Analisando os vários heterônimos de Fernando Pessoa

Torna-se digno de nota, antes de tudo, que Fernando Pessoa, apesar de ter se revelado como um artista composto por vários “eu” poéticos, sobretudo no tocante à heteronímia, também assinou vários poemas com seu verdadeiro nome – caracterizados pelo que denominamos de poesia ortônima. Modalidade esta em que a pessoa aparece como ela mesma, perfaz-se de notórios traços ligados à tradição literária portuguesa, tais como o saudosismo, sebastianismo (sentimento relacionado ao desaparecimento de D. Sebastião) e o visionarismo em relação à nacionalidade lusitana – concepções intrínsecas à própria visão de mundo do poeta, concebida como politicamente conservadora.

Sua poesia de cunho nacionalista, composta em Mensagem, caracteriza-se como poemas épicos, os quais têm como unidade temática as grandes navegações. Nesses prevalecem um sentimento marcado por uma intensa melancolia em relação ao futuro de Portugal, visto como algo sombrio quando comparado como passado glorioso, demarcado pelas descobertas marítimas. Como bem nos retratam os excertos contidos no poema intitulado Nevoeiro:
Nem rei nem lei, nem paz nem guerra,
Define com perfil e ser
Este fulgor baço da terra
Que é Portugal a entristecer -
Brilho sem luz e sem arder,
Como o que o fogo-fátuo encerra. 

Ninguém sabe que coisa quer.
Ninguém conhece que alma tem,
Nem o que é mal nem o que é bem.
(Que ânsia distante perto chora?) 
Tudo é incerto e derradeiro.
Tudo é disperso, nada é inteiro.
Ó Portugal, hoje és nevoeiro... 

É a Hora!
(Trechos extraídos da Obra Poética, Rio de Janeiro, Nova Aguilar, 1976) 

No que se refere à produção lírica, esta se encontra manifestada em Cancioneiro, na qual são retratados temas ligados à infância, vida, arte, solidão, saudade, dentre outros, sempre associados a um clima nostálgico do passado em consonância ao tédio vivido pelo presente.

Grandes mistérios habitam
O limiar do meu ser,
O limiar onde hesitam
Grandes pássaros que fitam
Meu transpor tardo de os ver. 

São aves cheias de abismo,
Como nos sonhos as há.
Hesito se sondo e cismo,
E à minha alma é cataclismo
O limiar onde está. 

Então desperto do sonho
E sou alegre da luz,
Inda que em dia tristonho;
Porque o limiar é medonho
E todo passo é uma cruz. 
Alberto Caeiro 
De acordo com a biografia instituída por Fernando Pessoa, Alberto Caeiro era órfão e vivia com uma tia no campo, por isso só recebeu a instrução primária. Autor de uma poesia aparentemente caracterizada pela simplicidade, no fundo mostra-se norteada por uma intensa complexidade filosófica, visto que o poeta nega tudo que esteja aquém da percepção sensível. Em função de tal posicionamento, demonstra todo seu empenho em impedir que o pensamento racional dificulte o contato direto com a natureza.

Apresentando-se como rústico e ingênuo, considera que o verdadeiro conhecimento é aquele oriundo das forças sensitivas, pois acredita que a racionalidade preconizada pela ciência acaba por destituir a naturalidade humana, ao criar mistérios que na verdade não existem. Tais pressupostos pedem ser conferidos em O guardador de rebanhos:

I

Eu nunca guardei rebanhos,
Mas é como se os guardasse.
Minha alma é como um pastor,
Conhece o vento e o sol
E anda pela mão das Estações
A seguir e a olhar.
Toda a paz da Natureza sem gente
Vem sentar-se a meu lado.
Mas eu fico triste como um pôr do Sol
Para a nossa imaginação,
Quando esfria no fundo da planície
É se sente a noite entrada
Como uma borboleta pela janela.
Mas a minha tristeza é sossego
Porque é natural e justa
E é o que deve estar na alma
Quando já pensa que existe
E as mãos colhem flores sem ela dar por isso.
Como um ruído de chocalhos
Para além da curva da estrada,
Os meus pensamentos são contentes.
Só tenho pena de saber que eles são contentes,
Porque, se o não soubesse,
Em vez de serem contentes e tristes,
Seriam alegres e contentes.
Pensar incomoda como andar à chuva
Quando o vento cresce e parece que chove mais.
Não tenho ambições nem desejos
Ser poeta não é uma ambição minha
É a minha maneira de estar sozinho.
E se desejo às vezes
Por imaginar, ser cordeirinho
(Ou ser o rebanho todo
Para andar espalhado por toda a encosta
A ser muita cousa feliz ao mesmo tempo),
É só porque sinto o que escrevo ao pôr do Sol,
Ou quando uma nuvem passa a mão por cima da luz
E corre um silêncio pela erva fora.
[...]

Ricardo Reis 
Ricardo Reis foi educado em colégio de jesuítas, tornou-se médico, monarquista e se revela como verdadeiro apreciador da cultura clássica. Mostrando-se contrário a Alberto Caeiro, sua produção é permeada pela racionalidade, pautando-se por temas relacionados à fugacidade do tempo, haja vista ter sido bastante influenciado pelos representantes árcades. Diante de tal perspectiva, valoriza a simplicidade conferida pela vida campesina, tendo como fonte de inspiração a ideologia de Horácio (baseada no Carpe Diem).

Demonstra ser um autêntico epicurista, uma vez adepto das ideias de Epicuro (séc. III a.C), o qual ressaltava que a verdadeira sabedoria reside no equilíbrio dos sentidos e nos prazeres naturais, abnegados de “eventuais” excessos. Características demarcadas em:


Anjos ou Deuses
Anjos ou deuses, sempre nós tivemos, 
A visão perturbada de que acima 
De nós e compelindo-nos 
Agem outras presenças. 
Como acima dos gados que há nos campos 
O nosso esforço, que eles não compreendem, 
Os coage e obriga 
E eles não nos percebem, 
Nossa vontade e o nosso pensamento 
São as mãos pelas quais outros nos guiam 
Para onde eles querem E nós não desejamos. 

Álvaro de Campos 

Engenheiro naval formado na Escócia, Álvaro de Campos se mostra como um futurista, demonstrando sua sensibilidade poética arraigada no presente e no futuro, sendo que aquele aparece em menor instância, quase sempre camuflado no saudosismo dos tempos de criança.

Digamos que semelhantemente a Alberto Caeiro e Ricardo Reis, o poeta em questão também cultua as sensações, no entanto, estas resultam do contato com a modernidade, promovido pelo barulho dos automóveis, das máquinas a vapor, enfim, pelo crescimento industrial. Fatores responsáveis pelo instaurar de um sentimento de angústia e perplexidade - mediante tais avanços -, os quais resultam numa criação de cunho existencialista. Como nos revela a seguinte criação:


Tabacaria

Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.

Janelas do meu quarto,
Do meu quarto de um dos milhões do mundo que ninguém sabe quem é
(E se soubessem quem é, o que saberiam?),
Dais para o mistério de uma rua cruzada constantemente por gente,
Para uma rua inacessível a todos os pensamentos,
Real, impossivelmente real, certa, desconhecidamente certa,
Com o mistério das coisas por baixo das pedras e dos seres,
Com a morte a por umidade nas paredes e cabelos brancos nos homens,
Com o Destino a conduzir a carroça de tudo pela estrada de nada.

Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade.
Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer,
E não tivesse mais irmandade com as coisas
Senão uma despedida, tornando-se esta casa e este lado da rua
A fileira de carruagens de um comboio, e uma partida apitada
De dentro da minha cabeça,
E uma sacudidela dos meus nervos e um ranger de ossos na ida.

Estou hoje perplexo, como quem pensou e achou e esqueceu.
Estou hoje dividido entre a lealdade que devo
À Tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fora,
E à sensação de que tudo é sonho, como coisa real por dentro.

Falhei em tudo.
Como não fiz propósito nenhum, talvez tudo fosse nada.
A aprendizagem que me deram,
Desci dela pela janela das traseiras da casa.
Fui até ao campo com grandes propósitos.
Mas lá encontrei só ervas e árvores,
E quando havia gente era igual à outra.
Saio da janela, sento-me numa cadeira. Em que hei de pensar?
[...]

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