Hora e tanto já, e nada de peixe. Mas o gostoso era ficar assim na canoa, pensando na vida, imaginando coisas. Passada aquela eleição, ia sossegar. A política matava, acabava com a pessoa. Depois que se metera nela, nunca mais pudera ter uma semana de descanso. Escravo dos outros, do partido, do eleitorado. E os adversários não dormiam, os concorrentes vigiavam. Todos os dias, uma notícia má, nomeações que não saíam, chefes do interior que ameaçavam romper por causa de pedidos impossíveis... E ter de mentir, de prometer...
Doutor, doutor... agora é a peixa... é a peixa, sim... engasgava o Gerôncio. Ferra, doutor, ferra!
Mas era Paulo quem estava no cabo da vara; sabia que precisava esperar, sentir primeiro aquele tranco surdo trazido das profundidades pela linha de aço e pelas fibras do bambu.
Calma...
Agora! O pescador abaixou a vara um pouco mais, mais um pouco ainda, para bambear o aço e voltou com ela, num golpe duro, seco, certo.
Ladrão! Paulo gritou quando sentiu a vara erguer-se frouxa, sozinha.
Lhe falei, doutor... O senhor dormiu no ponto...
Fora peixe grande, mesmo. Do muçum, nem notícia: o anzol sem um fiapo de isca...
Ferrou de mau jeito, Gerôncio. Mas antes escapar no começo que na hora de embarcar o bicho na canoa. Já-já o safado está de volta. Você trouxe alicate?
A ideia do alicate era desculpa. Paulo sabia que Gerôncio não se dava a esses luxos de carregar a porção de ferramentas que pescador de cidade costuma trazer nas capangas. Com a volta do anzol mais entortada ou exatamente como se achava, não seria por isso que o peixe ia escapar da fisgada. Falta de treino, isso sim. Errar logo um peixe de couro! Felizmente, o Rufino não estava perto. Se estivesse...
Paulo ajeitou outro torete de muçum no anzolão. Perfeita, aquela enguia preta e encontradiça em qualquer brejo ou resfriado dos rios do Sertão dos Confins. O Lobo, outro fanático pela pesca dos grandes peixes noturnos, tentara aclimá-la em Amburana, inventando um brejo artificial no quintal da casa dele, planejando até uma criação para vender as iscas vivas à companheirada. Mas o muçum só vivia mesmo era pelas bandas do Urucunã, nativo de lá, e tal criação dera em nada. Uma pena, pois, como o Lobo dizia, Deus quando inventou o mundo previu até a pesca do surubim. “Que outra serventia?” perguntava ele. “Prestem atenção na cobrinha: carne dura, sangrenta, o tubo digestivo num canudo só, de calibre certo para se ajustar aos anzóis fundo-de-agulha e revestido, ainda por cima, desse músculo contrátil, acomodatício, agarrando-se ao aço como guarnição de borracha..." Outro que gostava dum palavrório, o Lobo. E as discussões dele com Rufino? Os peixes em latim, os plecostomus, os bimaculatus...
Foi pena você não conhecer o Lobo, Gerôncio: companheirão estava ali! Paulo disse, depois que atirou novamente a isca no centro do rebojo.
O senhor fica conversando, Dr. Paulo, e daqui a pouco o peixe passa outra vez a perna no senhor... provocou o maldoso do Gerôncio.
Mas o pescador estava prevenido. Sustentava, agora, a vara com ambas as mãos, sem deixar que encostasse na borda da canoa, para que as mínimas vibrações do bambu lhe chegassem imediatas e perfeitas. Ferido na boca pela ferrada malsucedida, o peixe ainda demoraria a voltar e a sucumbir ante a presença do outro muçum carnudo e tentador... Mas havia outros: o rebojo da peroba-rosa nunca deixava ninguém de mãos abanando...
Tontura gostosa dava a pinga forte do Gerôncio. E o silêncio, o balançar maneiro do rebojo, o fresco da chuvinha manhosa, a escuridão do rio... Impossível fixar-se numa ideia só, ou concentrar-se apenas na ponta do caniço: os pensamentos libertavam-se naquelas horas de espera, as preocupações sumiam, vinha a suave sensação de leveza e bem-estar. Daí, o irresistível daquelas fugas para as beiras de rio, o vício em que elas se tornavam. Boa vida, a de antigamente! Mas metera-se de uma vez na política, e agora era tocar para diante, que jeito já não havia de recuar. Abandonar, por exemplo, o João Soares... E os compromissos com o Bernardino, esse quase convencido, afinal, da inutilidade da antiga e terrível oposição aos Rochas, já aceitando os argumentos de D. Candinha, já se afastando da briga, dedicando-se mais à clínica e à família... Impossível... Fora ele, Paulo, que aparecera em Santa Rita para açular o pobre, metê-lo em brios... Razão tinha, e de sobra, a mulher do Bernardino, em mostrar aquela má vontade, aquela quase hostilidade... E os outros? O pessoal de Amburana, de Pedra Branca, os companheiros dos vinte e tantos municípios onde fora fundar partido e reforçar a luta contra a situação? Recuar como? Fugir como?
Agora, doutor! Ixe, que monstra. Não dê a ponta, não, que a linha arrebenta! berrou de súbito o Gerôncio.
Desta vez, a ferrada fora certeira. Ao golpear a vara, Paulo sentiu o soco da fisgada, firme tal e qual machadada de machado novo em tora macia de cedro. E um despropósito de peixe, que a vara se arqueou em curva alta, fechada, atingindo até os gomos atarrancados do cabo.
Surubim! E dos manatas, olhe a vara! continuava o escandaloso do Gerôncio. Não dê a ponta, não, doutor!
E dos pintados! o deputado gaguejou. Está puxando de esguelha, o ladrão... Duas arrobas, no mínimo. Virgem, é um cavalo de peixe!
Sempre com razão, o Aleixo Telegrafista! Ferrada misteriosa. Sim, quem puxava o anzol com aquela força não podia ser bicho deste mundo. Era o caboclo-d’água. O chupão das profundas do rio levara quase metade da vara para dentro do rebojo. Mantê-la em pé, embodocada, as mãos destreinadas de Paulo já quase não o conseguiam e, se o peixe lograsse diminuir de mais um tico o ângulo que o bambu ainda mantinha com o nível do rio, aí então é que nada evitaria o desastre: linha, vara, pescador bastava que este caísse na bobagem de bancar o teimoso), tudo seria engolido de uma vezada pelo horrendo sumidouro....
Nos seus bons tempos, Paulo não admitiria aquilo mas teve de aceitar, agora, a demão do Gerôncio. O preto passara-lhe os dois braços rijos pela arca do peito, cruzando as mãos num arrocho definitivo, ajudando a fazer força. Pés calçados no reforço transversal que todo canoeiro prático já deixa pronto, inteiriço, na hora de ocar a tora de pau, o negro bufava:
’guente o galho do seu lado, patrão, que do meu lado eu ’guento!
O bambu estralava que nem taboca no fogo. O cabo de aço três fios doze trançados, decerto presente do Pe. Sommer ao Gerôncio parecia laço em cabeça de boi xucro. Zanzava, doido, cortando o rebojo de fora a fora, enfiando-se por baixo da canoa, procurando a água-braba, fugindo, voltando, regirando agora, desatinado...
Recolha a sua linha, Gerôncio! Me largue! Deixe o bicho sozinho por minha conta. Recolha a linha, senão o peixe se embaraça nela!
Mas o Gerôncio não largava. Conhecia o tamanho daqueles surubins do rebojo e, pelo tinido da linha, adivinhava o animal que o Dr. Paulo havia ferrado.
Tem perigo não, Dr. Paulo. Ei, linhinha macha! Fica pancrácio, fica, bigodeira de jauzão! Ixe, Nossa Senhora, bicho feroso este, cruz!
Linha às costas, agora, o peixe esbarrava velhaço, no centro do rebojo, onde a ventosa da água chupava irresistível como boca de sucuri. A vara envergava, envergava, ringia, estalava.
’guenta, doutor! Incomode com a canoa não isso é brinquedo para ela! Se entrar mais água, eu solto a poita...
Bicho desgraçado! O repuxo era tal que a canoa embicava, popa levantada, a proa apanhando água. Se o peixe se mantivesse empacado daquele jeito, que nem estorvo em boca de bueiro, o remédio era mesmo soltar a poita para aliviar a canoa e ficar rodando com ela por sobre o redemoinho, até que se cansasse e cuidasse de inventar outra moda. O tempo passava, Gerôncio sem se resolver alargar o companheiro, e a canoa pegando cada vez mais água.
Pode me largar, Gerôncio. Solte a poita!
Mas não foi preciso: o surubim desembestara, agora num volteio maluco de pião. Lá estava, porém, na argola de arame do cabresto, o girador. A linha de aço se destorcia quando chegava ali, afastando o perigo das crocas. Muito peixe escapa assim, em vara sem girador, a linha arrebentada no melhor da hora...
Tempão lutou o peixe antes de pranchear, entregue. A espaços apontava a cabeça à superfície todo feioso de pau preto para, em seguida, remergulhar num último desespero. A vara, porém, empinada, quase a prumo, obrigava-o mais e mais a acercar-se da canoa. Gerôncio deixara, afinal, Paulo gozar sozinho a luta com o surubim já dominado.
Me apanhe a carabina, Gerôncio. Tome a vara, tome...
O surubim boiou por derradeiro quando boiou bem no centro do rebojo, lá onde as espumas não chegavam. Paulo atirou. Bruto tiro de morteiro que quis ameaçar um ror de iguais respostas nos barrancos mas que mal deu em tímido pingue-pongue de ecos frouxos, porque molhados e apagados logo pela chuvinha que apertava.
"Vila dos Confins", José Olympio Editores - Rio de Janeiro, 2003, capítulo IV.
Mário de Ascenção Palmério, professor, educador, político e romancista, nasceu em Monte Carmelo, MG, em 10 de março de 1916. Fez seus estudos secundários no Colégio Diocesano de Uberaba e no Colégio Regina Pacis, de Araguari, licenciando-se em 1933. Em 1935, matriculou-se na Escola Militar de Realengo, no Rio, de onde se desligou, no ano seguinte, por motivos de saúde. Em 1936, ingressou no Banco Hipotecário e Agrícola de Minas Gerais, sendo designado para servir na sucursal de São Paulo. Lá, iniciou-se no magistério secundário, como professor de Matemática no Colégio Pan-Americano, passando a lecionar em outros estabelecimentos. Deixa o banco e dedica-se exclusivamente ao magistério. Em 1939, matriculou-se na seção de Matemática da Faculdade de Filosofia da Universidade de São Paulo, época em que passou a lecionar também no Colégio Universitário da Escola Politécnica, por nomeação do Governo daquele Estado. Tempos depois deixou São Paulo para abrir na cidade mineira de Uberaba o Liceu do Triângulo Mineiro.
Eleito deputado federal em 1950, e reeleito em 1954 e 1958, exerceu funções de destaque na Câmara dos Deputados.
Só aos 40 anos (1956) aparece seu primeiro livro, fruto de aventura intelectual cujo propósito era bem outro, isto é, a política. " ‘Vila dos confins’ nasceu relatório, cresceu crônica e acabou romance...", segundo confessa o próprio autor.
Seu espírito empreendedor levou-o a construir em Uberaba a Cidade Universitária em terreno de área superior a 300.000 metros quadrados, e o Hospital "Mário Palmério", da Associação de Combate ao Câncer do Brasil Central, maior nosocômio em todo o interior do Brasil.
Em setembro de 1962 foi nomeado pelo Presidente João Goulart para o cargo de Embaixador do Brasil junto ao Governo do Paraguai. Assumiu o posto em 10 de outubro do mesmo ano. Permaneceu nessa missão até abril de 1964; período em que marcou sua presença tanto no campo da diplomacia como no das atividades culturais naquele país.
De regresso ao Brasil isolou-se em sua fazenda São José da Cangalha — no sertão do Mato Grosso — e ali escreveu “Chapadão do Bugre”, romance para o qual vinha colhendo, desde o êxito de “Vila dos confins”, abundante material linguístico e de costumes regionais, e que recebeu de toda crítica os mais rasgados elogios. Lançado em outubro de 1966, o romance teve inúmeras edições.
Foi eleito para a Academia Brasileira de Letras, na Cadeira nº 2, sucedendo a Guimarães Rosa, em 4 de abril de 1968, e recebido em 22 de novembro de 1968, pelo acadêmico Cândido Mota Filho.
Durante vários anos viajou de barco pelo rio Amazonas e seus afluentes, levantando dados sobre a realidade física, social e cultural da Região Amazônica. Em 1987, deixou de vez o Amazonas e voltou a morar em Uberaba, como Presidente das Faculdades Integradas daquela cidade. Em 1988, recebeu a medalha Santos Dumont, conferida pelo Ministério da Aeronáutica.
Mário Palmério era casado com D. Cecília Arantes Palmério. Teve dois filhos: Marcelo e Marília.
O escritor faleceu em Uberaba (MG), no dia 24 de setembro de 1996.
OBRAS:
Vila dos confins, romance (1956)
Chapadão do Bugre, romance (1965)
O morro das sete voltas, romance (inédito)
Seleta... Organização, estudo e notas de Ivan Cavalcanti Proença (1974).
(Dados obtidos junto à Academia Brasileira de Letras).
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