia como acabar. Aquele bando de mulheres devotas não o perdoariam. Na comunhão, aquela fila esticada. Distribuiu as hóstias, abençoando ao mesmo tempo, nervosamente. Suas mãos, ao entregar o Corpo de Cristo, tremiam, como se estivesse com o mal de Parkinson. De relance, novamente avistou a cabeça calva de Ludovico reluzindo à porta. Apontava o relógio de pulso. “Estamos ferrados. Acabe com essa ladainha. Os que chegam por último só recebem os ossos” – seus lábios carnudos e suas mãos compridas e magras falavam. Padre Zeca sentiu o suor escorrer pelas costas. Tinha que ir até o fim.
Ludovico não gostava de chegar atrasado. Principalmente nas brigas de galos. Era locutor. Mas não havia sido contratado para aquele dia. Narrava como se fosse uma luta de boxe, com voz esganiçada, como se alguém lhe apertasse firme a garganta com as duas mãos. Anunciava aos gritos as ordens do juiz. Vibrava com os esporaços cortantes quando atingiam a garganta do perdedor. Tudo que conseguira na vida, perdera em apostas. Atualmente, cuidava de uma chácara e criava galos de briga. Empobrecido, maldizia a sorte, e tudo que ganhava, através de esforços árduos ou por apostas, gastava com os galos.
– Ferrados, padre! Ferrados! O que fazer? O tempo se foi. O sol já está no meio do céu.
– Pé na tábua, Ludovico! Não respeite os buracos. Mantenha o sangue frio. Neste país, tudo se atrasa. Por não com as brigas?
O jipe saiu cantando os pneus largos e gastos.
– Quantos galos você trouxe? Só três?
Atrás dos bancos, três galos em gaiolas separadas.
– Para que mais? Três brigas, e só. Escolhi os melhores. Veja como estão inquietos. Já sabem que hoje a parada é de arrepiar. Mire o galo Índio...
Padre Zeca concordou.
– Aquelas mulheres papa-santos me enojam! A cada dia me aborrecem mais! Trouxe o Espora Dourada?
– Está aí, não reconhece? Jamais esqueço dos compromissos. Dê uma espaiada. Éo que está do lado direito. O mais inquieto!
Satisfeito, padre Zeca espalmou a cortina de sol do meio-dia.
– Boas chances, Ludovico! Uma bolada não faz mal a ninguém. Aquelas beatas ainda me pagam... Sou capaz de espinafrá-las. Essa gente vive azeda com a vida. Só reclama. Oh, missa demorada. Mas temos chances. O que acha?
– Sei, não. Escutei gabolices sobre os galos do espanhol e do Jiló, aquele pançudo.
– Bobagem. Artimanhas...
O jipe deixou o asfalto e enveredou por uma estrada forrada de pedregulhos. Padre Zeca abriu uma bolsa de couro já gasto e retirou diversos apetrechos. Um canivete de três lâminas com cabo de osso, um pente pequeno e uma peruca. Um dos galos cantou fora de hora. Ludovico fechou o cenho. Não era bom agouro.
– Essa cabeleira me irrita. Quando um padre terá liberdade de fazer o que gosta? Por uma diversão, a gente tem que usar disfarce... Que bobeira! Sabe de uma coisa Ludovico: a igreja só está interessada nos imóveis grandiosos que possui. Enquanto isso, ferra os seus servidores. Me diga: por que não posso frequentar um rinhadeiro?
Enfiou a peruca de cabelos negros na cabeça. Em seguida, colocou óculos escuros. Sua fisionomia mudou. Parecia mais jovem, com menos de trinta anos.
– Como estou? Pareço outra pessoa?
Ludovico mirou-o de soslaio.
– Perfeito, padre. Irreconhecível!
– Não me chame de padre. Que nome devo usar? Seja meu conselheiro. Então?
– Então, o quê?
– Escolha um nome. Decente, é claro.
– Não sei.. O que prefere? Nunca fui bom em nomes. João, Moisés, Lucas?
– Bíblicos, não. Use a imaginação.
– Pois não me vem nome algum na cabeça. Leôncio? Gervásio? Francisco?
– Gervásio me parece bom. Isso mesmo! Gervásio da Silva. Agora, preciso incorporar o espírito desse nome. Sabe, Ludovico, os nomes possuem alma também.
– Espírito! Isso me assusta só de pensar.
– Veja só: Gervásio me faz lembrar de um amigo da infância. Era sapeca, ria muito e adorava fazer diabruras. Acho que vou incorporá-lo. Nunca perdeu uma briga entre a molecada. Tinha tutano. Não levava desaforos pra casa.
– Ele já morreu?
– Que me importa. Eu não sei. Posso incorporar vivos. E daí? Ou não posso?
Um leve tremor passou pelos lábios carnudos de Ludovico. “Que conversa esquisita”, pensou, pisando fundo no acelerador. “Alguém pode incorporar a alma do outro? E ainda vivo?”
– Sei lá, padre. Tenho medo de mexer com essas coisas. Os espíritos vivem em mundo diferente.
– Não me chame de padre. Gervásio, entendeu?
O galo voltou a cantar.
– É mau agouro. Com a breca! Este galo não se dará bem na rinha. O canto fora de hora anuncia desgraça. Por mim, dava um tiro nele já.
– Superstição, rapaz. O que tem a ver o canto do galo com nossas ações? Absolutamente nada.
– Tomara! Uma suspeita desde criança.
– Crendice... preocupação vã... O que interessa agora é chegar a tempo. Pise fundo. Os galos estão bem acomodados.
Ludovico apertou mais o pé no acelerador. Um canudo de poeira se levantou ao longo da estrada.