SOBRE CLARICE LISPECTOR

Clarice Lispector nasceu na Ucrânia, em 1925.
Clarice

“Nasci numa aldeia chamada Tchetchelnik, que não figura no mapa de tão pequena e insignificante.
Quando minha mãe estava grávida de mim, meus pais já estavam se encaminhando para os Estados Unidos ou Brasil, ainda não haviam decidido: pararam em Tchetchelnik para eu nascer e prosseguiram viagem.
Cheguei ao Recife com apenas dois meses de idade.
Sou brasileira naturalizada, quando, por uma questão de meses, poderia ser brasileira nata. Fiz da língua portuguesa a minha vida interior, o meu pensamento mais íntimo, usei-a para palavras de amor."
Em 1937, após a morte da mãe, vai para o Rio de Janeiro; em 1941 inicia o curso de Direito na então Faculdade Nacional de Direito; era, por essa ocasião, redatora na Agência Nacional e trabalha no jornal A Noite, o mesmo que lhe editaria seu primeiro livro em 44: Perto do Coração Selvagem.
Em 1943 casa-se com Maury Gurgel Valente, diplomata, e tem com ele seus filhos Pedro e Paulo. Viaja com o marido por vários países e mora em vários dele também: Suíça, Estados Unidos, Inglaterra.
Em 1959, separa-se do marido e em definitivo vem para o Rio de Janeiro, cidade em que morará até o fim de sua vida. Até esta data já tinha editado os livros O lustre (1946, em Berlim); A maçã no escuro (1959). Em 1964 publica A paixão segundo GH e, em 69 sai Felicidade clandestina.
Morreu de câncer generalizado, em 1977.
Ela era uma menina de 17 anos quando escreveu Perto do coração selvagem. A crítica saudou-a imaginando uma mulher adulta, escrevendo à moda de James Joyce, o inglês que iniciou, em 1925, o romance intimista.
Álvaro Lins, crítico temido e respeitado da época, ao ler o romance de Clarice, espantou-se, emocionado e Antônio Cândido, escreveu sobre ela:
“Por isso, tive verdadeiro choque ao ler o romance diferente que é Perto do coração selvagem (...) Com efeito, este romance é uma tentativa impressionante para levar a nossa língua canhestra a domínios pouco explorados, forçando-a a adaptar-se a um pensamento cheio de mistério, para o qual sentimos que a ficção não é um exercício ou uma aventura afetiva, mas um instrumento real do espírito, capaz de nos fazer penetrar em alguns dos labirintos mais retorcidos da mente."
(Antônio Cândido, Vários Escritos, "No Raiar de Clarice Lispector")
Adepta do Existencialismo, Clarice Lispector segue à risca o preceito filosófico de que deva especular a existência até o cerne, ir a fundo nas dores interiores, tentando descobrir-lhes as origens e os fundamentos.
Ler Clarice é ato do qual não se sai impunemente: ela provoca descobertas, abre feridas, faz sangrar por dentro. Interessa à escritora descobrir o que há por dentro das criaturas, o que pretendem de suas vidas, o que fazem com elas mesmas.
Veja o estilo da escritora em questão:

Lispector

Tentação
"Ela estava com soluço. E como se não bastasse a claridade das duas horas, ela era ruiva.
Na rua vazia as pedras vibravam de calor - a cabeça da menina flamejava 23. Sentada nos degraus de sua casa, ela suportava. Ninguém na rua, só uma pessoa esperando inutilmente no ponto do bonde. E como se não bastasse seu olhar submisso e paciente, o soluço a interrompia de momento em momento, abalando o queixo que se apoiava conformado na mão. Que fazer de uma menina ruiva com soluço? Olhamo-nos sem palavras, desalento contra desalento. Na rua deserta nenhum sinal de bonde. Numa terra de morenos, ser ruivo era uma revolta involuntária.
Que importava se num dia futuro sua marca ia fazê-la erguer insolente uma cabeça de mulher?
Por enquanto ela estava sentada num degrau faiscante da porta, às duas horas. O que a salvava era uma bolsa velha de senhora, com alça partida. Segurava-a com um amor conjugal já habituado, apertando-a contra os joelhos.
Foi quando se aproximou a sua outra metade nesse mundo, um irmão em Grajaú. A possibilidade de comunicação surgiu no ângulo quente da esquina, acompanhando uma senhora, e encarnada na figura de um cão. Era um basset lindo e miserável, doce sob a sua fatalidade. Era um basset ruivo.
Lá vinha ele troteando, à frente de sua dona, arrastando seu comprimento. Desprevenido, acostumado, cachorro.
A menina abriu os olhos pasmada. Suavemente avisado, o cachorro estacou diante dela. Sua língua vibrava. Ambos se olhavam.
Entre tantos seres que estão prontos para se tornarem donos de outro ser, lá estava a menina que viera ao mundo para ter aquele cachorro. Ele fremia 24 suavemente, sem latir. Ela olhava-o sob os cabelos, fascinada, séria. Quanto tempo se passava? Um grande soluço sacudiu-a desafinado.
Ele nem sequer tremeu. Também ela passou por cima do soluço e continuou a fitá-lo.
Os pelos de ambos eram curtos, vermelhos.
Que foi que se disseram? Não se sabe. Sabe-se apenas que se comunicaram rapidamente, pois não havia tempo. Sabe-se também que sem falar eles se pediam. Pediam-se com urgência, com encabulamento, surpreendidos.
No meio de tanta vaga impossibilidade e de tanto sol, ali estava a solução para a criança vermelha. E no meio de tantas ruas a serem trotadas, de tantos cães maiores, de tantos esgotos secos - lá estava uma menina, como se fora carne de sua ruiva carne. Eles se fitavam profundos, entregues, ausentes de Grajaú. Mais um instante e o suspenso sonho se quebraria, cedendo talvez à gravidade com que se pediam.
Mas ambos eram comprometidos.
Ela com sua infância impossível, o centro da inocência que só se abriria quando ela fosse uma mulher. Ele, com sua natureza aprisionada.
A dona esperava impaciente sob o guarda-sol. O basset ruivo afinal despregou-se da menina e saiu sonâmbulo. Ela ficou espantada, com o acontecimento nas mãos, numa mudez que nem pai nem mãe compreenderiam. Acompanhou-o com olhos pretos que mal acreditavam, debruçada sobre a bolsa e os joelhos, até vê-lo dobrar a outra esquina.
Mas ele foi mais forte que ela. Nem uma só vez olhou pra trás."
Os labirintos da alma humana... eis o que pretendeu desvendar Clarice. Para tanto ela se utiliza de:
1. Captação do fluxo de consciência (monólogo interior); tal expediente possibilita sempre a captação da essência humana, de suas sensações mais íntimas e espontâneas;
2. Ruptura com o modelo formal da unidade narrativa: nas narrativas claricenas, mais importante que o tempo cronológico, o enredo, as ações encadeadas, está o que é surpreender as personagens no ato de existir, suas dores fundas, sensações, esperanças e malogros.
3. A epifania: sensação de que o mundo, de repente, "mostra-se" à personagem, desvenda-se e a deslumbra.
4. O mistério metafísico: outro desvendamento do ser que se entrega à vida, às sensações, ao ato de viver. Suas dores doem fundo, solenemente, mas as personagens ganham para si a liberdade que descobrir a vida e suas dores traz.
5. As metáforas insólitas:
((Houve um momento grande, parado, sem nada dentro. Dilatou os olhos, esperou. Nada veio. Branco. Mas de repente num estremecimento deram corda no dia e tudo recomeçou a funcionar, a máquina trotando, o cigarro do pai fumegando, o silêncio, as folhinhas, os frangos pelados, a claridade, as coisas revivendo cheias de pressa como uma chaleira a ferver. Só faltava o tin-dlen do relógio que enfeitava tanto. Fechou os olhos, fingiu escutá-lo e ao som da música inexistente e ritmada ergueu-se na ponta dos pés. Deu três passos de dança bem leves, alados." (Perto do Coração Selvagem)
Citações verdadeiras de Clarice LispectorClarice Lispector é uma das autoras de que mais gosto. Infelizmente há uma infinidade de citações na internet atribuídas erroneamente a ela. Fiz uma compilação de frases verdadeiras dela e coloco logo abaixo.

Até cortar os próprios defeitos pode ser perigoso. Nunca se sabe qual é o defeito que sustenta nosso edifício inteiro.
Renda-se, como eu me rendi. Mergulhe no que você não conhece como eu mergulhei. Não se preocupe em entender, viver ultrapassa qualquer entendimento.
Sim, minha força está na solidão. Não tenho medo nem de chuvas tempestivas nem das grandes ventanias soltas, pois eu também sou o escuro da noite.
Que ninguém se engane, só se consegue a simplicidade através de muito trabalho.
Sou como você me vê.
Posso ser leve como uma brisa ou forte como uma ventania,
Depende de quando e como você me vê passar.
Liberdade é pouco. O que eu desejo ainda não tem nome.
Saudade é um pouco como fome. Só passa quando se come a presença. Mas às vezes a saudade é tão profunda que a presença é pouco: quer-se absorver a outra pessoa toda. Essa vontade de um ser o outro para uma unificação inteira é um dos sentimentos mais urgentes que se tem na vida.
Não quero ter a terrível limitação de quem vive apenas do que é passível de fazer sentido. Eu não: quero uma verdade inventada.
Suponho que me entender não é uma questão de inteligência e sim de sentir, de entrar em contato... 
Ou toca, ou não toca.
Ela acreditava em anjo e, porque acreditava, eles existiam.
É curioso como não sei dizer quem sou. Quer dizer, sei-o bem, mas não posso dizer. Sobretudo tenho medo de dizer, porque no momento em que tento falar não só não exprimo o que sinto como o que sinto se transforma lentamente no que eu digo.
E se me achar esquisita,
respeite também.
até eu fui obrigada a me respeitar.
Porque eu fazia do amor um cálculo matemático errado: pensava que, somando as compreensões, eu amava. Não sabia que, somando as incompreensões é que se ama verdadeiramente. Porque eu, só por ter tido carinho, pensei que amar é fácil.
Não tenho tempo pra mais nada, ser feliz me consome muito.
Olhe, tenho uma alma muito prolixa e uso poucas palavras. 
Sou irritável e firo facilmente. 
Também sou muito calmo e perdoo logo. 
Não esqueço nunca. 
Mas há poucas coisas de que eu me lembre.
Mas tenho medo do que é novo e tenho medo de viver o que não entendo quero sempre ter a garantia de pelo menos estar pensando que entendo, não sei me entregar à desorientação.
Passei a vida tentando corrigir os erros que cometi na minha ânsia de acertar.
...Que minha solidão me sirva de companhia.
que eu tenha a coragem de me enfrentar.
que eu saiba ficar com o nada
e mesmo assim me sentir
como se estivesse plena de tudo.
Eu não sou tão triste assim, é que hoje eu estou cansada
Com todo perdão da palavra, eu sou um mistério para mim.
...estou procurando, estou procurando. Estou tentando me entender. Tentando dar a alguém o que vivi e não sei a quem, mas não quero ficar com o que vivi. Não sei o que fazer do que vivi, tenho medo dessa desorganização profunda.
Enquanto eu tiver perguntas e não houver resposta continuarei a escrever.

http://www.analisedetextos.com.br/2014/02/ser-feliz-me-consome-muito-clarice.html

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