Parte 2
Como foi lembrado na primeira parte deste ensaio, o capítulo “História do Humanismo e das Renascenças”, excluído da segunda edição da “História da Literatura Ocidental”, foi substituído por outro, “O Cristianismo e o mundo”, já este menos especulativo e submisso ao critério dos demais; no dizer do autor, dentro da “sistemática” do conjunto. Apresenta os escritores marcantes do século 5, d.C., quando se criou “uma das maiores obras, das mais permanentes da literatura universal de todos os tempos: a liturgia romana”. São grandes teólogos de poesia revelada, como Tertuliano, Ambrósio e Jerônimo.
Carpeaux não escreve monografias, incompatíveis com o escopo de uma síntese, mesmo que, no caso, elas permitissem um exame mais circunstanciado da produção em evidência. Mas a forma de exposição não é decisiva e sim a descoberta: é ela que torna este capítulo a contribuição crítica mais fecunda e original do livro de Carpeaux. A opinião se sustenta numa passagem de Franklin de Oliveira: “Em face do hinário e da liturgia romana, a posição de Otto Maria Carpeaux é idêntica, metodologicamente falando, à que assumira em face do direito romano. Se a importância do direito romano já foi focalizada por diversos ‘romanistas’, no caso da liturgia romana a glória da descoberta lhe pertence por inteiro”.
Um achado tal já não interessa apenas a nós outros; aliás, diz menos respeito à nossa do que à cultura europeia. Por aí se nota que o alcance universal da “História da Literatura Ocidental” não é falso proselitismo. Se se pretende deduzir a originalidade do autor, ela há de ser encontrada aqui, tanto quando, em meu entender, na particularíssima extensão conferida ao conceito de Ocidente — que não se conclui com o que foi exposto, até o momento: digamos, um conceito dinâmico, “histórico”. Completa-o o conceito estrutural ou “geográfico”, que resumiremos a seguir. Não menos digno de nota é o fato de que análise estilística, combinada à análise ideológica, em crítica literária, foi adotada por diversos especialistas antes de Carpeaux, como Karl Vossler, Leo Spitzer e Dámaso Alonso. Porém, “só a historiografia ainda não entrou nessa combinação feliz”, avisa o ensaísta em flagrante auto-elogio, quando já introduzia sua obra, inteiramente arquitetada sob aquele instrumental teórico-metodológico. É um divisor de águas mais ambicioso que Valbuena Prat, que escreveu uma história da literatura espanhola ensaiando a adoção de semelhante método.
Prefiro tratar este homem — que foi também crítico, jornalista e polígrafo — como historiador, por razões que me parecem óbvias. Me aprofundarei nos seus aspectos historiográficos em outro ensaio que estou escrevendo. Por hora, basta reafirmar o que o autor registrou, com discernimento: a “História da Literatura Ocidental” é a “apresentação da história literária como interpretação histórica”. Ele não se interessa pela origem individual das obras (objeto da crítica literária). Interessa-lhe traçar, por meio da combinação daquelas análises, a relação histórica entre elas, em função de um “espírito objetivo” de natureza supra-individual (objeto possível da história). Como tal, a “História da Literatura Ocidental” é uma obra de síntese coletiva, de corte transversal e de revisão, “substituindo, em todos os pontos particulares, as ‘fables convenues’ da rotina pelos resultados da análise estilística e da análise sociológica”. Para tanto substitui o naturalismo de Saint-Beuve (crítica biográfica) pela psicologia compreensiva de Wilhelm Dilthey, de forma que a documentação histórica e não os indivíduos constrói tipos ideais que representam a “estrutura psicológica total de determinada época”: “Desta maneira construíram-se panoramas históricos de perspectiva e profundidade inéditas, ‘verdadeiros cortes transversais’ através das épocas”.
Levadas ao extremo, as consequências dessa perspectiva foram realmente inéditas. A transversalidade ampliou, e muito, o conceito de Ocidente, significando a sincronia do mesmo conteúdo mental nas mais variadas culturas do hemisfério. E aí é preciso completar o que foi escrito até aqui, dizendo o que o Ocidente comporta, em termos literários. Um dos traços inconfundíveis da “História da Literatura Ocidental” é, me parece, a ampliação das fronteiras literárias do mundo e seu reconhecimento crítico definitivo. Em “O Cânone Ocidental” Harold Bloom falou em balcanização, termo que designa o estado do ensino das letras há quase 20 anos, de “fragmentação” do gosto a ponto de assimilar a pseudo-literatura, apenas para satisfazer gêneros e minorias, independentemente das qualidades estéticas. É preciso evitar confusões. Aqui, está claro, não se trata de balcanização. O reconhecimento da alta literatura de um Juan Carlos Onetti não é nunca um favor, uma concessão fora dos critérios usuais da crítica mais exigente. E é disso que se trata: de reconhecer na tradição ocidental outras tantas literaturas, ao lado das mais divulgadas e comentadas, que são a inglesa, a francesa, a russa, a espanhola, a norte-americana e a italiana.
Mais de meio século depois de seu lançamento editorial, seria impensável excluir da “História da Literatura Ocidental” a literatura africana, chancelada por nomes de alta qualidade como Nadine Gordimer, J.M. Coetzee, Wole Soyinka, Naguib Mahfouz, Mia Couto, Pepetela e tantos outros. E, mesmo assim, é considerável o que Carpeaux conseguiu abarcar, a partir do método apropriado, que lhe garantiu a coerência interna da síntese pretendida. As características deste método pessoal são três: primeiro, a abolição das fronteiras nacionais (para dar conta da multiplicidade do assunto e ao mesmo tempo das literaturas “europeia” e “americana”). Segundo, a substituição de “nações e autores” por “estilos e obras”, dentro dos períodos consagrados pela tradição; terceiro, a discussão sobre o intercâmbio entre literatura e sociedade (a interdependência dos fatores espirituais com os materiais, onde antevê o calcanhar de Aquiles da “História da Literatura Ocidental” e antecipa-se às censuras futuras por causa de um ecletismo “incapaz de decidir-se”, mas que deve aos limites do relativismo historicista). O aspecto que por hora me interessa é o primeiro, uma vez que que a literatura universal “não pode limitar-se às chamadas ‘grandes’ literaturas: grega, romana, italiana, espanhola, francesa, inglesa, alemã, russa. Entende-se, sem discussão, a inclusão das literaturas escandinavas (...); depois, de mais três literaturas, tão tradicionais como aquelas: a portuguesa, a holandesa e a polonesa; depois, das literaturas provençal e catalã (...); depois, dos ramos americanos de algumas literaturas europeias: a norte-americana e a brasileira. Quem não ignora o assunto não discutirá a necessidade de estudar também as literaturas tcheca e húngara”.
Por um erro de avaliação, estamos acostumados a perceber a Europa e os Estados Unidos como unidades autônomas de criação espiritual, de onde importamos sistemas filosóficos e conceitos científicos acabados, de aplicação sempre duvidosa porque artificial. Tornamo-nos, em comparação, reflexos pálidos e sem interesse, incapazes de gerar valores substanciais, julgamento que se estende aos nossos padrões estéticos. Em filosofia tornamo-nos comentaristas. Falta-nos descobrir nossa essência e com ela moldar uma compreensão do mundo que seja a tradução de nosso ethos, como foi o Pragmatismo de William James para o espírito norte-americano. George Steiner, em “Tolstói ou Dostoiévski”, soube compreender o que torna as literaturas russa e estadunidense tão autênticas e até mais fortes, segundo ele, do que a europeia, num nível que provavelmente ainda não alcançamos, e seus argumentos são plenamente aceitáveis. Fundamentalmente, o que caracteriza Balzac e Flaubert, Dickens e Zola é o realismo como retrato secularista e desumano dos indivíduos, em um mundo deslumbrado com a técnica. O oposto é o gnosticismo de Tolstói e Dostoiévski, Melville e Hawthorne, cheio de vitalidade e ávido pelo sagrado.
Fora disso, não cabe mais censurar as fontes estrangeiras como fermento legítimo, à disposição de qualquer espírito criativo em qualquer lugar, sobretudo em sociedades multiculturais como as de hoje. A “História da Literatura Ocidental” não oferece nada de novo a respeito do assunto “influência”, mas permite compreender, com clareza absoluta e abundância de exemplos, como ela é intensa entre os chamados “povos civilizados”, desde sempre.
Exemplo disso foi a assídua imitação que os românticos espanhóis fizeram do teatro de Alexandre Dumas (pai) e Victor Hugo, “tomando-lhe emprestados os conflitos espetaculares, a eloquência torrencial, os efeitos melodramáticos e, embora nem sempre, a tendência liberal”. O teatro de Zorrilla teria mesmo “nacionalizado” tais influências. Na Alemanha, os irmãos Schlegel cumpriram o papel de verdadeiros “importadores culturais”, dispondo para o seu país, em traduções, obras de Camões, Shakespeare, Petrarca, Lope de Vega e tantos outros poetas de outras terras. August Schlegel, inversamente, influencia grandes franceses como Hugo e Stendhal, em reação ao classicismo, tanto quanto Manzoni, na Itália. As traduções que os irmãos levaram a cabo culminam na criação de uma Weltliteratur (literatura universal em língua alemã): “A leitura das grandes obras de poesia medieval, renascentista e barroca tinha o valor de um narcótico produzindo sonhos pitorescos”, numa referência ao evasionismo motivado pelas guerras napoleônicas para “outros mundos, remotos e longínquos”.
Influência é o tipo de coisa diante da qual não é possível se isolar, venha de onde vier: todas as literaturas ocidentais, rigorosamente falando, resultaram de permutas espirituais com o universo exterior, transformando a herança em manifestações de cor local. A criação do Ocidente é um comércio perpétuo entre sociedades tão diferentes como a portuguesa e a alemã, a alemã e a italiana, a italiana e a inglesa, a inglesa e a francesa — e custaria apenas o impulso das grandes navegações, a partir do século 14, para que, também, se tornasse uma troca fecunda entre europeus e americanos. A chave do problema encontra-se na seguinte constatação: “O fato de, durante treze séculos, o critério da nossa civilização não ser imanente, mas encontrar-se fora, numa outra civilização, alheia e já passada, é a marca mais característica da civilização ocidental”.
A marca das américas é também a marca da velha e orgulhosa Europa, que um dia pretendeu guiar o mundo. Relativiza-se, deste modo, a importância das polêmicas, sempre existentes, sobre o que é transplantado e o que é autêntico. Polêmicas assim são muito comuns quando se discute a natureza do Modernismo de 22, no Brasil, explicando reações impossíveis como o movimento Armorial, de Ariano Suassuna, pretensamente mais puro e mais brasileiro. O segredo a intuir é que se a civilização europeia não é imanente “no tempo”, a das américas não é fundamentalmente imanente “no espaço”, diferença crucial entre uma e outra. Mas o critério da civilização americana é muito parecido com o do velho mundo, uma vez que consiste em buscar “de fora” — seja na África ou no Velho Mundo — os elementos fundamentais de sua constituição espiritual. Na transição entre a Antiguidade e a Idade Moderna europeia, esse “de fora” é o mesmo que “passado”, ao passo que na transição entre Europa e as Américas significa exatamente o “distante”. Aqui o externo é uma relação “sincrônica” entre dois mundos, lá uma relação “diacrônica” entre dois momentos.
As bases antigas do pensamento europeu disseminaram-se de regiões muito específicas como Grécia, Palestina e Roma para países inteiros, primeiro latinos e depois germânicos, e daí conformaram todo o continente, que tampouco foi uma ilha isolada, em qualquer momento de sua história. É inegável que a unidade geográfica estimula uma percepção estática e unitária (porém enganosa) dos povos europeus. A partir do século 15 eles encarregam-se de exportar suas estruturas conceituais, inclusive estéticas, para os lugares mais remotos que encontraram, fora do seu território. O hemisfério se alargara nesse movimento, até incluir as américas, e não faria mais sentido permanecer ignorando metade dele. Mas foi preciso a inteligência de Carpeaux para se admitir o óbvio: a continuidade essencial entre esses dois mundos, estabelecendo entre eles uma “encheiresis”, isto é, a ligação espiritual que os une. Com ele o Ocidente adquire feições inéditas, numa mudança contínua da própria imagem.
“História da Literatura Ocidental” ainda aguarda uma edição de alto nível, e quem sabe, superadas as disputas institucionais com Afrânio Coutinho nos anos 1950 e 60, o reconhecimento da universidade pública brasileira. Carece de uma revisão que a torne acessível para estudantes e para o leitor médio. Tem minúsculos mas persistentes erros de revisão, e sua ortografia é ultrapassada. Sem contar que é necessário rever não apenas seus galicismos, mas principalmente tornar bilíngue todos os poemas e citações que o autor, preocupado com a fidelidade do texto, preservou no idioma original: em francês, inglês, italiano, espanhol e alemão. Não sei se justifica, pois nem todos poderão usufruí-los assim, para tirar suas próprias conclusões semiológicas. É do poeta e amigo Ivan Junqueira o testemunho de que dominava pelo menos 15 idiomas (“Mestre Carpeaux”, em “Ensaios Reunidos”, volume II), mas ele não poderia exigir do leitor a mesma capacidade. Tais detalhes restringem drasticamente seu público, obrigando que a eventual reedição da “História da Literatura Ocidental” passe pelo acréscimo salutar das transposições linguísticas.
Carpeaux é nosso Marcus Fabius Quintilianus (sec. I da Era Cristã), seu mais antigo precursor. Coube àquele antigo professor romano a tarefa pessoal de organizar, para o ensino do aluno de retórica, a primeira “relação de livros-modelos” que se tem notícia na história das letras, instituindo um “código de valores”, expressão associada à tradição e hoje tão nostálgica, maculada por nosso desdém futurista. A motivação pioneira do professor romano foi muito particular e é digna de nota: a decadência estilística e moral dos contemporâneos, na transição entre Nero e Vespasiano. As indicações quintilianas, com o objetivo pragmático de “salvar da destruição pelos bárbaros os tesouros literários do passado”, consolidaram um padrão cultural seguido por monges, humanistas e modernos, sempre que a sociedade entrou em épocas de crise. Para sempre, desde a Idade Antiga, o termo “barbaridade” está no subconsciente da humanidade associado à violência, e neste século a violência está, segundo Carpeaux, associada ao proletariado intelectual constituído pela classe média de técnicos pequeno-burgueses, “expressão triunfal do fascismo” e inimiga mortal da inteligência (ler o ensaio “A ideia da universidade e as ideias das classes médias”). A “História da Literatura Ocidental” é, nesse sentido, uma resposta da inteligência aos bárbaros.
Afinal, uma daquelas épocas, a mais estúpida e sanguinária de todas, foi a primeira metade do século 20, com a ascensão de Leviatã e dos regimes totalitários de esquerda e de direita, que quiseram sombriamente abarcar o mundo. Mas o espírito se opôs, e o mesmo espírito que nutriu Quintilianus permanece vivo na odisseia de Carpeaux. A “História da Literatura Ocidental” cumpre, para nós outros, a função vital e permanente daquela velha “Institutio Oratoria” do sábio romano. Ignorá-lo implica em diminuir nossas reservas de luz, emitidas por um dos grandes humanistas do século 20.
REVISTA BULA
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