As Areias da Enseada - Salustiano Souza

  O ônibus riscava o asfalto com seus faróis acesos e na minha imaginação ia muito veloz. Eu olhava embevecido a mata que recobria as margens da rodovia, as poucas casas que povoavam Araquari e o céu que começava a tingir-se de alaranjado, prenunciando mais um dia ensolarado no verão que findava.
  O ônibus parou na fila de carros e todos se levantaram. Olhamos com curiosidade o trem que atravessava a pista, fiquei contando os vagões, na época ainda havia vagões de passageiros, mas naquela hora estavam vazios. O pessoal estava animado, as cestas, caixas e bolsas rolavam pelo corredor nas freadas bruscas e manobras radicais, denunciando que o Beca, motorista maluco que levava os alunos para a Escola Técnica Tupy, era mesmo maluco.
  Sentia um pouco de sono, afinal eu me levantara várias vezes na noite para espiar o céu, com medo de perder a hora e com uma ansiedade incomum. Tinha pouco mais de treze anos, estava começando o curso de mecânico ajustador no Senai e com um misto de alegria e ansiedade aceitara o convite para a excursão da família de um amigo de lá, o Dagoberto, para passar o domingo na praia da Enseada. O ônibus ia lotado, todos os parentes do Dagoberto estavam lá, uma grande festa.
  Sonhos espocaram nas noites que antecederam a partida. Eu praticamente não conhecia praia, apesar de morar em Joinville. Lembranças do mar tinha pouco, algumas parcas passagens por Barra Velha onde via o espetáculo do mar descortinar-se na descida do morrinho e uma vez em Balneário Camboriú, levado pela mão de meu pai, olhando com inveja as crianças que brincavam na areia. Queria molhar os pés, mas ele não deixou. E nem televisão tínhamos para mitigar o desejo que tanto me fascinava de ver o mar.
  Por isso o sonho agora era mais intenso, o desejo mais incontido. Me imaginava correndo na areia da praia, chutando a água, exatamente como vira as crianças fazerem, há muitos anos atrás. Antes de dormir naquela noite acalentei o último sonho que antecede a realização de um desejo. Acordei muito cedo e às cinco e meia da manhã cheguei de bicicleta na frente da casa deles, lá no Itaum. O cheirinho do café misturava-se com a algazarra da família se reunindo.
  O sol agora nascia soberbo, espelhando-se nas águas plácidas do canal do Linguado. A mãe do Dagoberto distribuía orelha de gato. Humm, uma delícia. De repente um estranho barulho, um pneu furou. Quase todo mundo desceu, não tinha muita gente para ajudar, mas para dar palpites estava cheio. Olhei com interesse uma prima do Dagoberto, afinal a puberdade transpirava por todos os poros. Senti que seus olhos fugidios manifestaram interesse.
  A viagem recomeçou e eu comecei a dividir meus sonhos de ver o mar com os sonhos de conhecer melhor aquela garota.
  - Chegamos em São Francisco, gritou alguém quando fizemos a curva e entramos no Bairro Laranjeiras. Olhei para a janela, procurando o mar, mas só via casas e árvores.
  - Cadê o mar, perguntei, e todos riram.
  - Calma menino, mais meia hora e nós chegamos, falou uma das mulheres.
 Logo à frente, a polícia, ao lado da igreja, parou o ônibus. Examinou documentos, conversou com o Beca e fez pouco caso da minha impaciência. Liberou o ônibus, não sem antes ganhar umas orelhas de gato da mãe do Dagoberto.
  Nunca imaginara que a praia pudesse ser tão longe. Mais mato, mais asfalto, e por fim um pedaço de estrada de chão. 
  - A praia, ouvi o grito quando já saboreava as nesgas de mar que apareciam no meio das árvores. Na Enseada da minha infância havia uma ou outra casa esparsa, porque os prédios vieram anos depois. A praia era quase selvagem.
Mal parou o ônibus eu corri para água. Na pressa esqueci de tirar o único tênis que tinha, um kichute, e a calça boca sino. Parei com água nas canelas, as ondas brincando de molhar meus joelhos, o olhar embevecido não conseguia abarcar aquela imensidão de água. Fiquei ali parado, sem saber o que fazer, aquele movimento das ondas marulhando no encontro com a areia, ah, aquilo era divino.
  Fechei os olhos e lembrei do poema de Casimiro de Abreu, Deus. Como havia sonhado com aquele momento! A alegria era imensa, não sabia o que fazer, fiquei ali, extasiado, com um sorriso abestalhado, vendo o sol dançar em miríade de cores naquela efervescência de ondas.
  - Vem! falou a prima do Dagoberto, pegando na minha mão. – Vai colocar um calção!

Salustiano Souza
Fevereiro/2015

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