COMO INTERPRETAR TEXTOS CORRETAMENTE


A palavra "texto" é bastante usada na escola e também em outras instituições sociais que trabalham com a linguagem. E hoje em dia somos cada vez mais cobrados nesse quesito, pois desde as situações formais como as entrevistas de emprego até mesmo nas situações em que estamos nos divertindo, não fazer a interpretação correta do que se ouve é aumentar as possibilidades de ficar deslocado. Vamos pensar um pouco nos conceitos que estão por detrás do conteúdo que usamos para exercitar nossa capacidade de compreensão textual. É comum ouvirmos expressões como:
"o texto constitucional desceu a detalhes que deveriam estar em leis ordinárias"; "seu texto ficou muito bom"; "o texto da prova de português era muito longo e complexo"; "os atores de novelas devem decorar textos enormes todos os dias".
Apesar de corrente, o termo não é de fácil definição. É frequente perguntarmos a uma pessoa qual o significado da palavra "texto" e percebermos que ela é incapaz de responder com precisão e clareza.
Texto é um todo organizado de sentido, delimitado por dois brancos e produzido por um sujeito num dado tempo e num determinado espaço.



Comecemos a analisar esse conceito. Essa análise estará dividida em três partes. 


1- A primeira refere-se ao fato de que o texto possui uma coerência de sentido.

Isso quer dizer que o texto não é um amontoado de frases, ou seja, num texto, as frases não estão simplesmente colocadas umas depois das outras, mas estão costuradas entre si. Essa é a razão de, num texto, o sentido de uma frase depender das outras; de o significado ser solidário.
Observe-se o poema "Canção do Exílio" de Murilo Mendes.
Minha terra tem macieiras da Califórnia
onde cantam gaturamos de Veneza.
Os poetas de minha terra
são pretos que vivem em torres de ametista,
os sargentos do exército são monistas, cubistas,
os filósofos são polacos vendendo a prestações.
A gente não pode dormir
com os oradores e os pernilongos.
Os sururus em família têm por testemunha a Gioconda.
Eu morro sufocado
em terra estrangeira.
Nossas flores são mais bonitas
nossas frutas mais gostosas
mas custam cem mil réis a dúzia.
Ai que me dera chupar uma carambola de verdade
e ouvir um sabiá com certidão de idade!
(Poesias (1925-1953). Rio de Janeiro, Livraria José Olympio Editora, 1959, p. 5).

Tomando apenas os dois primeiros versos, pode-se pensar que esse poema seja uma apologia do caráter universalista e cosmopolita da brasilidade.

Pode-se ainda acrescentar em apoio a essa tese o fato de que esses versos são calcados nos dois primeiros do poema homônimo de Gonçalves Dias (Minha terra tem palmeiras Onde canta o sabiá.),
que é uma glorificação da terra pátria.

Se isolarmos os dois primeiros versos do restante do poema, a hipótese não é absurda: "macieiras" e "gaturamos" representam a natureza vegetal e animal, respectivamente; "Califórnia" e "Veneza" são a imagem do espaço estrangeiro e " minha terra", do solo pátrio. No Brasil, até a natureza acolhe o que é estrangeiro.

Essa hipótese de leitura não encontra amparo quando esses versos são confrontados com o restante do texto. O poeta vai mostrando que as características da brasilidade não têm valor positivo, não concorrem para a exaltação da pátria. Analisando os diferentes versos, percebe-se que a cultura brasileira é postiça, é uma miscelânea de elementos advindos de vários países. Mostra que os "poetas" são "pretos", elementos oprimidos, que vivem em "torres de ametista", alienados num mundo idealizado, evitando as mazelas do mundo real (trata-se de uma referência irônica ao Simbolismo e, principalmente, a Cruz e Souza); que "os sargentos do exército são monistas, cubistas", ou seja, que os que têm a função de garantir a segurança do território nacional têm pretensões de incursionar por teorias filosóficas e estéticas; que "os filósofos são polacos vendendo a prestações", são prostituídos (polaca é termo designativo de prostituta) pela venalidade barata; que "os oradores" se identificam com "os pernilongos" em sua oratória repetitiva; que o romantismo gonçalvino estava certo ao afirmar que a natureza brasileira é pródiga, só que essa prodigalidade não é acessível à maioria da população. O poeta termina desejando ter contato com coisas genuinamente brasileiras. Seu desejo é, ao mesmo tempo, um lamento, pois Sabe que ele não se tornará realidade.

O texto de Murilo faz referência ao de Gonçalves Dias, mas diferentemente do poema gonçalvino não celebra ufanisticamente a pátria. Ao contrário, ironiza-a, lamenta a invasão estrangeira. O exílio é a própria terra, desnaturada a ponto de parecer estrangeira.

Desse modo, os dois primeiros versos do poema não podem ser interpretados como um elogio ao caráter cosmopolita da cultura brasileira. Ao contrário, devem ser lidos como uma crítica ao caráter postiço da nossa cultura. Isso porque só a segunda interpretação se encaixa coerentemente dentro do contexto.

Por esse exemplo, verifica-se que o significado das frases não é autônomo. Num texto, o significado das partes depende do todo. Por isso, cada frase tem um significado distinto dependendo do contexto em que está inserida.

Precisemos um pouco melhor o conceito de contexto. É a unidade maior em que uma unidade menor está inserida. Assim, a frase (unidade maior) serve de contexto para a palavra; o texto, para a frase, etc. O contexto pode ser explícito (quando é exposto em palavras) ou implícito (quando, está embutido na situação em que o texto é produzido). Quando Lula disse a Collor no primeiro debate do segundo turno das eleições presidenciais "Eu sabia que você era colorido por fora, mas caiado por dentro", todos os brasileiros colocaram essa frase no contexto "discursos da campanha presidencial" e entenderam não "Você tem cores por fora, mas é revestido de cal por dentro", mas "Você apresenta um discurso moderno e de centro-esquerda, mas é um reacionário".

As frases ganham sentido porque estão costuradas a outras do mesmo texto ou até mesmo a frases de textos citados, como, no nosso caso, o poema "Canção do Exílio", de Gonçalves Dias.

Que é que faz perceber que um conjunto de frases compõe um texto? O primeiro fator é a coerência, ou seja, a harmonia de sentido de modo que não haja nada ilógico, nada contraditório, nada desconexo, que nenhuma parte não se solidarize com as demais. Um outro fator é a ligação das frases por certos elementos que recuperam passagens já ditas ou garantem a concatenação entre as partes. Assim, em "Não chove há vários meses. Os pastos não poderiam, pois, estar verdes", "pois" estabelece uma relação de decorrência lógica entre uma e outra frase. O segundo fator é menos importante que o primeiro, pois, mesmo sem esses elementos de conexão, um conjunto de frases pode ser coerente e, portanto, um todo organizado de sentido.

2 — Um texto é delimitado por dois brancos.

Se o texto é um todo organizado de sentido, ele pode ser verbal, visual (um quadro), verbal e visual (um filme), etc. Mas em todos esses casos ele será delimitado por dois espaços de não sentido, dois brancos, um antes de começar o texto e o outro depois. É o branco do papel; é o tempo de espera para que um filme comece e o que está depois da palavra "FIM"; é o momento em que o maestro levanta a batuta e o momento em que a abaixa, etc.

3 — O texto é produzido por um sujeito num dado tempo e num determinado espaço.

Esse sujeito, por pertencer a um grupo social num dado tempo e num certo espaço, expõe em seus textos as ideias, os anseios, os temores, as expectativas de seu tempo e de seu grupo social. Todo texto relaciona-se com a História, não no sentido de que narra fatos históricos de um país, mas no de que revela os ideais e as concepções de um grupo social numa determinada época. Cada período histórico estabelece certos problemas e os textos pronunciam-se sobre eles.

O texto de Murilo Mendes, que mostramos mais acima, revela o anseio de uma época em conhecer bem o Brasil, revelar suas mazelas para transformá-lo.
Não há texto que não mostre o seu tempo. Cabe lembrar, no entanto, que uma sociedade não produz uma única forma de ver a realidade, um único modo de analisar os problemas estabelecidos num dado tempo.

Como a sociedade é dividida em grupos sociais, que têm interesses muitas vezes antagônicos, produz ideias divergentes entre si. A mesma sociedade que gera a ideia de que é preciso pôr abaixo a floresta amazônica para explorar suas riquezas, produz a ideia de que preservar a floresta é mais rentável. É bem verdade que algumas ideias, em certas épocas, exercem domínio sobre outras.

É necessário entender as concepções correntes na época e na sociedade em que o texto foi produzido, para não correr o risco de entendê-lo de maneira distorcida.

Como não há ideias puras, mas todas as ideias estão materializadas em textos, analisar a relação do texto com sua época é estudar a relação de um texto com outros.

É preciso que fiquem bem claras estas conclusões:

1 - O sentido de uma parte provém do sentido do todo.
2 - O todo está delimitado por dois brancos.
3 - O sentido do texto revela ideais, concepções, anseios, expectativas e temores de um grupo social numa determinada época. 

TEXTO COMENTADO
APROVEITE QUE OS RUSSOS NÃO ENTENDEM NADA SOBRE LUCRO. ELES AINDA FAZEM CARROS QUE DURAM PELO MENOS 20 ANOS.
Se existe alguma coisa que os russos não sabem fazer direito é ganhar dinheiro. Eles ainda pensam que é um bom negócio fazer um carro moderno, confortável, resistente, com chapa de aço belga, um motor simples, que qualquer mecânico mexe e que ainda por cima não dá manutenção. É que os russos que fabricam os Lada estão acostumados a consumidores que ficam de 10 a 15 anos com o mesmo carro, que vendem para outros consumidores que também ficam um tempão com o mesmo carro, que vendem para outros. Na Rússia, o carro que não resistir a tantos consumidores não é bom. E olhe que não deve ser fácil fazer um carro que funcione perfeitamente por tantos anos em um país onde só 15% das estradas são pavimentadas. Mas você não mora na Rússia e, com certeza, não tem um carro russo. Então, você deve estar pensando em trocar de carro daqui a pouco. Espere só até novembro e compre os primeiros Lada que vão chegar ao Brasil. Porque do jeito que os russos aprendem rápido, logo, logo eles podem aprender a ganhar dinheiro.
(Revista Veja, 7 de novembro de 1990)
Para demonstrar que, num texto, o significado de uma parte depende de suas relações com as outras partes, vamos interpretar, isoladamente, o significado das três primeiras linhas do texto propagandístico acima. Quando se diz
"Aproveite que os russos não entendem nada sobre lucro",
essa frase remete para o fato de que a Rússia é o país líder do bloco socialista e de que lá, portanto, não haveria necessidade de buscar o lucro como nos países capitalistas. Como esse texto publicitário foi veiculado em 1990, quando eram notórias as dificuldades económicas por que passava a União Soviética, pode-se pensar que o plano de sentido sobre o qual o texto vai trabalhar é o da superioridade da economia capitalista sobre a economia socialista, ou seja, pode-se imaginar que o texto considerará negativo o fato de os russos não entenderem nada sobre lucro.

As três linhas seguintes começam a mostrar que essa hipótese interpretativa não é verdadeira. Seus carros não estão submetidos à obsolescência crescente planejada pela indústria capitalista para que o consumo seja sempre maior: eles duram pelo menos vinte anos.

O texto em letras menores confirma essa última hipótese de leitura: os russos não sabem ganhar dinheiro, porque pensam que bom negócio é fabricar um carro moderno, confortável, resistente (com chapa de aço belga, que dura muito tempo e passa de um dono a outro, que suporta estradas não pavimentadas), com motor simples (em que qualquer mecânico mexe), que não dá manutenção.

Agora o sentido se apresenta em toda a plenitude e é contrário ao que as três primeiras linhas isoladas do contexto manifestavam. Bom negócio, para o industrial capitalista, é fabricar um carro que não dure muito tempo e, por conseguinte, precise ser trocado. Daí decorre que lucro, no texto, é algo que se obtém às custas do consumidor. Ganhar dinheiro é ganância. O lucro é a mola do capitalismo. Já os russos, por não serem capitalistas, não visam ao lucro e fabricam produtos com grande durabilidade. O lucro e, por extensão, o sistema que o produz são negativos para o consumidor; não entender de lucro é positivo para o consumidor, pois não o submete à obsolescência planejada.

O texto é uma publicidade dos carros soviéticos Lada, veiculada na época em que começaram a ser vendidos no Brasil. O alcance persuasório do texto é transformar o que sempre se considerou ponto negativo da economia socialista em ponto positivo para o consumidor. A última frase conclama o comprador potencial a efetuar o negócio rapidamente, acenando com o perigo das transformações por que passa a União Soviética. Transformando-se em economia submetida às leis do mercado, na União Soviética se aprenderá a ganhar dinheiro e, por conseguinte, o consumidor estará sujeito a obsolescência planejada.



1 comentários:

Yrikes disse...

ÓTIMO TEXTO AJUDOU MUITO OBRIGADA

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