O SUBSOLO - DOSTOIÉVSK - PARTE 6


VIII

“Ah! ah! ah! mas a vontade, isso é coisa que não existe!” ‑vós me interrompeis rindo. ‑ “A ciência já conseguiu tão bem dissecar o homem que, a partir de agora, sabemos que a vontade e o que se chama de livre arbítrio não passam de…”

Permiti, senhores! Eu próprio me preparava para começar assim. Tive mesmo medo, confesso‑vos: ia gritar que a vontade depende, sabe o diabo de quê, e que talvez se trate de algo muito bom, mas lembrei‑me da ciência e mordi a língua: foi então que me interrompestes. Com efeito, se se conseguir descobrir a fórmula de todos os nossos desejos, de todos os nossos caprichos, isto é, de onde provêm, de acordo com que leis se desenvolvem, como se reproduzem, para que fins tendem em tais ou tais casos, etc., é provável, então, que o homem deixe logo de querer, nem sequer é provável, é certo. Que prazer haverá em não querer senão em conformidade com tábuas de cálculos? Mas isto é dizer pouco ainda: o homem cairá imediatamente na categoria de uma simples peça. Na verdade que é um homem despojado de desejo, de vontade, senão uma peça, uma transmissão?! Que pensais disto? Examinemos pois as probabilidades: tal ou tal coisa poderá se produzir ou não?

‑ Hum! ‑ dizeis. ‑ Nossos desejos se enganam muito fre­qüentemente, porque nos enganamos na avaliação dos nossos interesses. Acontece‑nos querermos coisas ineptas porque, com a ajuda da nossa estupidez, cremos nos aproximarmos assim do que consi­deramos como particularmente interessante. Mas quando tudo esti­ver explicado, quando tudo for posto em ordem e fixado de antemão (o que é muito possível, pois é ridículo, pois é estúpido crer que certas leis da natureza permanecerão indecifráveis), então, evidente­mente, não haverá mais lugar para o que se chama de desejos. Se nossa vontade entra então em conflito com a, nossa razão, pode­remos raciocinar e não querer, porque é impossível a um ser ra­cional desejar inépcias, contradizer conscientemente a razão e pro­curar prejudicar‑se… E urna vez que todos os desejos e todos os raciocínios poderão ser calculados antecipadamente, porque estarão descobertas as leis do nosso suposto livre arbítrio, tornar‑se-á pos­sível, um dia, (eu não gracejo) organizar uma espécie de lista, e ter vontade, reportando‑nos a ela. Admitamos que me seja pro­vado um dia que se eu mostrei o punho fechado a alguém, é que não podia agir de outra forma, e que devia fechar o punho precisamente assim; de que liberdade disponho eu ainda, sobretudo se sou eu próprio instruído e se possuo um diploma? Posso então calcular minha existência com trinta anos de antecedência. Numa palavra, se isto se realizar, não teremos mais nada a fazer senão compreender. E, em geral, devemos repetir‑nos sem descanso que nesse instante e precisamente nessa circunstância, a natureza não se preocupa conosco de maneira nenhuma, e que é preciso aceitá‑la como é, e não como a enfeita a nossa fantasia, e que se aspiramos realmente às fórmulas, às efemérides, aos alambiques, não há nada a fazer, é preciso aceitar o alambique; senão ele passará perfeitamente sem a nossa aprovação,

Sim, mas é aqui justamente que me aparece a dificuldade. Mas, perdoai‑me por me ter posto assim a filosofar. Não o esqueçais: tenho quarenta anos de subsolo. Permiti‑me soltar as rédeas à minha fantasia. Vede, senhores, a razão é uma coisa excelente; isto é incontestável; mas a razão é a razão e não satisfaz senão a faculdade de raciocínio do homem, enquanto que o desejo é a expressão da totalidade da vida, isto é, da vida humana inteira, inclusive a razão e seus escrúpulos; e, se bem que nossa vida, tal como se exprime assim, se revista freqüentemente de um aspecto muito velhaco, nem por isso é menos vida, e não a extração da raiz quadrada.

Assim comigo, por exemplo: eu quero viver, naturalmente, a fim de satisfazer minha faculdade de existência em sua totalidade e não para satisfazer unicamente a minha faculdade de raciocínio, que não representa, em suma, senão a vigésima parte das forças que estão em mim. Que sabe a razão? A razão não sabe senão o que aprendeu (ela não saberá nunca outra coisa, provavelmente; e embora isso não seja uma consolação, não o devemos dissimular), enquanto que a natureza humana age com todo o seu peso, por assim dizer, com tudo que ela contém em si, consciente e inconscientemente; acontece‑lhe cometer disparates, mas vive.

Suspeito, senhores, que me considerais com um certo desdém: vós me repetis que é impossível a um homem esclarecido e culto, ao homem do futuro, em uma palavra, que lhe é impossível querer deliberadamente o que for contrário aos seus interesses; é claro como as matemáticas. Estou inteiramente de acordo: sim, é matematicamente exato. Mas repito‑vos pela centésima vez: existe um caso, um único, em que o homem pode deliberadamente, expressamente, rebuscar o que lhe é desfavorável, o que lhe parece estúpido, inepto, com o único fim de se subtrair à obrigação de escolher o aproveitável, o digno. Porque essa inépcia, esse capricho, talvez seja, efetivamente, meus senhores, o que há de mais vantajoso para nós sobre a terra, sobretudo em certos casos. É possível mesmo que essa vantagem seja superior a todas as outras, mesmo quando nos é manifestamente prejudicial e contradiz as conclusões mais justas do nosso raciocínio. Conserva‑nos, com efeito, o principal, o que nos é mais caro, isto é, nossa personalidade. Alguns afirmam. que isso é precisamente o que temos de mais precioso. A vontade pode querer por vezes se pôr de acordo com a razão, sobretudo se não se abusa desse acordo e se dele se aproveita moderadamente. Isto pode ser útil e digno de aprovação. Mas, muito freqüentemente, o mais freqüente mesmo, é a vontade recusar‑se obstinadamente a concordar com a razão, e então… então… Mas sabeis que isto também é extremamente útil e digno de aprovação?

Admitamos, senhores, que o homem não é um bruto. Não se dizer, com efeito, que ele o seja, porque se o fosse, quem poderia então reivindicar a inteligência? Mas se não é um bruto, é no mínimo monstruosamente ingrato, extraordinariamente ingrato. Creio mesmo que é a melhor definição que se possa dar do homem: um ser com dois pés e ingrato. Mas não é tudo ainda: esse não é ainda o seu principal defeito. Seu principal defeito é o mau caráter, que ele conservou inalterável, desde o dilúvio universal até o período schleswig‑holsteiniano de nossa História. Mau caráter, e, em conseqüência, conduta insensata, porque se sabe há muito tempo, que esta decorre daquele. Tentai, lançai um olhar pela História da Humanidade! Que vedes? É grandioso, dizeis? ‑ Sim, bem pode ser; só o colosso de Rodes já representa alguma coisa. E não é em vão que M. Anajevski nos lembra que, segundo uns, o colosso era uma obra humana, ao passo que outros afirmavam que era o produto das forças naturais. Estareis chocados pela variedade? Sim, há nisso uma certa variedade: para disso nos convencermos, basta lançarmos uma olhadela pelos grandes uniformes civis e militares, e se lhes ajuntarmos as pequenas fardas, perder‑nos‑emos completamente; nenhum historiador resistirá a isso. Monótono, direis? ‑ É possível. Não se faz senão guerrear, com efeito. Luta‑se hoje, lutou‑se ontem, lutar‑se-á amanhã mesmo um pouco monótono demais, confessai!

Numa palavra, pode‑se dizer tudo da História Universal, tudo que se apresentar à imaginação mais desregrada. Mas é impossível dizer que ela é racional; equivocar‑vos‑eis desde a primeira sílaba. E, ademais, eis ainda o que se passa constantemente: homens aparecem, sensatos e de bons costumes, filantropos, cujo fim é levar uma existência racional e honesta, a fim de agirem pelo exemplo sobre seus semelhantes e de provar‑lhes que é possível viver sabiamente. Mas que acontece, então? Sabe‑se que grande número desses amantes da sabedoria acabam, mais cedo ou mais tarde, por trair suas idéias e se comprometem em escandalosas histórias.

Pois bem! Eu vos pergunto: o que se pode então esperar do homem, desse ser dotado de qualidades tão estranhas? Tentai derramar sobre ele todos os bens da terra; mergulhai‑o na felicidade, tão profundamente, que não se distingam mais na superfície senão algumas bolhas de ar: satisfazei suas necessidades econômicas tão completamente que ele não tenha mais nada a fazer senão dormir, comer pães de mel, e pensar nos meios de fazer durar a História Universal ‑ pois bem! mesmo nesse caso o homem, por pura ingratidão, por necessidade de se emporcalhar, cometerá, à guisa de agradecimento, uma vilania qualquer. Correrá até o risco de perder os seus pães de mel e procurará as inépcias mais perigosas, os absurdos menos proveitosos, só para misturar a essa sabedoria tão positiva um elemento fantástico, pernicioso. São precisamente os seus sonhos mais fantásticos, é a sua asnice mais vulgar, que ele pretenderá conservar, unicamente para provar a si mesmo (como se isso fosse verdadeiramente tão necessário) que os homens são homens e não teclas de piano, sobre as quais se dignam tocar, é verdade, as leis da natureza, que tocam de resto com tal brio que muito em breve não será possível querer seja o que for sem se referir aos calendários. E depois, mesmo que se achasse que o homem não passa realmente de uma tecla de piano, se se chegasse a lho demonstrar matematicamente, mesmo nesse caso, ele não tomaria juízo e cometeria alguma incongruência, apenas para marcar bem sua ingratidão e perseverar no seu capricho. E, no caso em que os outros meios lhe faltassem, ele se afundaria na destruição, no caos; desencadearia não sei que males, mas não faria finalmente senão o que lhe desse na cabeça. Lançará sua maldição sobre o mundo, e como só ao homem é dado amaldiçoar (isto é bem um privilégio seu, que o distingue muito particularmente dos outros rimais) alcançará assim os seus fins, isto é, convencer‑se de que um homem e não uma peça.

Se me disserdes que o caos, as trevas, as maldições, que tudo isso pode também ser calculado de antemão, se bem que a só possibilidade desse cálculo irá paralisar o impulso do homem e que a razão triunfará, assim, uma vez mais, então eu vos confessarei que o homem só terá um meio de fazer o que lhe apraz, que é perder a razão e tornar‑se completamente louco.

Isto é óbvio para mim; eu vo‑lo garanto, pois parece claro que desde todos os tempos a grande preocupação do homem foi provir sem cessar a si mesmo, que ele era um homem e não uma engrenagem. Com isso arriscava a pele, mas provava‑o: vivia como um troglodita, mas provava‑o. E como, depois de tudo isto, não pecar, como não nos felicitarmos por não estarmos ainda nessa situação e por a nossa vontade depender ainda não se sabe de quê?

Vós exclamais (se me fazeis ainda a honra de gritar) que ninguém pensa em me privar de minha vontade, que a gente só se agita para arrumar as coisas de tal maneira, que por si mesma, por sua própria iniciativa, minha vontade possa pôr‑se de acordo com os meus interesses normais, com as leis naturais, com a aritmética.

Ora vamos, senhores! Que restará da minha vontade, quando tudo estiver nas tábuas de calcular e quando não houver mais que “duas vezes dois quatro”? Duas vezes dois serão quatro sem que minha vontade se incomode com isso. A vontade quer saber de coisa bem diferente!

IX

Senhores, gracejo evidentemente e eu próprio sei que meus gracejos não são muito bons; mas, aliás, não se trata unicamente de gracejos. É rangendo os dentes, talvez, que gracejo. Senhores, há problemas que me atormentam: ajudai‑me a resolvê‑los. Assim, quereis libertar o homem de seus antigos hábitos e corrigir‑lhe a vontade segundo os dados da ciência e conforme ao senso comum. Mas como sabeis que o homem pode e deve ser corrigido? De onde concluístes que a vontade do homem deve necessariamente ser educada? Em uma palavra: por que pensais que essa educação lhe é realmente útil? E para dizer tudo: por que estais tão firmemente persuadidos que é sempre vantajoso para o homem não contradizer seus interesses normais, reais, garantidos pelo raciocínio e pela aritmética? Isto não é, em suma, senão uma suposição vossa. Admitamos mesmo que tal seja com efeito a lei lógica; mas será verdadeiramente a lei humana? Pensais, talvez, que sou louco, senhores? Permiti‑me que me explique.

Admito: o homem é um animal essencialmente construtor, obrigado a se dirigir conscientemente para um fim qualquer; é um engenheiro. Deve, pois, constantemente traçar caminhos novos, não importa em que direções. Mas é talvez por causa disso, precisamente que tem por vezes desejo de escapar pela tangente, precisamente porque está condenado a traçar um caminho e também porque, por estúpido que seja o homem de ação, ele adivinha por vezes que toda estrada leva sempre a alguma parte, e que não é a sua direção que importa, mas o próprio fato de que ela o conduz para um lugar qualquer, a fim de que o menino sabido não se lembre de desprezar seu ofício de engenheiro e não se abandone à preguiça, a qual é, como se sabe, a mãe de todos os vícios. É indiscutível que o homem gosta muito de construir e traçar caminhos; mas como acontece então que ele ame tão apaixonadamente a destruição e o caos? Dizei‑me. Mas eu mesmo gostaria de vos dizer algumas palavras a esse respeito.

Não será que ama tanto a destruição e o caos (Se os ama às vezes, é indiscutível) porque tem instintivamente medo de atingir o fim e terminar o edifício que constrói? O que sabeis disso? Ele não ama talvez esse edifício, senão de longe, e não de perto. Apraz‑lhe, talvez, construí‑lo, mas não morar nele, e está pronto talvez a abandoná‑lo aos animais domésticos. às formigas, aos carneiros, etc. As formigas, sim, têm outros gostos; possuem nesse gênero um edifício verdadeiramente extraordinário, construído para os séculos, o formigueiro.

Foi por um formigueiro que começaram as honradas formigas e é provável que tal seja também o termo da sua carreira, o que faz honra à sua constância e ao seu senso prático. Mas o homem é um ser versátil, e é possível que, à semelhança do jogador de xadrez, não ame senão a ação mesma e não o fim a atingir. E quem sabe? (não se pode garantir) é possível que o único fim para o qual tende a Humanidade não consista senão nesse esforço, nessa ação; ou por outra: a vida não teria fim exterior, o qual não pode evidentemente ser senão aquele “duas vezes dois quatro”, isto é, uma fórmula. Ora, senhores, duas vezes dois quatro é um princípio de morte e não um princípio de vida. Em todo o caso, o homem sempre teve medo desse “duas vezes dois quatro” e eu também tenho.

É verdade que o homem não se ocupa senão da procura desses “duas vezes dois quatro”; atravessa oceanos, arrisca a vida em sua perseguição; mas quanto a encontrá‑los, quanto a apanhá‑los realmente ‑ juro‑vos que tem medo, pois ele se dá conta que, uma vez encontrados, nada mais tem a fazer. Depois de terminarem o trabalho e de terem recebido, os operários vão ao botequim, para acabarem a noite na cadeia; têm então a sua conta ao menos por uma semana. Enquanto que o homem, que se tomará ele? Em todo o caso, observa‑se constantemente nele certo constrangimento, sempre que atinge um fim. Tenta aproximar‑se do fim, mas tão logo o atinge, não está mais satisfeito; e isto é verdadeiramente bem cômico. Em uma palavra: o homem é construído de uma maneira muito cômica, e tudo isto faz o efeito de um calemburgo. Mas seja como for, “duas vezes dois quatro” é uma coisa bem insuportável. “Duas vezes dois quatro”, na minha opinião, respira impudência. “Duas vezes dois quatro” nos desfigura insolentemente. De mãos nos quadris, ele se nos atravessa no caminho e nos cospe na cara. Admito que “duas vezes dois quatro” seja uma coisa excelente, mas se é preciso louvar tudo, eu vos direi que “duas vezes dois cinco” é também às vezes uma coisinha muito encantadora.

E por que pois estais tão inabalavelmente, tão solenemente convictos de que só é necessário o normal, o positivo, o bem‑estar, em uma palavra? A razão não se engana em seus juízos? E possível que o homem não ame senão o bem‑estar. Não é possível que ele ame na mesma medida o sofrimento? Não é possível que o sofrimento lhe seja tão vantajoso quanto o bem‑estar? O homem se põe por vezes a amar apaixonadamente o sofrimento; isso é um fato. Não há necessidade de consultar a esse propósito a História Universal. Indagai vós mesmos se unicamente sois homens, e se tendes vivido, por pouco que seja. No que toca à minha opinião pessoal, dir‑vos‑ei que é mesmo inconveniente só amar o bem‑estar. Está bem? Está mal? Isso eu não sei, mas às vezes é agradável quebrar alguma coisa. Não é precisamente o sofrimento que defendo aqui, ou o bem‑estar: é meu capricho, e insisto para que ele me seja garantido, se for preciso. Nas comédias, por exemplo, não se admitem os sofrimentos, eu sei; tampouco podemos admiti‑los num palácio de cristal: há dúvida, há negação no sofrimento, mas o que seria então de um palácio de cristal do qual se pudesse duvidar? Ora, estou certo de que o homem não renunciará jamais ao verdadeiro sofrimento, isto é, à destruição e ao caos.

O sofrimento! Mas é a causa única da consciência! Eu vos declarei, é verdade, no início, que a consciência, na minha opinião, é um dos maiores males do homem; mas sei que o homem a ama e não a trocará por nenhuma ‑satisfação, seja qual for. A consciência, por exemplo, é infinitamente superior a “duas vezes dois quatro”. Depois de “duas vezes dois”, não resta evidentemente mais nada, não somente a fazer, mas mesmo a conhecer. A única coisa que nos resta, então, é tapar nossos cinco sentidos e mergulharmos na contemplação. Com a consciência chega‑se, é verdade, a um resultado idêntico, isto é, à inação, mas poder‑se‑á, então, pelo menos dar‑lhe uma chicotada, de vez em quando, o que vivifica um pouco o espírito, apesar de tudo. É muito reacionário, mas sempre vale mais do que nada.

X

Credes no palácio de cristal, indestrutível, para a eternidade, ao qual não se poderá mostrar a língua, nem mostrar os punhos às escondidas. Pois bem! eu, se desconfio do palácio de cristal, é talvez justamente porque é de cristal e indestrutível e porque não se poderá lhe mostrar a língua, mesmo às escondidas.

Vede: se em lugar de um palácio de cristal eu só disponho de um galinheiro, quando chove, eu me insinuarei talvez no galinheiro, para fugir à chuva, mas ficando‑lhe embora muito agradecido por ter me preservado, não tomarei meu galinheiro por um palácio. Rides, dizeis‑me que em semelhante caso palácio e galinheiro se equivalem. Sim, responderei, se se vivesse apenas para não estar molhado.

Mas que fazer, se se me meteu na cabeça que não se vive somente para isso e que, se se vive, é num palácio que é preciso se instalar? Isto é minha vontade, isto é meu desejo, Vós não conseguireis me arrancar esta vontade, senão quando tiverdes modificado meus desejos. Pois bem! modificai‑os, apresentai‑me um outro fim, oferecei‑me um outro ideal! Mas, enquanto espero, recuso‑me a tomar um galinheiro por um palácio de cristal. É possível que o palácio de cristal não seja senão um mito, que as leis da natureza não o admitam e que eu o tenha inventado por tolice, impelido por certos hábitos irracionais da nossa geração. Mas que me importa que ele seja inadmissível! Que me importa, pois que ele existe nos meus desejos, ou, para dizer melhor, pois que existe tanto quanto existem meus desejos? Continuais a rir, penso. Ride tanto quanto vos agrade! Aceitarei todas as zombarias, mas recusar‑me‑ei a me declarar saciado, quando ainda tenho fome; não me contentarei com um compromisso, com um zero se renovando indefinidamente, pela única razão de que está conforme as leis da natureza e existe realmente. Não admitirei que o coroamento dos meus desejos possa ser uma casa de tijolos, com alojamentos a preço módico, arrendados por mil anos e ostentando a tabuleta do dentista Wagenheim. Destruí meus desejos, derrubai meu ideal, apresentai‑me um fim melhor e eu vos seguirei. Dir‑me‑eis, talvez, que não vale a pena ocupardes‑vos de mim; mas neste caso posso vos responder do mesmo modo. Nós discutimos seriamente, e se não vos dignardes me conceder vossa atenção, pois bem! não vou chorar por isso. Eu tenho meu subsolo.

Mas, enquanto existo, enquanto desejo, que minhas mãos se. quem se levo um tijolinho que seja a essa casa! Não me digais que eu mesmo renunciei cedo ao palácio de cristal, pelo único motivo de não lhe poder mostrar a língua. Se falei assim, não é que eu goste tanto de mostrar a língua. Acontece porém que, e é isto precisamente que me irrita, de todos os vossos edifícios não há um ao qual não se possa mostrar a língua. Ao contrário, eu faria cortar minha língua, por gratidão, se se arranjassem as coisas de tal maneira que eu não tivesse mais desejo de a mostrar. Que me importa que as coisas não possam se arranjar assim e que seja preciso contentarmo‑nos com alojamentos a preços módicos! Por que tenho eu tais desejos? Não sou feito assim, senão para poder verificar que essa constituição não é senão uma brincadeira de mau gosto? É esse verdadeiramente o único fim? ‑ Não o admito.

De resto, sabeis o que vou dizer‑vos? estou persuadido de que nós outros, homens do subsolo, devemos ser mantidos na trela. O homem do subsolo é capaz de permanecer silencioso no seu subsolo durante quarenta anos; mas, se sai do seu buraco, ele desabafa, e então fala, fala, fala…

OS MAIS BRILHANTES CONTOS DE DOSTOIÉVSK, 1970.

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