Nem que a morte os separe - conto - Odenilde N. Martins


Dolores era assim, olhos e fala mansos, gestos e risada contidos, não gargalhava nunca, sorria apenas, com mansidão. Até seu pranto era manso, nada de choro convulsivo que sacode o corpo inteiro. Quando chorava, era um choro brando, sem soluçar. Nem mesmo, quando aos dezessete anos perdeu o noivo Amadeu, vítima de uma gripe mal curada que virou pneumonia, chorou espalhafatosamente, só um pranto que descia devagarzinho, resignado, “era pra ser assim” – limitava-se a dizer a todos que a abraçavam, solidários com sua dor, “é a vontade de Deus que não quis que eu fosse sua esposa aqui nesse mundo” – concluía, como que para confortar os que lamentavam sua triste sorte.

– Credo! Nem parece que perdeu o noivo quase na porta da Igreja – comentavam as más línguas, que vão a enterros para se deliciar com o sofrimento escandaloso dos familiares. Quanto mais gritos e desmaios, melhor. – Parece que ficou feliz com a morte do pobre Amadeu.

Vestiu-se, no dia do enterro, com o vestido branco que usara no dia do noivado, e nos demais dias, sempre que não estava na lida da roça, usava o mesmo vestido verde desbotado pelo tempo e frequentes lavagens. Diariamente, um lenço branco lhe envolvia os cabelos. Fato, este, que causava estranheza “quem está de luto, mostra a tristeza vestindo roupas pretas” – comentavam. Os familiares tentaram dissuadi-la do gasto vestido verde, “não tinha a alma sombria” – defendia-se. Seu luto era assim, Amadeu não haveria de querer vê-la vestida de preto. Seu pesar, preferia estampá-lo assim, em verde, gostava tanto dessa cor! Até sua dor era pura, tranquila como ela. Preferia a cor da luz, pois não sentia solidão nem medo, Amadeu sempre estaria com ela.

E assim Amadeu se foi, sem que Dolores pronunciasse um lamento sequer, só lágrimas silenciosas de aceitação. E a vida seguiu seu curso, quando alguém lhe falava dele, sorria com doçura, mas nada dizia.

Graciano, vizinho do sítio da família da infortunada noiva, decorrido um mês do desenlace de Amadeu, passou a frequentar amiúde a casa da moça. Era amigo de seus irmãos, não havia por que maldar. 

O tempo transcorria como sempre, Dolores dividida entre os afazeres domésticos e a lida na terra. No fim do dia, quando voltava da roça, ela parava às margens do riacho que cortava a propriedade da família, sentava-se, descalçava os pés e mergulhava-os na água fresca. E ali, ficava quase esquecida das horas, conversava com os pássaros, com as flores, com as árvores, com tudo que a cercava. Esta foi a única mudança perceptível em sua rotina.

– Nossa irmã tá maluquecendo – comentou o irmão mais velho, meneando a cabeça em gesto claro de pesar.

No entanto, nenhuma outra atitude confirmava sua suspeita. Ela cuidava dos afazeres e de todos como sempre fizera, sua conversa era tranquila e ponderada como sempre fora, não dizia disparates, nem se fechara em tristezas.

Em uma manhã de domingo, adentrou a igreja usando um vestido branco, florido, com um cinto verde lhe cingido a cintura, nos cabelos, uma tiara enfeitada com florzinhas miúdas, não mais o lenço que usara todos os dias desde a morte do noivo. Acabara seu luto. Assim como entrara, saiu depois das preces, silenciosamente.

Graciano a observava com discrição. Era chegado o momento. Saiu da igreja e dirigiu-se à casa de Dolores. Chegou antes dos donos. Pacientemente, aguardou à sombra de uma frondosa caneleira. Não haveriam de demorar.

Meia hora depois, lá vinham eles, o pai e os dois irmãos na frente e atrás Dolores e a mãe. Nenhum deles mostrou espanto com a presença do rapaz ali, naquela hora da manhã.

Depois de cumprimentar a todos com um pouco mais de cerimônia, dirigiu-se ao patriarca:

– Gostaria de ter um dedo de prosa com o senhor, seu Bento.

– Pois fale, rapaz.

– É uma prosa reservada, se o senhor não se importar.

Bento dirigiu um olhar aos demais presentes que foram se retirando alegando um afazer qualquer.

– O senhor me desculpe o atrevimento, mas quero pedir a sua autorização pra namorar vossa filha.

– Seu Graciano, o senhor já falou com Dolores?

– Não, senhor. Queria antes pedir sua permissão. Saber se é de seu gosto.

– Tem de ser do gosto dela. Vamos ver o que ela acha. Filha, venha cá.

Dolores aproximou-se de cabeça baixa.

– Graciano está pedindo autorização pra te cortejar. É um bom moço. Se for de teu agrado, vocês têm consentimento pra se conhecerem melhor – e retirou-se rumo a casa, deixando os dois jovens a sós, sob a sombra da caneleira. 

Um ano depois, casavam-se Graciano e Dolores. Em pouco tempo, a mansidão da esposa começou a desagradar ao marido, o que antes era visto como algo bom, agora era entendido como indiferença, nada abalava a mulher. Jamais se queixava, nem do excesso de trabalho. Aos poucos, as conversas, que já eram esparsas, se esvaziaram, “de que adianta puxar conversa, Dolores nunca tem o que dizer, nem para queixar” – reclamava o marido, a um amigo, em uma mesa de bar. E por conta do silêncio da mulher, demorava-se cada vez mais no bar, ali tinha com quem conversar e rir. Não importava a hora que chegasse, a esposa não perguntava nada, não recriminava, aquecia o jantar e se recolhia, silenciosa.

– Graciano, estou grávida.

– Você tem certeza, mulher? – perguntou, a voz entrecortada pela emoção.

O marido estava radiante, a mulher... como sempre esteve. 

Quatro anos depois, eram dois os filhos e se não fosse pela alegria das crianças, correndo para lá e para cá, já tinha enlouquecido.

– Dolores, tenho pensado que, por causa das crianças, a gente deva se mudar pra cidade. Morando nesse fim de mundo, como é que vão pra escola?

Pela primeira vez, Graciano viu uma expressão de espanto no rosto da esposa.

– Não, Graciano. Eu não posso ir embora daqui. 

– Por que não, mulher? Não tô te entendendo. Tua vida vai ficar mais fácil sem a lida na roça. Os meninos precisam estudar.

– Eu não vou embora daqui, Graciano. A minha vida começou aqui e aqui vai terminar.

Um misto de espanto e satisfação tomou conta do marido. A esposa, finalmente, dizia “não”.

– O que tu tem aqui que te impede, Dolores? – perguntou esperançoso, já que a conversa não era um monólogo.

– A minha vida! Meu passado e meu presente, meu futuro também. Não posso ir daqui.

– Pois já está decidido! Nós vamos tão logo eu consiga arrendar este sítio e arrumar uma casa na cidade.

– Eu não, Graciano. Acredite em mim, aqui eu fico pra sempre.

Dois meses depois:

– Mulher, mudamos na semana que vem. Já tenho arrendatário e casa pra morar bem perto da escola. Até arrumei trabalho na construção civil. Vai dar pra viver.

Dolores nada disse, limitou-se a sorrir com brandura.

– Amanhã, começo a arrumar a mudança.

Na semana seguinte, enquanto jantavam:

– Amanhã, bem cedo, o compadre Leôncio vem buscar a mudança. Tá tudo pronto?

– Sim. Já arrumei tudo. É só botar no caminhão.

Tudo já estava no caminhão quando Graciano se deu conta de que a mulher sumira.

– Que diacho! Onde se meteu essa mulher? – e saiu gritando: – Dolores! Dolores!

Logo, todos os que se dispuseram a ajudar na mudança, procuravam pela mulher. Depois de quase uma hora de buscas, viram-na, deitada sobre a relva, às margens do córrego que cortava a propriedade. Vestia o vestido branco que usara quando do noivado com Amadeu, na cabeça, uma coroa de flores lhe enfeitava os cabelos, no dedo anular da mão direita tinha a aliança de noivado que recebera de Amadeu. A sua volta, pássaros das mais diversas espécies cantavam, uníssonos. No rosto da noiva, a mais pura expressão de felicidade. Jamais estivera tão bela. Partira ao encontro de Amadeu.
Odenilde N. Martins

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