“Eram alegres e livres! Três machos formavam uma família, ou matilha. Jamais vira seres tão livres! Era lindo de se ver, andavam por toda a cidade, pra lá e pra cá. Ficava surpresa de vê-los em pontos tão variados. Tinham como casa, àquela em que eram bem recebidos, sem xingamento, gritos. Chegavam, juntos, os três, de mansinho e por ali ficavam.
Assim também acontecia em nossa casa. Parece que adivinhavam quando chegávamos. Sabíamos que não tardavam em aparecer. Por isso, a primeira providência que tomava era o preparo de um panelão de comida à base de dorso de frango e fubá.
Entravam correndo, pulando. O maior e mais velho, o Negão, assim era chamado por ser azulado de tão preto, olhos cor-de-mel, doces e mansos, porte alto e altivo, vinha choramingando de tão alegre. Branquinho era cria do Negão com Branquinha: todo branco com manchas pretas, desengonçado que só, culpa das pernas, muito longas. Caramelinho era o menor de todos, baixinho, castanho, andava sempre mancando; abraçava-se em minhas pernas e dava um trabalhão fazer com que se soltasse. Eram tantos os carinhos, que ficava difícil não se emocionar. Nossa casa ficava diferente com eles. Jamais incomodavam. Quando chegavam visitas, mantinham-se afastados, discretos. Se íamos à venda, a nosso lado estavam eles. Se íamos à praia, eles também iam. E banhavam-se! Eram muito limpos, apesar de o estilo errante.
Esperava o meio da semana para ir à praia, preocupada com os amigos caminhantes, que, fora da temporada, tinham comida escassa. Conversava com os três como se fossem velhos amigos, tratava, na medida da permissão, do mais velho, as feridas. Esse vivia estropiado, às vezes na disputa de uma fêmea, outras vezes, por conta da ruindade humana.
Com Negão, era amizade de alguns anos, os outros dois apareceram depois, trazidos por ele. Nunca me importei em cozinhar para eles. Era-lhes grata, recebia, em carinho, muito mais do que doava. Se por ventura, demoravam-se em chegar, ficava aflita, pensando que algo poderia ter- lhes acontecido. Quando apontavam no portão, suspirava, aliviada! Estavam todos bem!
Não cansava de me perguntar: Como é que alguém pode judiar de seres tão dóceis, tão amáveis, tão amorosos! Parecia estar pressentindo que meus amigos corriam perigo.
Naquela quarta-feira, a uma quadra de chegar a casa, já espichava o olhar à procura deles. Não os vi. Deviam estar enfiados em casa de algum outro amigo, mas não tardariam em chegar. Tratei de preparar um rango, certamente, chegariam famintos, como sempre.
Naquele dia, somente a Branquinha, que não anda pra lá e pra cá, recebeu-nos. Apesar de ter sido abandonada por sua dona, que mudou-se, mantém-se nas proximidades da antiga casa e é alimentada pelos vizinhos. Quando ouviu o ruído do carro, ergueu a cabeça e, antes que chegássemos, lá estava ela, empurrando o portão com o focinho, tinha pressa em entrar. Fazia isso sempre. E, já dentro do quintal, empreendia uma corrida, esperando que me juntasse a ela, no que era prontamente atendida.
No final do dia de quinta-feira, chegou meu companheiro, dizendo que já sabia por que Negão, Branquinho e Caramelinho não tinham aparecido; o vizinho, sabendo do carinho que tínhamos por eles, tratou logo de informar que os mesmos haviam sido recolhidos por uma ONG. Alguém havia reclamado que o trio perseguia os motoqueiros.
Os olhos marejados, dizia-me:
“É impensável saber aquelas criaturas presas em uma jaula ou acorrentadas. Quem teve coragem de mandar privá-los da liberdade? O peito me dói, parece que vou sufocar. À noite, o sono não vem.”
No dia seguinte, mais informações dadas por um morador revoltado com o acontecido: os donos de um mercadinho alegaram que o trio espantavam a freguesia. Os mesmos seriam castrados e postos para adoção, informava-lhe, mais tarde, o cunhado.
“Sendo a liberdade prerrogativa daqueles seres, como poderiam viver em jaulas ou em terreno cercado por altos murros ou, pior ainda, acorrentados?”
Quando se deu conta de que falava dos amigos no passado, disse sem disfarçar a tristeza:
“Eram quatro, na verdade, pois apesar de não andar pelas ruas com os outros três, em nossa casa, era evidente que existia uma hierarquia, todos obedeciam à Branquinha, que é ciumenta que só! Na hora de comer, era preciso colocar a comida em potes e distribuí-los em lugares distantes, onde um não fosse visto pelo outro, o que era muito fácil, já que a propriedade é grande. Agora só resta a Branquinha. Nem sei por quanto tempo. Não posso levá-la para minha casa. Não seria aceita pelas três que já tenho”.
– Oi, Teresa! Tudo bem? E seus amigos apareceram? – perguntei-lhe, certo dia, quando a encontrei em um supermercado.
“Na semana passada, entrou correndo no quintal um grandalhão, azul de tão negro. Pensei que eles tinham voltado! Corri em sua direção, mas, ele assustado, deu meia volta e como veio se foi. Percebi que não se tratava do Negão. O vizinho, vendo minha frustração, disse-me: “É filho do Negão com a Rebeca, esse é o nome oficial da Branquinha. Não perguntei a ninguém sobre os três. Tenho medo de saber. Toda vez que viemos para cá, tenho esperança de que apareçam, pois acho, que se estão vivos, é só uma questão de tempo para que fujam. No entanto, chega a hora de irmos embora e nada deles. Minha esperança é cada vez menor.”
– E a Branquinha, continua por lá?
“Continua. Não só ela, outros têm aparecido. Todos cria dela. Alguns, dela com o Negão. Ainda estão muito arredios. Um branco com malhas amarelas, já lhe demos um nome: Malaquias. Daqui a pouco, conquistamos a confiança e eles começam a armar acampamento em nossa casa! A Branquinha está prenhe novamente. Pena que não veremos mais nenhum filhote do Negão. Os cães têm uma percepção do ser humano que me espanta. Eles sabem reconhecer uma pessoa boa. Parecem que farejam a maldade de longe. Sentem que gosta deles. Logo, logo, nossa casa ganhará novos guardiões. O três, que se foram, são lembranças deliciosas, cheias de saudade! Enquanto a humanidade não aprender a ler gestos e olhares, muitos animais continuarão a sofrer.
– Que bom que há pessoas que amam os animais como vocês!
“Como não amá-los? Temos muito a aprender com eles sobre afeto. O amor humano é egoísta, sempre espera algo em troca. Até mesmo, o amor dos pais pelos filhos é assim: esperamos que eles nos amem, respeitem, sejam bem-sucedidos, que nos encham de orgulho! Esperamos que nos recompensem por toda a dedicação. É natural, não é mesmo? É assim que sabemos amar.”
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