NATAIS
José Fernandes
De repente, mais um ano marca nossa passagem pelo tempo. O imponderável tempo. Chegam as festividades natalinas. Quantas lembranças desfilando na passarela da memória! O tempo de ontem, em que as renas não transitavam pelas estradas que levavam à minha casa, e o Natal eram perguntas entaladas na garganta: por que o velhinho só premia as crianças da cidade? Por que ele nem olha para os meninos da roça? Por que se celebra o nascimento de um menino e só se vêem barbas brancas às portas das lojas? Será que esse papai noel é o menino que cresceu? Por que rezam no presépio e pedem presentes a esses velhinhos, se eles nem entram na igreja?
Um dia, a descoberta: os triciclos e os patinetes não vinham do pobre menino da estrela, que me sorria através dos reis magos, nem do velhinho que só enxergava crianças bem vestidas e calçadas nas ruas calçadas. A ausência da bicicleta ou do revólver de plástico nada tinha a ver com as estradas barrentas, nem com o sapato roto colocado à soleira da janela ou sob o banco da sala de visitas. Os vendilhões transformaram o menino em objeto de lucro, e trouxeram do mundo dos sonhos esse ser só presentes, só afabilidade fingida. E o capital se tornou a salvação dos homens, principalmente aqueles que venderam quase nada durante o ano. Agora, reza-se ao deus luz, ao deus mercadorias, ao deus cifrão.
Depois, o Natal das canções. O Adeste fidelis trazia os anjos à terra, encantados com as vozes meninas transformando os sonhos doridos em pétalas de paraíso. Apenas por alguns minutos, eles desciam, vestidos de branco, e tornavam aquela capela um enlevo celeste, um mistério vivo de sons sentidos e ouvidos pelas almas perdidas nos olhos do Deus recém-nascido, capaz de subtrair ao menino a memória das estradas lamacentas, das mãos calejadas, dos becos de café, da limpeza da doce cana que soltava dores pela palma da mão, das chifradas dos bois guia à descida da serra. O ontem e o hoje se fundindo em imagens de céu e inferno e transformavam a dor sentida em divino êxtase. E aquela noite era feliz no repique da harpa, no tanger dos sinos presentes e ausentes. Não havia as mentiras de noel: os rotos sapatos às soleiras das janelas. Era Natal! – Noite Feliz entoada por um coral de anjos humanos que me subtraía as lembranças antigas e enlevava-me a um tempo sem horas e demoras.
Depois, o Natal do só. Festas, apenas nos sons vindos das casas dos vizinhos, nos enfeites das lojas cheias de desejos de calças de tergal, de camisas volta ao mundo; lojas vazias cheias meu parco salário de estudante faminto. Festas nos olhos compridos, estilando saudades do ontem, ignorante de dores e ausências. Nunca mais aquele Natal de nada e de tudo, na presença dos entes que enfeitavam os dias de bem-querer. Apenas o Natal das palavras engolidas na solidão de quatro paredes nuas. O Natal em que inventava um duplo para abraçar-me e desejar-me Boas Festas: Feliz Natal!
Depois, o Natal sonhado nos olhos da amada. Noite feliz ao pé da árvore luz, ações de graças ao impassível Menino de dois mil anos. Um gordo Noel distribuindo lembranças a novas e velhas crianças; todas iluminadas pela felicidade. Novamente os natais coordenando presente e pretérito, perto e distante, presença e ausência, conjugando desejo e esperança, amor e amor.
Depois, o Natal família luzindo alegria, sonorizando noites e aleluias ao Menino que me sorri outro tempo, engastado no ontem que se insiste presente: Ana Carina multiplicando dedos, rasgando expectativas, vendo-se na boneca loira que gargalhava e dizia mamãe. Menina do Menino traçando riscos nos bordados da existência. Thiago correndo do robô, brinquedo real de uma adulta infância distante. Homem do Menino, estrela dos Reis Magos, e do homem infante, candeeiro de bois que desenhariam letras no engenho das artes. Homem do Menino que sabe dores e alegrias do mundo vividas pelo homem criança nas encruzilhadas do frio, aquecendo palavras que germinariam vida ao calor da fantasia.
Agora, o nosso Natal somado a Pedro que se faz pedra, para vencer o século, sem se esquecer de que o Menino renascerá sempre em nossas manjedouras, prontas a recebê-lo e a oferecer-lhe o aconchego da fé. Manjedouras que, mais do que nunca, precisam conjugar amor e amor, fé e esperança e, também, carinho e revolta. Pedro, menino semente de natais esperança, de natais amor, de natais Natal, conjugados à beleza e ao sorriso sublime de Lara, anjo do vô.
Agora, o Natal de crianças que continuam escrevendo o meu Natal. Aquelas que acrescentam pontos aos meus pontos, que enredam histórias à minha história, porque pintam imagens no surrealismo do real, na pipio das caatingas famintas, no teto das ruas, no estouro dos mísseis, no zinir das balas, na ganância dos noéis que lhes negam o sonho de um noel verdadeiramente noel. Natal das crianças que sonham um pratinho de nada para escaparem ao réquiem de cada dia. Crianças que bricolam imagens de sonhos amputados, de futuros explodidos em alguma mina abandonada, ou em algum peito pleno de afeto, mas seco de vida. Crianças de mães que gritam o grito de Edward Munch, que declinam natais e natais, ignorância e ignorância, amores e desamores e conjugam vida e morte. Feliz Natal???!!!
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