A TERCEIRA MARGEM DO SILÊNCIO = RIO/ GUIMARÃES ROSA / ANÁLISE CRÍTICA POR JOSÉ FERNANDES / GOIÁS


Muito se tem falado sobre o conto A terceira margem do rio, de Guimarães Rosa. Muito se falará sobre o enigma de se colocar em viagem sem se ir a parte alguma. Trata-se de uma narrativa rica, aberta a inúmeras perspectivas do pensamento, seja sociológico, antropológico, filosófico, teosófico, estético, poético, seja lingüístico, simbólico, metafísico. Por isso, ainda se tem muito a falar sobre ele, sobretudo porque acreditamos quea terceira margem é muito mais profunda do que propuseram os críticos e hermeneutas até o momento. Não cremos que se trate de uma margem física, de uma profundidade que tenda para baixo, mas de uma profundidade vertical, tendente para o alto, que diz respeito a uma disposição metafísica do ser de que a personagem é um protótipo e, em certo sentido, até um arquétipo. Em decorrência, não podemos proceder a uma análise que se prenda apenas à superfície dos signos, mas temos de empreender uma leitura que chegue às camadas mais fundas da linguagem e da estrutura do discurso e que, em decorrência, examine aquela mensagem que se encontra mais no nível dos símbolos incorporados pelos objetos ao longo do tempo que pela expressão linguística que eles adquiriram enquanto língua. Assim, cremos, podemos atingir a essência desta narrativa intrigante, de personagens sem nome e de ato inconsequente, consoante a perspectiva dos olhos da matéria.

1 – As personagens

Entendemos por personagem de ficção o ser que age e pensa na qualidade de sujeito e de objeto da narrativa ou apenas o ser que, como objeto da história, é o foco dos fatos narrados, mas que, por alguma razão ôntica ou ontológica, não se manifesta em própria fala. Quando a personagem se posiciona como sujeito e como objeto, normalmente é também o ser que narra, que faz e é feito pela história, que domina a palavra, pois o tamanho do ser é o tamanho de sua linguagem. O pai, assim entendido, funciona como a personagem principal de A terceira margem do rio, mas pelas suas circunstâncias existenciais, não exercita uma fala autêntica, não dispõe de linguagem, uma vez que sua história é feita por outro, por um narrador que, a despeito de participar diretamente dos fatos, não alcança bem a razão de eles acontecerem daquele modo, consoante os propósitos do pai.

Chama-nos a atenção, também, neste conto, o fato de o narrador e de a personagem principal não serem nomeados, não disporem de um nome que os identifique. Se o nome confere essência ao ser nomeado, como já o dissera o velho Platão, não ter nome é o mesmo que encontrar-se destituído de essência. A atitude do pai — entrar em um barco para não ir a parte alguma — explica a necessidade imperiosa de imprimir um sentido à existência, de procurar uma forma de encontrar a sua identidade, de se afirmar como ser humano e assumir a subjetividade da história, mesmo sem narrá-la. As razões de ele não ter nome, na construtura da narrativa, se justificam pelo fato de o pai, a partir daquele momento, não encerrar apenas a personalidade de um ser determinado, mas de todo aquele que se propõe às mesmas condições existenciais: viajar à terceira margem, à verticalidade, à transfiguração e à transcendência do ser. A personagem, deste modo, insere-se numa dimensão simbólica, metafísica, sem os caracteres de um ente colocado no nível do meramente ôntico, do meramente físico. 

O fato de o pai não receber nome, entretanto, não elimina uma interpretação antropológica, ôntica, uma vez que, se efetuarmos uma leitura subliminar, veremos na decisão de tudo abandonar uma revolta contra a postura autoritária e nulificante da mulher. Assim, a consciência de uma ação inédita, conflitante com o senso comum, insensata, e empreender uma viagem inteiramente incompreendida, revestem-se de um duplo sentido. Para uns, apegados a uma percepção material da existência, ao lado visível da ação, apenas uma forma de perda do senso, uma forma de loucura. Estes são a maioria avassaladora; tanto que ninguém, nem mesmo o filho, compreendeu a sua atitude: colocar-se dentro de um barco para andar rio afora, rio adentro, sem um destino definido. 

Entanto, se interpretarmos esta viagem a nenhum lugar físico determinado como aquela viagem invisível ao interior de si mesmo, vista sob uma ótica metafísica, o ato de viajar, no sentido físico, se reveste de implicações mais profundas, pois insere a personagem, mesmo destituída de nome, numa dimensão que ultrapassa o meramente material e físico e introduz todas as atitudes do pai na Grande Viagem, a que os judeus chamam nasa’, (sn, — peregrinação ao interior de si mesmo —, percebida somente através de uma visão ontológica da existência. É sob esta perspectiva que o pai assume o status de personagem, de sujeito e de objeto da história. Posição incompreendida por todos os participes da narrativa, pois o homo viator, a despeito de ser uma condição do ser humano, em nenhuma narrativa literária e, notadamente, na realidade, é compreendido por seus semelhantes. 

Neste sentido, é preciso sentir a narrativa e perceber a personagem dentro de uma tradição cultural e teosófica, em que a viagem física, ou o estar em viagem, em peregrinação, implica uma travessia, uma transformação ocorrida, não, em dimensões físicas, mas em uma dimensão ontológica que compreende o ser em sua totalidade. Não é sem motivo que o filho, ao ver o pai erguer-se dentro do barco, percebe-o transfigurado, como se viesse do além. Ora, o estado de ser do pai desnorteia o personagem-narrador, à medida que ele se imaginava na hora de substituí-lo, mas não entendera as razões de ele haver se posto em viagem. Em decorrência, não percebera o ato de ele se pôr em pé. A confirmação da verticalidade metafísica o assustara de tal modo que ele se colocara em fuga, apavorado, pois pensara o pai apenas em sua velhice e, jamais, em uma dimensão que ultrapassasse os limites da matéria e chegasse ao sublime, entendido como superlativo do humano e, portanto, próximo ao divino.

Para melhor entendermos a subjetividade do pai e, em decorrência, a sua transformação, temos de verificar que a ausência de nome, a despeito de manifestar um estado de ente, no caso desta personagem, demonstra que a busca da identidade e, em conseqüência, do nome, implica um ato. Ora, o ato implica sempre a noção de vontade, de volição; mais que isso, de consciência plena do que se está fazendo ou buscando. É neste sentido que o pai não conquista um nome, mas uma condição que suplanta o nomear, à proporção que atinge a essência do ser. Ser e essência no fundo são a mesma coisa, uma vez que tanto o substantivo quanto o verbo são esse, ser, naquele sentido empregado por Iavé: Eu sou aquele que é, Ego sum qui sum. 

Se a personagem, representada pelo pai, configura um estado de ser que ascende à transcendência, a despeito da ausência do nome e de não assumir uma fala autêntica, o filho, por sua vez, dispõe de linguagem e registra a história do pai. Todavia, podemos dizer que ele se identifica como contraponto desarmônico do pai, à medida que, ao assumir a condição de sujeito da história, não o faz na plena consciência e no pleno domínio dos fatos; não adquire a estatura de personagem, entendida como aquele ser que evolui ao longo da narrativa. Configura-se, na verdade, como persona. A única ação que ele pratica com certa consciência, sem contrariar os desejos da mãe, é prover o pai do necessário à alimentação. Entretanto, se o não fizesse, não alteraria a decisão do pai, porquanto ele procura um outro tipo de alimento, uma outra dimensão de ser que não se insere na percepção e na compreensão do narrador, uma vez que sequer sabe como ele retirava o alimento do local em que o colocara. Esta percepção dos acontecimentos se fundamenta no fato de o narrador-personagem contraditoriamente relatar que o pai nunca mais saíra da barca. Ele não evolui ao longo da narrativa. Sequer no momento em que deseja substituir o pai, não o faz sabendo as razões de ele ter ficado no barco todo aquele tempo, uma vez que, para ele, tudo se passara em nível físico, em nível de ente, de objeto.

As ações do personagem-narrador se realizam no nível da matéria, como ser ôntico. Em momento algum ele pensou o pai em busca da terceira margem da existência. Se soubesse a necessidade da essência, o pai tê-lo-ia deixado segui-lo no instante da partida. Mas, sua solicitação não mereceu resposta. Necessitava de transformar-se em ato, em necessidade de haver a quididade, de dirigir-se à margem vertical do ser. Seria necessário que ele não se estarrecesse ante a atitude do pai. Ademais, a conquista da essência é inteiramente individual e, por isso, única. 

O susto que tivera no momento em que o pai se levantara, transformado e transfigurado, em vez de fazê-lo finalmente compreender as razões que o levaram àquele ato aparentemente insano, fá-lo cometer um desatino: sair correndo e abandonar a sua oportunidade de conquistar a essência do ser. Mesmo tendo a consciência do erro, claro mediante o pedido de perdão, ocorrido tempos depois, não elimina o seu estado de ente, de objeto, porquanto não dispôs da sabedoria e da disponibilidade necessárias à condição de assumir a subjetividade. Em conseqüência, não adquiriu a densidade ontológica necessária para exercer e exercitar a função de personagem. A despeito de ser o narrador, age e pensa como uma persona, como um objeto, tanto que, em um único momento de consciência metafísica, sente que é o que não foi, o que vai ficar calado. Pior, percebe que é tarde para tomar qualquer atitude existencial e, sobretudo, essencial. Resta-lhe pedir que, após a morte, depositem-no em uma canoinha de nada, nessa água que não pára, de longas beiras, pois não atingiu a profundidade do rio existencial.

Acontece, porém, que a conquista da essência não se faz com a ajuda de ninguém. Ela tem de ser ato, e ato compreende a participação direta da vontade que se renova a cada momento de ser. É algo continuado, como ocorreu a Riobaldo em Grande sertão: veredas. Ele começa sua transformação com a travessia do São Francisco, ainda menino, e a conquista durante toda a existência, até a descoberta total da essência, na travessia do Liso do Sussuarão. Ao narrador-personagem de A terceira margem do rio foi concedida esta possibilidade, como ocorre a Govinda, em Sidarta, mas, ao contrário da personagem de Hermann Hesse, ele não a enxergou, não se deu conta de que possuía uma dimensão metafísica que necessitava ser conquistada. Por isso, não obstante dizer e, eu, rio abaixo, rio a fora, rio a dentro — o rio, não atingirá a terceira margem, porque falido em suas tardias pretensões, falido em sua dimensão ontológica. O rio para ele se compõe apenas de duas margens e, em decorrência, não vivifica a existência e, muito menos, leva a personagem à essência. 

Se apenas na ótica da personagem, a narrativa já se revela extremamente profunda, na perspectiva da linguagem, responsável por essa revelação do enigma e do encanto de ser, ele se torna realmente singular, pois demonstra verdadeiramente o talento de quem sabe mistérios e encantamentos de palavras. Passemos e passeemos por esta transfiguração de ser em linguagem.

2 – A linguagem

A linguagem além de ser a maior invenção humana, é matéria de Ser e de Arte a ser lapidada ou apenas esculpida segundo necessidades impostas pelo próprio estado de ser e de arte a revelar-se ou a (des)velar-se. Há discursos literários que nos intrigam pelo jogo que o narrador faz com a linguagem a fim de que ela materialize um determinado estado de ser ou de existência do personagem. No caso de A terceira margem do rio, somos tocados, de imediato, pela troca inopinada dos pronomes de primeira pessoa do plural com a primeira pessoa do singular. Por que o narrador utiliza o pronome possessivo nosso, se o foco narrativo se centra no pronome eu? Seria apenas uma forma de o narrador falar em nome da família e da sociedade que presenciou os acontecimentos? Primeiramente, temos de observar que a primeira pessoa do plural, nas circunstâncias vivenciadas pelo narrador, constitui uma forma aparente de ele dividir a responsabilidade do relato e, em decorrência, também a responsabilidade da verdade inerente aos fatos e o estupor por ela provocado. Entretanto, trata-se uma tentativa frustrada, pois, ao final da narrativa o falimento, verdade referente à pessoa e à essência do narrador, recai sobre o ente por ele materializado.

Verificamos, deste modo, que, se o pronome de primeira pessoa do plural, nosso, representa a dissolução dos eus: o do narrador, o da irmã, o do irmão e o da própria mãe, coloca-os no mesmo nível de desentendimento e de reificação, quando relacionados ao pai. E, no caso do narrador, o vocábulo nosso revela a incapacidade de ele compreender o que se passa no íntimo do pai, ou de ver o invisível lado ontológico da existência, visualizado pelo abandono de tudo e pelo inteiro voltar-se para o lado metafísico, simbolizado pela ascensão à terceira margem.

O pronome de primeira pessoa do singular, por sua vez, vai correlacionar-se a uma tentativa de assumir a subjetividade da história e, em decorrência, de narrar sob a condição de sujeito. Entretanto, como o narrador não compreende a atitude do pai e, como conseqüência, não empreende a viagem ao interior de si mesmo, o pronome de primeira pessoa em vez de afirmar a subjetividade do narrador e, em conseqüência, ser a confirmação do sujeito falante, revela-se como a sua total negação, à medida que quem fala não é aquele que dispõe de essência, no sentido de compreensão e de assunção de um acontecimento que envolve a totalidade do ser. Principalmente, não é aquele que dispõe de identidade, de quididade metafísica. O filho narrador não compreendeu a atitude do pai, porque não dispunha de alcance ontológico para entender a terceira margem do ser, só possível mediante uma visão vertical da existência, voltada exclusivamente para a essência.

Aliado à primeira pessoa do plural, mas ainda mais impertinente e, por isso, mais reificante e até nulificante, coloca-se a expressão a gente, diluindo totalmente a individualidade do narrador e, conseqüentemente, a sua responsabilidade, como se ele tentasse narrar, mas sem assumir a culpa por não haver entendido o que o pai realmente desejava com aquela atitude. Ao colocar-se em terceira pessoa, através da utilização da expressão pobree indeterminante do eu, a gente, o narrador dilui a essência do falante e, conseqüentemente, passa a reproduzir uma fala irresponsável, in-autêntica. Em decorrência, também ele se insere na comunidade dos que não captaram o significado de alguém, à semelhança do que aconteceu com alguns santos, como São Francisco, abandonar tudo e viver apenas em função de um ideal de plenitude, de conquista da essência e da transcendência no Sublime. 

Para melhor compreendermos o que se passa com a utilização dos pronomes pelo narrador, temos de verificar as poucas palavras pronunciadas pela mãe ao saber da decisão do marido. A incompreensão da mãe e a conseqüente distância que se estabelece entre ela e o marido estão materializadas no vocábulo você. Quando ela diz Cê vai, ocê fique, você nunca volte!, observamos que a forma popular Cê materializa, semântica e socialmente, grau elevado de intimidade. Por outro lado, a expressão ocê, a despeito de encerrar poucas variações semânticas, se comparada com a primeira, colocada na seqüência, já demonstra certo distanciamento íntimo entre marido e mulher. A forma culta, você, usada em contraposição à linguagem popular, objetiva um estado de frieza, de afastamento que implica rompimento entre mulher e marido. Conseqüentemente, entre o pai e a família.

Deste modo, ao contrário do que costuma acontecer, quando se utiliza o tratamento de terceira pessoa, verificado na forma verbal, a fala da mulher não reserva nenhuma condescendência ao marido. O pronome você, aliada ao crescendum vocabular, resultante das apócopes e da determinação colocada na forma imperativa do verbo, nos fonemas que os constituem e também no crescendum silábico, em que o fonema [o] se avulta, em decorrência do fonema lateral [l], antecedido do advérbio de negação não, em que a nasal se alonga — Ce vai, ocê fique, você não volte —, além de demonstrar a autoridade da mãe, própria de uma sociedade matriarcal, consubstancia a total incompreensão do ato decisivo do marido e a impossibilidade de retorno, mesmo sendo sua decisão resoluta e irrevogável: buscar a terceira margem do rio da existência. 

A materialização do rompimento, grafada em negrito, manifesta também o estado de ente da mãe, à medida que a gradação vocabular, em vez de diminuir a pessoa do marido, coloca-a em um patamar que a mulher não consegue alcançar. A linguagem, no caso, exercita uma semântica contrária: a mulher se distancia do marido, à medida que pronuncia o pronome parte da sincope para a inteireza vocabular, e o ser do marido se essencializa, se transubstancia, mediante a essência da palavra que se avoluma e que encerra um simbolismo primordial, porque relacionado à grafia primeira: o hieróglifo. 

A fórmula sincopada Cê se compõe de dois fonemas que, segundo sua origem hieroglífica, se ligam à semântica do seco e do sopro. A letra [c], ao simbolizar as transformações por que o homem deve passar em sentido simbiótico e, no caso, inteiramente metafísico, a despeito de pronunciada pela mãe, materializa o estado de ser do marido. Antes, destituído de essência, mas que, em decorrência de uma viagem inteiramente voltada para o interior, alcança a terceira margem. Com relação à mulher, embora a semântica substantive a intimidade, traduz, na verdade, a insensibilidade com que se dirige o marido e, sobretudo, em relação ao que sua decisão representa em termos simbólicos. Sintomaticamente, a letra [e] consubstancia o significado de terceira margem, uma vez que ela simboliza a união do plano físico com o metafísico, a fim de se buscar um terceiro, relacionado ao sublime, ao teosófico. O acréscimo da letra [o] gerando o pronome pessoal, em sua conformação popular, ocê, confere à palavra e, como conseqüência, ao ser nomeado, a disposição necessária à recepção das forças cósmicas imprescindíveis à realização da tarefa ingente de superar o estado de matéria e inserir no transcendente. A regressão operada na formação do vocábulo, com o acréscimo da letra [v], confirma o estado de ente da mulher e o estado de ser em essência, do marido, pois esta letra possui os mesmos simbolismos que a letra [o]. Além disso, os dois fonemas acrescidos ao pronome cê possuem, intrinsecamente, o simbolismo do úmido inerente ao rio, à água. Ora, na concepção metafísica do conto, o úmido constituirá exatamente o estado de conformação da essência a que o pai está procurando e que não chega a ser entendida pelos familiares e pela vizinhança. O resultado é a partida sem resposta à ordem da mulher. Uma atitude seca que antecede à transformação do homem em ser úmido propício ao ser em essência.

Percebemos, deste modo, que o problema do ser, por se relacionar diretamente à viagem e ao mergulho dentro de si mesmo, em um discurso artístico, implica também uma travessia de linguagem pouco ou nada percebida em uma leitura de superfície. A terceira margem, simbolizada pelo rio, exige também uma terceira margem materializada em linguagem, uma vez que ela, além de revelar o ser, constitui o diálogo dele consigo mesmo na profundeza da própria substância do humano, pois o que existe é homem humano: travessia.

Em termos de linguagem e de revelação, o contraponto estabelecido entre a família, a comunidade e o pai, atinge a dimensão do tudo e do nada, do ser e do não-ser, porquanto o narrador, no momento duro da despedida, ao final da narrativa se descobre falido e se revela por intermédio da palavra falimento. Percebida sob uma ótica metafísica, trata-se de uma palavra extremamente forte, impiedosa, malevolente, à medida que se refere a um estado de ente, de objeto, que não conseguiu se construir, que não ascendeu à condição de sujeito da existência, que não soube viajar à própria essência e, em decorrência, não alcançou o nível do ser. No caso específico do narrador, não teve competência para entender e compreender, como ocorrerá com Sidarta, em relação a Govinda, a atitude de tudo abandonar, para mergulhar em si mesmo e empreender uma peregrinação dentro de si mesmo. Daí a confissão patética e tétrica feita por intermédio de uma linguagem violenta, malvada e maldita; mas suficiente para expressar e materializar o estado de ser da personagem-narrador: falimento. A pior sensação transmitida pelo narrador, com este vocábulo, se prende à noção de que ele não é digno de crédito, de confiança, porque, além de não penetrar nas intenções do pai, abandonou-o exatamente quando ele o acreditava pronto a substituí-lo na conquista, unicamente sua, da essência. 

Para uma narrativa profunda, uma linguagem igualmente profunda, porque espessa, carregada de simbolismos e de densidade ontológica. Exatamente por isso que não pode ser desbravada apenas em sua configuração física e, muito menos, em sua dimensão construtural, própria dos aspectos morfológicos, sintáticos e semânticos; mas na face oculta e mágica do metafísico e do estético, em que o homem ascende ao sublime.

3 – Linguagem simbólica

A linguagem literária não se define apenas como um conjunto de signos engenhosamente utilizados pelo ficcionista ou pelo poeta, a fim de produzir o belo e o prazer da leitura; compreende também uma gama de símbolos que se incorporam aos signos e os retira de sua órbita de palavra e os insere em uma dimensão simbiótica e semiosférica. O objetivo é produzir significados que se desprendem de construturas que ultrapassam os limites da palavra. A linguagem assim entendida pode atingir uma esfera que extrapola os níveis do discurso em si, uma vez que cada palavra-símbolo extravasa os limites do signo e se eleva à semiosfera do metafísico. Assim, o impacto causado à família no momento em que o pai abandona tudo e entra em um barco para ir a parte alguma, leva-nos a inferir que a palavra barco e o veículo por ela representado se revestem de um simbolismo singular e, por isso, inusitado. O barco passa a ser um instrumento simbólico de travessia existencial ao interior de si mesmo e, não, um mero meio de transporte às margens direita e esquerda do rio. A terceira margem a que ele leva não poderia ser captada por pessoas alheias ao processo, que viam nele apenas um veículo físico, uma forma inexplicável de o pai viver no rio, alheio ao que se passava com a família e com a sociedade. O barco, nas circunstâncias da narrativa, se converte em veículo da existência e, em decorrência, em objeto simbólico, necessário à transformação do ser, mediante uma viagem essencial.

A divergência entre o pai e a família se deve à falta de alcance e de conseqüente percepção da resolução tomada e do ato a ser praticado pela personagem. No momento em que o homo viator encalça o chapéu confirma-se a ação anunciada e o afastamento definitivo do pai, uma vez que o chapéu lhe confere, pelo seu simbolismo, uma posição superior e, em decorrência, ininteligível às pessoas ligadas apenas à matéria do existir. O chapéu, na simbologia assumida no discurso, representa justamente o homem que pensa e que traduz o pensamento em ação e em ato de ser e, não, mero objeto de proteção contra o sol ou a chuva. Assim, a prerrogativa de ser em essência, como implica a necessidade de a personagem pensar-se e pôr-se em viagem, exige o uso do chapéu, como a diferenciar o ser em travessia dos entes que apenas estão em existência.

O uso do chapéu ressaltado pelo narrador evidencia o caráter iniciático da viagem, uma vez que ele, conforme nos expõe Chevallier e Gheerbrant (1988, 222) se liga à imagem de raios e de luz, imprescindíveis a quem se propõe uma mudança existencial, como o faz a personagem deste conto. A luz, como se verá ao final, constitui exatamente a comprovação, aos olhos do narrador, de que alguma coisa incomum acontecera ao pai. Uma transfiguração que assustará tanto o filho, que ele se colocará em fuga, apatetado.

Ao ligar-se simbolicamente àquele que tem cabeça e capacidade de pensar, o chapéu distingue o pai dos demais membros da família, notadamente da mulher e do narrador, à medida que, sem dar-lhe qualquer explicação parte em busca de sua identidade, mesmo que para isso tenha de passar anos dentro do barco, a fim de proceder à travessia e, de forma indireta, verificar se é possível que alguém capte as razões de seu aparente desatino. A relevância do pensamento além de afastar o marido da mulher, leva também o narrador à incompreensão dos fatos narrados, porque incapaz de atinar com a verdade que impulsiona o pai àquela viagem a lugar algum. A verdade, também simbolizada pelo chapéu, fica clara, à proporção que ela encerra predicados só inerentes a quem pensa a existência. Por isso, a verdade da mãe e do narrador, principalmente, não é a verdade do pai, colocado em um nível realmente distinto das personas e figurantes que perfazem a história registrada. O jogo simbólico da narrativa atinge as personagens e, de certa forma, também o leitor, perplexo ante uma atitude que lhe parece inconsequente.

A verdade do pai se revela tão sólida que, mesmo após anos dentro do rio, permanece com o chapéu na cabeça, como a dizer que nada mudou em relação às suas pretensões e, sobretudo, com relação aos seus pensamentos. Era uma espécie de senha dirigida principalmente ao filho que, mesmo passado o tempo, continuava sem entender as razões que levaram o pai àquela decisão. O simbolismo do chapéu, nestas circunstâncias, torna a linguagem mais densa e, em decorrência, ontológica, e confere ao discurso um status inexistente apenas no nível do signo verbal. 

A superioridade metafísica do pai pode ser verificada, ainda, pela maneira como ele parte, sem nada responder às palavras duras da mulher: Cê vai, ocê fique, você não volte, como se elas não lhe dissessem respeito. Elas manifestam exatamente o seu estado de ente, voltado apenas para a dimensão ôntica da existência. Ao negar resposta à mulher e à família, à medida que todos esperavam que falasse alguma coisa, que justificasse a sua atitude, deixa claro que suas palavras seriam inúteis, pois ninguém as compreenderia. Não se devem jogar palavras fora. A sua mudez prova que o ato de colocar-se em travessia explica-se por si mesmo, pois é absurdo aos olhos de quem o vê partir para lugar algum. Despedir-se somente do filho, pondo-lhe a bênção, confere a ele uma espécie de deferência. Mesmo sem nada entender, irá registrar o acontecido, a fim de que este fato incomum seja conhecido por outras pessoas que poderão compreendê-lo em outros tempos e lugares. A despeito de o filho ser o narrador, narra como se fosse mudo, porque suas palavras soam como se não fossem pronunciadas. Esta dimensão do discurso condiz com o absurdo da situação, uma vez que, como bem o diz Albert Camus, o absurdo trata de ser mudo. Posição confirmada pelo pai, que não emite palavra alguma, como a falar para dentro, na dimensão do pensamento, da essência da linguagem. 

A escolha efetuada pelo personagem, colocar-se em uma canoa, dentro de um rio, demonstra um saber que só ele possuía, a sabedoria do rio, o eterno fluir das águas em direção ao mar, à existência em plenitude. Se em Grande sertão: veredas, Riobaldo atravessa o São Francisco de uma margem a outra e se transforma, perdendo o medo de enfrentar os perigos do existir, em A terceira margem do rio, permanecer no rio, sem ir a parte alguma, representa uma travessia maior, verificada, no caso de Riobaldo, somente no ocaso da vida. O pai sabia-se em transfiguração, em conjunção com as águas que levam a margem terceira do rio existencial, pois é ele um Caronte que transporta a si mesmo ao mundo dos que captam a plenitude do ser: aquele que é, no sentido tomista de esse e, não, de ens, de coisa. 

O interessante nessa narrativa são as direções diversas materializadas pelo rio. Enquanto, para o pai, ele simboliza a passagem para um estágio superior do ser, o fluir para a essência; para o filho, o símbolo se coloca em uma posição contrária, a permanência do estatus quo, ou seja, uma viagem efetuada post mortem, sem a vivificação e a transfiguração do ser, porque permaneceu na mesma margem existencial. 

É assim entendido que o pai não irá a parte alguma, porque este barco não o leva ao outro lado do rio, mas ao outro lado de si mesmo. A passagem, neste sentido, não se opera em termos físicos, mas em uma dimensão que compreende uma viagem a um mundo diverso do meramente material. O resultado é a transfiguração, palavra que envolve forte simbolismo, uma vez que revela a outra face do ser que ultrapassa os seus limites e se insere na esfera do sublime, à medida que transcende o estado de coisa, de objeto, inerente à condição humana. A elevação do ser a um plano metafísico é percebida pela estupefação e pelo desatino causado ao narrador ao perceber que o pai parecia ter vindo da parte de além:

Ele me escutou. Ficou em pé. Manejouremo n’água, proava para cá, concordado. E eu tremi, profundo, de repente: porque, antes ele tinha levantado o braço e feito um saudar de gesto — o primeiro, depois de tamanhos anos decorridos! E eu não podia... Por favor, arrepiados os cabelos, corri, fugi, me tirei de lá, num procedimento desatinado. Porquanto que ele me pareceu vir: da parte de além. E estou pedindo, pedindo, pedindo um perdão.

A luminescência, própria de quem está no além, demonstra as transformações por que o pai passara. O estar no rio fora apenas o ritual para que a passagem se processasse. Além da transfiguração, assustadora aos olhos e às palavras do narrador, o fato de ele ficar em pé, após tantos anos, materializa, como que com o dedo, a verticalização, a transcendência, a sublimização do efêmero, do limitado. A verticalidade, aliada à luz, configuram a ascensão do ente, do objeto, ao ser, à essência. Este estado de ser, para o filho, que se encontra no nível da matéria, é apavorante, a ponto de ele se colocar em fuga desatinada.

Sob este aspecto o símbolo maior do conto, sem dúvida, é o rio, à medida que ele representa, em uma espécie de imagem hídrica, a caminhada do ser humano dentro de si mesmo, porquanto as águas sempre vão e voltam, como se não saíssem do lugar. É exatamente por isso, que a personagem entra no barco para não ir parte alguma, uma vez que caminha dentro de si mesma, como o fazem as águas do rio. O sentido simbólico desse conto é realmente profundo, realmente metafisico e, por isso, incompreendido pelo filho, pela família e pela sociedade que pensa apenas a superfície do ser. É por isso que o narrador narra apenas o acontecido, sem entender a fundura de seu registro verbal, sem captar a essência de sua linguagem.

4 – O narrador

Os pronomes e expressões de tratamento utilizados na narrativa fazem do narrador de A terceira margem do rio uma figura intrigante e, sob certo sentido, insólita. Ele narra como se não quisesse ou não pudesse narrar, mediante a utilização do pronome possessivo nosso. Não bastasse o sentido coletivo do vocábulo, acrescenta, logo ao inicio, a opinião das outras pessoas sobre a figura do pai: (...) pelo que testemunharam as diversas sensatas pessoas, quando indaguei a informação. Decorrência da incompreensão da decisão do pai, viajar sem ir a parte alguma, ele narra como se tivesse medo de revelar alguma coisa interdita, medo de proferir alguma palavra que ferisse a verdade ou que dissesse o que não deveria ser dito. Narra jogando a responsabilidade do relato de episódios ou da própria personalidade do pai sobre a família toda e até sobre pessoas que conviveram com o pai ou que eram mais velhas, e podiam confirmar o seu relato. O desconhecimento da verdade que envolve o acontecimento sobre que narra e, principalmente a ignorância de si mesmo, implica também a incerteza relativa aos fatos, obrigando-se a valer-se de opiniões alheias. Este procedimento constitui uma forma inteligente de eximir-se da verdade, porque a dilui nas varias “fala” de que sabemos através do próprio narrador e, ao mesmo tempo, condensa-a na pessoa do pai que apenas navega no rio a dentro, no rio afora de si mesmo.

Não bastasse este procedimento, ele ainda se exime da responsabilidade do discurso, ao utilizar a deplorável expressão de tratamento a gente, que indetermina a identidade e a subjetividade do falante. A expressão a gente, em termos ontológicos, representa a mais concreta e perceptível forma de reificação, à medida que o narrador, ao proferi-la, pratica o ato da fala como se o não praticasse, porque não se revela na qualidade de sujeito de uma fala autêntica. 

Como se trata de um narrador que não dispõe de subjetividade e é obrigado, pelas circunstâncias dos acontecimentos, a narrar em primeira pessoa do singular, procura, na medida do possível, fugir dela ou assumir, de fato, o estado de objeto que se reconhece ser. Em decorrência, o uso do pronome pessoal eu em vez de recuperar-lhe a posição de sujeito do discurso e permitir-lhe falar como aquele que sopra, que emite parcelas de alma a cada palavra pronunciada, nega-se. Ou melhor, afirma-se como objeto, como o que não foi, o que vai ficar calado. Trata-se, porém, de uma afirmação que é insólita negação, porquanto revela um estado consciente de quem reconhece a incapacidade de ser. Neste sentido, a linguagem que seria a revelação do ser, passa a ser a revelação do não-ser, do nada, sendo e existindo.

Este estado de não-ser se revela, primeiramente, pelo fato de o narrador não entender o que se passa com o pai, dando a conhecer apenas superficialmente o que lhe ocorrera, deixando escapar as razões que o levaram ao extremo de viver dentro de um barco. Mais que isso; não sabe a fundo os motivos de uma viagem tão importante como remar e perscrutar os meandros do rio da existência. Quando a memória se revolveu e percebeu que alguém poderia revelar detalhes do que levara o pai a solicitar a fabricação de um barquinho de nada, o carapina já havia morrido, levando consigo a verdade. Segundo, falta densidade metafísica ao narrador, porque, quando decide assumir o lugar do pai, não o faz porque houvera entendido as razões que o levaram a viajar pelo rio, à procura de sua terceira margem, mas porque o acreditava já velho e destituído de forças para remar. Não entendia que remar a existência não é a mesma coisa que remar pelo rio. O ato de remar era muito mais profundo do que ele podia supor. Remar pelo rio é dirigir-se à terceira margem, é mergulhar dentro de si mesmo, procedendo a peregrinatio, como o fizeram todos os grandes heróis das grandes mitologias e da literatura. 

A existência do narrador se revela em total falimento, porquanto viveu apenas para atender ao lado material do pai que, ao partir, não revelara qualquer preocupação com a subsistência. O narrador não enxergou nada de superior no ato de ele assumir as bagagens da existência e navegar com elas rumo à terceira margem. Pensava que entraria no barco apenas para substituir o pai, que imaginava já sem forças para remar e, não, para transfigurar-se, para verticalizar-se. Por isso, tremeu e fugiu não tanto pela responsabilidade de entrar no barco, mas porque o pai pareceu-lhe vir da parte do além. Só neste momento é que ele percebeu que o pai se transformara, procedera a uma travessia que implicara uma transfiguração, uma viagem ao interior de si mesmo.

Em decorrência de seu falimento, o narrador deverá ser aquele que ficará calado. O que é ficar calado? É encerrar-se no próprio nada, sem condições de ascender à terceira margem, sem condições de ser e, portanto, de revelar-se. Por isso, em vez de assumir a sua viagem e construir o barco para a travessia, pede que lhe coloquem em uma canoinha de nada, após a morte. O barco que leva à terceira margem, porém, não deve carregar um morto, uma vez que o rio só pode vivificar o que está vivo e que tem consciência do viver e do ser.

De qualquer maneira, o narrador, embora tardiamente, toma consciência da importância do rio e suas margens, notadamente a margem de dentro, aquela que sobe em direção ao além, ou à essência. Entanto, esta consciência remota não lhe resgata a positividade do eu, e a narrativa permanece nos limites do nada. Tanto que o narrador é inominado, porque inteiramente falido.

5 – A viagem

O tema da viagem, além de se aliar à trajetória existencial do ser, conjuga-se ao lado mais fundo do humano, à medida que se insere na dimensão ontológica dos símbolos. Na mitologia greco-latina, todas as almas empreendiam uma viagem sem retorno ao Hades, tendo de atravessar os rios Estige e Letes. Algumas figuras mítico-literárias, ainda em existência, viajaram, mediante um enigma tomado aos deuses, ou a si mesmas, e retornaram inteiramente outras, como ocorreu a Ulisses ou a Enéas nas epopeias clássicas. O próprio Cristo, herói épico e trágico por excelência, passou por lá após a morte e voltou inteiramente transfigurado e transubstanciado.

Com as mesmas singularidades míticas ou metafísicas, também as viagens pelos mares, pelos rios, pelos desertos ou pelo sertão, no sentido físico, irão inserir-se em uma dimensão ontológica que atinge toda a essência do ser viator. A travessia física implica uma viagem ao interior de si mesmo, uma peregrinatio, a que os judeus chamam nasa’, diferente da pessach, efetuada mais no sentido teosófico, para lembrar a travessia do Mar Vermelho Na literatura universal, obras inúmeras exploram este veio, como Sidarta, de Hermann Hesse. Temos a impressão, no entanto, de que o conto A terceira margem do rio, por ser mais denso e jogar mais com os simbolismos da linguagem, dos objetos e dos gestos, imprime à travessia um sentido ontológico mais profundo, graças, principalmente, ao contraste que se estabelece entre pai e filho, entre o que permaneceu imóvel e o que se empenhou em peregrinar por dentro de si mesmo, transfigurando-se, à medida que se tornou inteiramente outro.

A precariedade existencial da personagem-narrador se assemelha à de Sidarta, com a diferença de Sidarta ter medo de si mesmo e, em conseqüência, fugira de si mesmo para se encontrar, e o narrador não chegar a se compreender e, por isso, foge do pai, de sua transfiguração, de sua luminescência. A fuga é a imagem de seu falimento. A vida hedonista que Sidarta levara, após abandonar os samanas, vai levá-lo a encontrar o Om, a perfeição, enquanto o narrador, sem entender a viagem do pai à conquista da essência, foge desatinado. A personagem-narrador somente existiu, como as coisas existem. A simetria entre as quatro personagens se desfaz à proporção que Govinda e o pai operam uma passagem, uma transformação típica de seres que se transfiguram, enquanto Sidarta, mesmo no ocaso da vida, reconhece-se tolo, à medida que abandonara o que mais sabia fazer — jejuar, esperar e pensar — e inicia a sua travessia, o narrador nada faz. Apenas se acredita em condições de substituir o pai, mas sem saber como e por quê. Por isso, ao percebê-lo em uma outra dimensão, sente medo, coloca-se em fuga, apavorado diante da verticalização e das transformações por que o pai passara, ao ponto de parecer-lhe ter vindo da parte de além.

A personagem de A terceira margem do rio, ao empreender esta viagem, contra tudo e contra todos, procura o próprio centro, uma vez que as circunstâncias de conviver com pessoas que o não compreendiam, implicava-lhe a perda da essência, do centro sobre que o ser gravita metafisicamente. O encontro do ser com o centro ocorre mediante transformações operadas na quididade mesma da personagem. Como conseqüência, o narrador, como testemunha do fato, percebe-o em uma dimensão diversa daquela com que se acostumara. 

Observamos, deste modo, que Govinda e o pai prepararam-se para chegar a um estado de ser em que cada um pode ser chamado aquele que é, porque não se contentaram apenas com o serem lançados na existência, com a condição de entes, de coisas-ante-os-olhos e se puseram à conquista do ser, da essência que os diferenciam dos demais entes. O narrador e Sidarta, por sua vez, não se prepararam. O primeiro, como se manteve no nível do ente, do objeto, foge à possibilidade de se colocar em vir a ser, enquanto o segundo, ao se pôr a remar, parte para a conquista da essência, pois não tivera medo de ver Govinda transfigurado e, muito menos, de substituí-lo na condução do barco.

O fato de o pai ser encontrado pelo narrador à distância de grito simboliza o final da viagem, uma vez que atingira o seu objetivo, mediante esse deslocamento ao longo do rio, para não ir a parte alguma, porquanto viajara em torno de si mesmo, ou dentro de si mesmo, como ocorre na metafísica oriental. Os anos que a personagem passara no rio, neste caso, funcionam como progressão ontológica, uma vez que a travessia não se opera em um átimo de tempo, mas demanda toda a existência; daí o sentido de peregrinação. Todas as personagens que empreenderam viagens ao interior de si mesmas, geralmente procederam a mais de um ritual, como o vemos nas epopeias antigas e modernas, como o próprio Grande sertão: veredas, em que Riobaldo empreende várias travessias, antes da grande viagem pelo Liso do Sussuarão. É por isso que o sertão, ser tão, é sempre, do mesmo modo que o rio, imagem presente em inúmeras obras literárias, além da guimarosiana, simboliza a viagem em si mesmo.

Esse conto, aparentemente, despretensioso, a despeito de possibilitar leituras várias, apresenta, segundo a nossa visão hermenêutica, uma profundidade metafisica singular, tanto pela dimensão metafisica da personagem, quanto, sobretudo, pela dimensão ontológica da linguagem, à medida que se tem um narrador que narra o que não sabe, mas registra, sem o querer, a história de um ser arquetípico, porque sem nome, que representa, de forma indireta, todo ser que empreende, de forma consciente, a viagem existencial em busca da essência, em busca da substância do humano. Isso é obra de quem realmente conhece a arte literária desde a sua essência, e o homem, desde dentro. Esse é Guimarães Rosa! 

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http://www.poetacriticojf.blogspot.com.br/

AO MEU AMIGO JOSÉ FERNANDES, MEUS SINCEROS AGRADECIMENTOS POR ME PROPORCIONAR TÃO ENRIQUECEDORA LEITURA.
GRANDE ABRAÇO! 



1 comentários:

Vanice Zimerman disse...

Boa noite José Fernandes, gostei da sua análise e aprendi muito com ela. Parabéns pelo estilo de analisar, e escrever, mantendo a atenção e curiosidade leitor. Obrigada, abraços, Van Zimerman.

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