CHAC MOOL / CARLOS FUENTES


O conto Chac Mool é considerado uma das obras-primas da ficção moderna


O escritor mexicano Car­los Fuentes, um dos autores mais prolíficos da literatura latino-americana, morreu na terça-feira, 15 de maio, na Cidade do México, aos 83 anos, em decorrência de complicações cardíacas. Crítico mordaz da política mexicana e autor de mais de 50 obras, entre romances, ensaios, peças teatrais e contos, recebeu o Prêmio Cervantes de literatura em 1987 e o Príncipe de Asturias em 1994. Seus livros mais conhecidos são “A Morte de Artemio Cruz” (1962); “Aura” (1962); “Terra Nostra” (1975) e “Gringo Velho” (1985). O conto “Chac Mool” é considerado uma das obras-primas da literatura latino-americana.

Faz pouco tempo, Filiberto morreu afogado em Acapulco. Aconteceu na Semana Santa. Apesar de ter sido mandado embora do emprego na Se­cretaria, Filiberto não pôde resistir à tentação burocrática de ir, como todos os anos, à pensão alemã, comer o chucrute adocicado pelos suores da cozinha tropical, dançar o Sábado de Aleluia no La Quebrada e se sentir “gente conhecida” no escuro anonimato vespertino da praia de Hornos. Claro, já sabíamos que na sua juventude tinha nadado bem; mas agora, aos quarenta, e tão abatido como se encontrava, tentar atravessar, à meia-noite, o extenso trecho entre Caleta e a ilha da Ro­queta!... Frau Müller não deixou que fosse velado, apesar de ser um freguês antigo, na pensão; pelo contrário, essa noite organizou um baile no terraço sufocado, enquanto Filiberto esperava, muito pálido dentro de sua caixa, que saísse o caminhão matutino do terminal, e passou lá, acompanhado de caixas e fardos, a primeira noite da sua nova vida. Quando cheguei, muito cedo, para cuidar do embarque do féretro, Filiberto estava embaixo de um túmulo de cocos: o motorista disse que o colocássemos rapidamente sob o toldo e o cobríssemos com lonas, para não espantar os passageiros, e que por favor não trouxéssemos azar à viagem.

Saímos de Acapulco na hora da brisa da manhã. No percurso até Tierra Colorada nasceram o calor e a luz. Enquanto comia ovos e chouriço, abri o cartapácio de Filiberto, que tinha apanhado no dia anterior, junto com outros pertences, na pensão dos Müller. Duzentos pesos. Um jornal velho da cidade de México. Volantes de loteria. A passagem de ida — só de ida? E o caderno barato, de folhas quadriculadas e capas de papel mármore.

Arrisquei-me a ler o caderno, apesar das curvas, do fedor a vômito e de certo sentimento natural de respeito pela vida privada do meu defunto a­migo. “Recordaria — sim, co­meçava assim — nosso cotidiano labor no escritório; talvez soubesse, no final, por que foi rebaixado, esquecendo seus deveres, por que ditava ofícios sem sentido, nem número, nem ‘Sufrágio Efetivo Não Reeleição’”. Por que, enfim, foi afastado, esquecia a pensão, sem respeitar as hierarquias.

“Hoje fui acertar o assunto da minha pensão. O bacharel, amabilíssimo. Saí tão feliz que resolvi gastar cinco pesos numa confeitaria. É a mesma que frequentávamos quando jovens e aonde agora não vou mais, porque me lembra que aos vinte anos podia me dar a mais luxos do que aos quarenta. Naquela época estávamos todos num mesmo plano, teríamos rejeitado com energia qualquer opinião pejorativa a respeito dos nossos colegas; de fato, lutávamos por aqueles que na casa eram questionados pela sua baixa extração ou falta de elegância. Eu sabia que muitos deles (talvez os mais humildes) chegariam longe e aqui, na escola, iam se forjar as amizades duradouras, em cuja companhia cursaríamos o mar bravio. Não, não foi assim. Não houve regras. Muitos dos humildes ficaram por ali, muitos chegaram acima do que podíamos prognosticar naquelas fogosas, amáveis tertúlias. Outros, que parecíamos prometer tudo, ficamos na metade do caminho, destripados num exame extracurricular, isolados por uma vala invisível dos que triunfaram e dos que nada atingiram. Enfim, hoje tornei a sentar-me nas cadeiras modernizadas — também há, como barricada de uma invasão, uma máquina de refrigerantes — e pretendi ler expedientes. Vi muitos antigos colegas, mudados, amnésicos, retocados de luz de neon, prósperos. Com a confeitaria que quase não reconhecia, com a própria cidade, tinham ido se cinzelando num ritmo diferente do meu. Não, já não me reconheciam; ou não queriam me reconhecer. No máximo — um ou dois — uma mão gorda e rápida sobre o ombro. Oi, velho, como vai! Entre eles e mim interferiam os dezoito buracos do Country Club. Disfarcei-me atrás das papeladas de oficio. Desfilaram na minha memória os anos das grandes ilusões, dos prognósticos felizes e, também, todas as omissões que impediram sua realização. Senti a angústia de não poder levar as mãos ao passado e juntar os pedaços de algum quebra-cabeça abandonado; mas a arca dos brinquedos vai sendo esquecida e, no final, quem saberá para onde foram os soldadinhos de chumbo, os cascos, as espadas de madeira? As fantasias tão queridas não passaram disso. E, no entanto, houve constância, disciplina, apego ao dever. Não era suficiente, ou sobrava? Em algumas ocasiões me assaltava a lembrança de Rilke. A grande recompensa da aventura da juventude deve ser a morte; jovens, devemos partir com todos nossos segredos. Hoje, não teria que voltar o olhar para as cidades de sal. Cinco pesos? Dois de gorjeta.”

“Pepe, além da sua paixão pelo direito mercantil, gosta de teorizar. Ele me viu sair da catedral, e juntos nos encaminhamos para o palácio. Ele é incréu, mas isso não lhe basta; em meio quarteirão teve que fabricar uma teoria. Que se eu não fosse mexicano, não adoraria a Cristo e — Não, olha, parece evidente. Chegam os espanhóis e te propõem adorar um Deus morto feito um coágulo, com um lado ferido, cravado numa cruz. Sacrificado. Ofertado. Que coisa mais natural do que aceitar um sentimento tão próximo a todo teu cerimonial, a toda tua vida?... Imagina o contrário, que o México tivesse sido conquistado por budistas ou por maometanos. Não é concebível que nossos índios venerassem um indivíduo que morreu de indigestão. Mas um Deus a quem não basta que se sacrifiquem por ele, mas que inclusive se entrega para que lhe arranquem o coração. Caramba! Xeque-mate a Huit­zilopochtli! O cristianismo, no seu sentido cálido, sangrento, de sacrifício e liturgia, se torna um prolongamento natural e novo da religião indígena. Os aspectos caridade, amor e o outro lado do rosto, no entanto, são rechaçados. E tudo no México é isso: é preciso matar os homens para poder acreditar neles.”

“Pepe conhecia minha inclinação, quando jovem, por certas formas da arte indígena mexicana. Eu coleciono estatuetas, ídolos, vasos. Meus fins de semana passo em Tlaxcala ou em Teotihuacán. Talvez por isso ele goste de relacionar todas as teorias que elabora para meu consumo com esses temas. Na verdade procuro uma réplica razoável do Chac Mool há muito tempo, e hoje Pepe me informa sobre um lugar na Lagunilla onde vendem um deles em pedra e que parece ser barato. Vou no domingo.”

“Um engraçadinho pintou de vermelho a água do garrafão no escritório, com a consequente perturbação das atividades. Fui obrigado a informar o diretor, que se limitou a rir muito. O culpado aproveitou-se da circunstância para fazer sarcasmos à minha custa o dia inteiro, todos em torno da água. Ch...”

“Hoje, domingo, aproveitei para ir à Lagunilla. Encontrei Chac Mool na barraca que Pepe me indicara. Trata-se de uma peça belíssima, de tamanho natural, e apesar de o marchand me assegurar sua autenticidade, eu duvido. A pedra é corrente, mas isso não diminui a elegância da postura ou a solidez do bloco. O vendedor desleal esfregara molho de tomate na barriga do ídolo para convencer os turistas da sangrenta autenticidade da escultura.”

“O transporte para casa me custou mais do que a aquisição da peça. Porém já está aqui, no momento, no porão, enquanto reorganizo meu quarto de troféus, a fim de lhe dar acolhida. Essas figuras precisam do sol vertical e fogoso; esse foi seu elemento e condição. Perde muito meu Chac Mool na escuridão do porão; ali, ela é uma simples forma agonizante, e sua expressão parece me cobrar que estou lhe negando a luz. O comerciante tinha uma lâmpada que iluminava verticalmente a escultura, recortando todas as suas arestas e proporcionando-lhe uma expressão mais amável. Vou ter que imitar seu exemplo.”

“Amanheci com o encanamento de água com defeito. Incauto, deixei correr da cozinha a água, que transbordou, correu pelo chão e chegou até o porão, sem que eu percebesse. O Chac Mool resiste à umidade, mas minhas malas sofreram. Tudo isso, num dia de muito trabalho, me obrigou a chegar tarde ao escritório.”

“Chegaram, por fim, para consertar o encanamento. As malas, tortas. E o Chac Mool, com lama na base.”

“Acordei à uma da ma­nhã: tinha ouvido um gemido terrível. Pensei em assalto. Só imaginação.”

“Os gemidos noturnos têm continuado. Não consigo identificar a causa, estou nervoso. E, infelizmente, o encanamento voltou a dar problemas, e as chuvas que não param alagaram o porão.”

“O bombeiro não aparece; estou desesperado. Do De­partamento do Distrito Federal melhor nem falar. É a primeira vez que os ralos não dão conta da água das chuvas que acaba entrando no meu porão. Os gemidos pararam: vai uma coisa pela outra.”

“O porão foi seco, e Chac Mool está coberto de lama. Ficou com uma aparência grotesca, porque toda a massa da escultura parece agora sofrer de erisipela verde, exceto os olhos que permaneceram de pedra. Vou aproveitar o domingo para raspar o musgo. Pepe aconselhou-me mudar para um apartamento, morar num andar alto, para evitar essas tragédias aquáticas. Mas não posso deixar este casarão, com certeza é muito grande para uma pessoa só, um pouco lúgubre na sua arquitetura porfiriana. Porém é a única herança e lembrança dos meus pais. Não consigo me imaginar olhando para uma sinfonola no porão, e uma loja de decorações no térreo.”

“Fui raspar o musgo do Chac Mool com uma espátula. Parecia já estar fazendo parte da pedra; foi um trabalho de mais de uma hora, e só às seis da tarde consegui acabar. Não se distinguia muito bem na penumbra; quando terminei o trabalho, toquei com a mão os contornos da pedra. Cada vez que a tocava, o bloco parecia amolecer. Não podia acreditar: já estava ficando como uma massa. Esse mercador de Lagunilla me enganou. Sua escultura pré-colombiana é de puro gesso, e a umidade vai acabar com ela. Joguei por cima uns panos; amanhã vou levá-la para o quarto de cima, antes que sofra uma deterioração total.”

“Os panos caíram no chão, incrível! Voltei a apalpar o Chac Mool. Ele endureceu, mas a consistência da pedra não volta. Não quero escrever isto: há no seu torso algo parecido à textura da carne; ao apertar-lhe os braços sinto-os como se fossem de borracha, percebo que algo circula por essa figura reclinada... À noite desci novamente. Não resta nenhuma dúvida: Chac Mool tem pelos nos braços.”

“Nunca me tinha acontecido uma coisa dessas. Enrolei os assuntos do escritório, passei uma ordem de pagamento que não estava autorizada, e o diretor teve que me chamar a atenção. Talvez até tenha sido indelicado com meus colegas. Vou ter que ver um médico, saber se é a minha imaginação ou delírio, o que é, e talvez me desfazer desse maldito Chac Mool.”

Até aqui a caligrafia de Filiberto era a antiga, a que tantas vezes vi na forma, nos memorandos, larga e oval. A da entrada de 25 de agosto, no entanto, parecia escrita por uma outra pessoa. Umas vezes como de criança, separando com esforço cada letra; outras, nervosa, até se diluir no incompreensível. Passaram-se três dias sem nada, e a história continua:

“Tudo é tão natural; e logo se crê no real... mas isto é real, mais do que já foi acreditado por mim. Se é real um garrafão, e mais ainda, porque percebemos melhor sua existência, ou existir, se um gozador pinta a água de vermelho... Real e efêmero absorver o fumo do cigarro, real imagem monstruosa num espelho de circo, reais não são todos os mortos, presentes e esquecidos?... Se, por acaso, um homem atravessasse o paraíso num sonho, e lhe dessem uma flor como prova de que tinha estado lá, e se, ao acordar, ele encontrasse essa flor na sua mão... então, o quê?... Realidade: certo dia quebraram-na em mil pedaços, a cabeça foi para lá, a cauda para cá e nós não conhecemos mais que uma das partes soltas do seu grande corpo. Oceano livre e fictício, só real quando fica preso no rumor dum caracol marinho. Até três dias atrás, minha realidade o era até ter-se apagado hoje; era movimento reflexo, rotina, memória, cartapácio. E depois, como a terra que um dia treme para nos recordar seu poder, ou como a morte que chegará um dia, me recriminando o esquecimento de toda a vida, apresenta-se outra realidade: sabíamos que estava ali, assustadora; agora sacode-nos para se fazer viva e presente. Pensei, novamente, que se tratava de pura imaginação: o Chac Mool, mole e elegante, tinha mudado de cor numa noite; amarelo, quase dourado, parecia mostrar-me que era um deus, por enquanto frouxo, com os joelhos um pouco menos tensos que anteriormente, com o sorriso mais benévolo. E ontem, por fim, um despertar so­bressaltado, com essa certeza espantosa de que há duas respirações na noite, de que na escuridão batem mais pulsos do que o próprio. Sim, ouviam-se passos na escada. Pesadelo. Voltar a dormir... Não sei quanto tempo tentei dormir. Quando voltava a abrir os olhos, ainda não tinha amanhecido. O quarto cheirava a horror, a incenso e a sangue. Com o olhar negro, percorri a recâmara, até me fixar em dois orifícios de luz piscante, em duas flâmulas cruéis e amarelas.”

“Quase sem fôlego, acendi a luz.”

“Ali estava Chac Mool, erguido, sorridente, ocre, com sua barriga encarnada. Deixaram-me paralisado os dois olhinhos quase oblíquos, bem junto ao cavalete do nariz triangular. Os dentes inferiores mordiam o lábio superior, imóveis; só o brilho do panelão quadrado sobre a cabeça anormalmente volumosa, denunciava vida. Chac Mool avançou em direção à minha cama; então começou a chover.”

Lembro que pelo final de agosto, Filiberto foi despedido da Secretaria, com uma recriminação pública do diretor e rumores de loucura e até de roubo. Nisso não acreditei. O que pude ver foram uns ofícios irracionais, perguntando ao oficial maior se a água podia ser cheirada, oferecendo seus serviços ao secretário de Recursos Hídricos para fazer chover no deserto. Não sabia o que pensar sobre tudo isso; achei que as chuvas, excepcionalmente fortes nesse verão, tinham enervado meu amigo. Ou que a vida naquele casarão antigo, estava lhe provocando alguma depressão moral, com a metade dos quartos fechados e empoeirados, sem empregados nem vida familiar. As notas seguintes são de fins de setembro:

“Chac Mool consegue ser simpático quando quer... 'um glub-glub de água encantada'... Conhece histórias fantásticas sobre a monção, as chuvas equatoriais e o castigo dos desertos; cada planta sai da sua paternidade mítica: o salgueiro é sua filha transviada; os lótus, suas crianças mimadas; sua sogra, o cacto. O que não consigo suportar é o cheiro, extra-humano, que emana dessa carne que não é carne, das sandálias flamantes da velhice. Com riso estridente, Chac Mool revela como foi descoberto por Le Plongeon e colocado fisicamente em contato com homens de outros símbolos. Seu espírito viveu no cântaro e na tempestade, com naturalidade; outra coisa é sua pedra, arrancada do seu esconderijo maia no qual jazia; é artificial e cruel. Creio que Chac Mool nunca perdoará isso. Ele sabe da iminência do fato estético.”

“Tive que providenciar saponáceo para ele lavar o ventre por onde o mercador, pensando ser ele asteca, passou molho ketchup. Não me pareceu gostar da minha pergunta sobre seu parentesco com Tlaloc, e, quando fica bravo, seus dentes, que já são repulsivos, se afinam e brilham. Os primeiros dias, desceu ao sótão para dormir; a partir de ontem, dorme na minha cama.”

“Hoje começou a temporada da seca. Ontem, da sala onde durmo agora, ouvi os mesmos gemidos roucos do princípio, seguidos de ruídos terríveis. Subi; entreabri a porta do quarto: Chac Mool estava quebrando os abajures, os móveis; quando me viu, pulou em direção à porta com as mãos arranhadas, e apenas consegui fechar e correr para me esconder no banheiro. Pouco depois desceu, ofegante, e pediu água; deixa o dia todo as torneiras abertas, não fica um centímetro seco dentro da casa. Eu preciso dormir muito bem agasalhado, e tenho pedido a ele para não molhar mais a sala.”

“Chac inundou hoje a sala. Exasperado, disse-lhe que ia devolvê-lo ao mercado de Lagunilla. Tão terrível quanto sua risadinha — horrorosamente diferente de qualquer risada de homem ou de animal — foi a palmada que me deu, com esse seu braço carregado de pesados braceletes. Tenho que reconhecer: sou seu prisioneiro. Minha ideia original era bem diferente: eu dominaria Chac Mool, como se domina um brinquedo; era, por acaso, um prolongamento da minha segurança na infância; mas a infância — quem falou isso? — é o fruto comido pelos anos, e eu não tinha percebido... Pegou minhas roupas e veste a bata quando começa a lhe brotar o musgo verde. Chac Mool está acostumado a que lhe obedeçam, desde sempre e para sempre; eu, que nunca tive que mandar, só posso me dobrar diante dele. Enquanto não chover — e o seu poder mágico? — viverá colérico e irritadiço.”

“Hoje decidi que de noite Chac Mool sai da casa. Sempre, ao escurecer, canta uma toada ruidosa e antiga, mais ve­lha que próprio canto. Lo­go cessa. Ba­ti vá­rias ve­zes na sua porta e, como não respondesse, tive a coragem de entrar. Eu não tinha retornado ao quarto desde o dia em que a estátua tentou me agredir: está em ruínas, é ali que se concentra aquele cheiro de incenso e sangue que tem flutuado pela casa. Mas atrás da porta, há ossos de cachorros, de ratos e de gatos. Tudo isso de rouba durante a noite para se sustentar. Isso explica os latidos espantosos das madrugadas.”

“Fevereiro, seco. Chac Mool vigia meus passos; tem-me obrigado a telefonar para urna pensão para que diariamente me entreguem urna marmita. Mas o dinheiro levado do escritório já está acabando. Aconteceu o inevitável: a partir do dia primeiro, desligaram a água e a luz por falta de pagamento. Mas Chac Mool descobriu uma fonte pública a dois quarteirões daqui; todos os dias eu faço dez ou doze viagens em busca de água, e ele me observa do terraço. Diz que se eu tiver a intenção de fugir vai me fulminar: também é Deus do Raio. O que ele não imagina é que estou sabendo das suas escapulidas noturnas... Corno falta luz, vou me deitar às oito. Já deveria estar acostumado ao Chac Mool, mas faz pouco tempo, na escuridão, topei com ele na escada, senti seus braços gelados, as escamas de sua pele renovada e me deu vontade de gritar.”

“Se não chove rápido, o Chac Mool vai se converter novamente em pedra. Tenho reparado que sente dificuldades para se mexer; às vezes fica encostado durante horas, paralisado, apoiado na parede e parece ser, de novo, um ídolo inerme, por mais Deus da tempestade e do trovão que seja considerado. Mas esses repousos lhe proporcionam novas forças para me humilhar, me arranhar corno se pudesse arrancar de mim algum líquido da minha carne. Já não acontecem mais aqueles intervalos amáveis durante os quais me contava antigas histórias; creio perceber nele urna espécie de ressentimento concentrado. Também há outros indícios que me preocupam: os vinhos da adega estão quase acabando; Chac Mool acaricia a seda da bata; deseja urna empregada na casa, fez-me ensiná-lo a usar sabonete e loções. Há inclusive algo de velho no seu rosto que antes parecia eterno. Isto pode ser minha salvação: se Chac cai em tentações, se ele se humaniza, provavelmente todos os seus séculos de vida se acumulem num instante e ele caia fulminado pelo poder adiado do tempo. Mas também penso numa coisa terrível: o Chac não gostará que eu assista à sua queda, não aceitará uma testemunha... é possível que ele deseje me matar.”

“Aproveitarei hoje a excursão noturna de Chac para fugir. Partirei para Acapulco; vamos ver o que se pode fazer para arrumar trabalho e aguardar a morte de Chac Mool; sim, está próxima; está com cabelos brancos, inchado. Eu preciso pegar sol, nadar e recuperar forças. Sobram-me quatrocentos pesos. Irei à pensão Müller, que é barata e confortável. Que Chac Mool fique dono de tudo: quero ver quanto dura sem meus baldes de água.”

Aqui termina o diário de Filiberto. Não quis pensar mais na sua história; dormi até Cuernavaca. Dali para o México tentei dar coerência ao escrito, relacionar aquilo com excesso de trabalho, com alguma causa psicológica. Quando, às nove da noite, chegamos ao terminal, ainda não podia explicar-me a loucura do meu amigo. Contratei uma caminhonete para levar o féretro à casa de Filiberto, e posteriormente organizar o enterro.

Antes de conseguir introduzir a chave na fechadura, a porta se abriu. Apareceu um índio amarelo, de bata, com cachecol. Sua aparência não podia ser mais repulsiva; exalava um cheiro de perfume barato, queria cobrir as rugas com o rosto cheio de pó; tinha a boca enlameada de batom mal aplicado, e o cabelo dava a impressão de estar tingido.

— Desculpe... não sabia que Filiberto tivesse...

— Não faz mal; sei de tudo. Diga aos homens que levem o cadáver para o porão.

Conto publicado no livro “Contos Latino-Americanos Eternos”, editora Bom Texto, organização e tradução de Alicia Ramal.

REVISTA BULA

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