Mais uma vez a idéia de que quem não está preparado para a verdade não a pode enxergar. Mas neste conto esse defeito é visto em uma cidade inteira, o que deixa o narrador, que conversa com esses moradores, irritado com tal cegueira. Lembra O Velho do Restelo, de Os Lusíadas.
Narrada em primeira pessoa, por um narrador do povoado, a estória tem como protagonista a Mula-Marmela, mulher caracterizada como "furibunda de magra, de esticado esqueleto, e o se sumir de sanguexuga, fugidos os olhos, lobunos cabelos, a cara (...) o queixo trêmulo (...) a selvagem compostura".
O narrador está determinado a convencer – o que não consegue – a todos que Mula Marmela, mulher estéril, sem nome cristão, dotada de linguagem antiga (sua descrição a afasta deste mundo), não é uma personagem maldita como sempre fora apregoado. Sua função fora benfazeja, pois eliminara dois personagens sedentos por sangue: seu companheiro Mumbungu e o filho deste, Retrupé, que chegou até a ser cegado pela madrasta para deter seu espírito maligno. Essas acusações não são explicitamente encampadas pelo narrador, que apenas relata, cômoda e seguramente, os comentários que circulam pela cidade.
A imagem que simboliza Mula Marmela é a do carvão, que é preto, mas, aproximado à luz, torna-se brilhante. As ações de Mula Marmela, para quem tem visão tapada – como o narrador de O Espelho, em certo momento, ou Damásio Siqueiras, em Famigerado – são malignas. No entanto, a ação dela salvou, por meio da morte, seu companheiro companheiro e de seu enteado. Tanto que os dois, por mais bandidos que fossem, sempre a respeitaram e a temiam, como se intuíssem que o destino deles estava nas mãos dela.
Como argumento em favor da personagem, é lembrado o momento em que Retrupé fora assassinado. Quando havia descoberto o inevitável fato (envenenamento), tem uma explosão de raiva e tenta atingir Mula Marmela com seu facão, mas não a alcança, mesmo ela estando inflexível. Arrefecida a explosão, começa, entre lágrimas, a chamar a algoz de mãe. Ela o chama de filho.
Realizada sua missão, parte da cidade, sob o silêncio ingrato dos habitantes. O narrador faz ainda questão de lembrar que na saída ela havia carregado nas costas um cachorro morto – ou para limpar a cidade, ou para enterrar o coitado, ou para garantir companhia em sua viagem. Qualquer uma dessas hipóteses reforça o caráter positivo da protagonista.
Enredo
É a história de Mula Marmela, uma mulher que livra a vila de um criminoso: Mumbungo. Com muitas valentias de mortos e feridos, ele e Marmela apaixonaram-se e viviam juntos. No entanto, ela termina por matá-lo, também sem razão à primeira vista.
A relação amorosa e carnal entre os dois era irremediável, assim como o assassínio dele por ela. A crueldade de Mumbungo iria ser contraposta pela malícia de Marmela que o pegará sem escapatória, configurando-se-lhe o destino personalizado em mulher, sua moira. A maldade sobreporia a crueldade. A feminidade enroscaria o macho.
Mumbungo representa para a cidade a exibição da força e da violência, e ninguém poderia ser tranqüilo, pois tal presença mancha os habitantes como uma nódoa, vivendo todos marcados por uma incompletude: o medo. Dessa forma, a escuridão que perseguia os moradores do vilarejo não poderia ter sido destruída de outro modo do que pela sombra da mulher. Mesmo assim, a benfazeja, ao eliminar o cruel, atrai o desprezo dos aldeões. Mas sua missão não havia terminado ainda e não podia ir embora sem expurgar a localidade da ira e da violência.
Como bode expiatório, tem de ir ao encontro de Azazel para purificar o local. Para que a calamidade não retorne, o ritual e o sacrifício têm de ser completos. Assim como o pai, o cego Retrupé poderia ter sido um flagelo para a comunidade de Marmela. Numa mistura de Tirésias com Édipo, ele é duplamente cego: não enxerga e é colérico, não tendo nem a clarividência de um, nem a vidência do outro.
Retrupé, pés para trás, necessita dos olhos da Mula Marmela, tendo de seguir suas pegadas. Há uma situação trágica em que a sina de Marmela, matar o marido e cegar o enteado, é recebida com soberba pela comunidade. Seu mal, praticado contra desgracentos, reverte em benefício: em nome de todos se sacrifica, é o mal necessário. Tal ato de sacrifício será sua sentença condenatória: vagar isolada, ser os olhos do cego e tornar-se a rejeitada do mal. Sua missão salvadora a aniquila perante todos, assinalando a marca da diferença. Por isso, ela tem de ser lançada do lugarejo, descontaminando-o e revitalizando-o.
O gesto de pegar o cachorro morto e apodrecido e carregá-lo no colo representa seu último ato de limpeza, oferecido como sua derradeira abnegação. Tal exercício purificador de um bode expiatório assassino deixa entrever uma incumbência sagrada, firmando a personagem como uma espécie de enviada. O paradoxo encontra-se nessa ligação, pois caracteriza a quebra do sexto mandamento. Se há males que vêm para o bem, certamente a morte é o ápice de semelhante trajeto, e Mula Marmela seguiu à risca o enunciado.
A benfazeja é uma narrativa ambígua, porque os fatos em si nos levam, à primeira vista, a considerar a protagonista uma criatura estranha e até maléfica, porque matou o marido e talvez tenha cegado o enteado. Mas como uma esfinge que precisa ser decifrada, este mistério do bem e do mal vai sendo esclarecido pelos olhos iluminados do narrador.
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