O NASCIMENTO DO VANDALISMO



     Ainda que o filósofo Voltaire já fizesse uso da expressão para definir aqueles que atacam as obras de arte, o termo vandalismo ganhou seu estatuto definitivo durante a Revolução Francesa de 1789. O abade Gregoire, deputado do Terceiro Estado e depois integrante da Convenção Nacional, fora encarregado por seus colegas para fazer um levantamento dos danos. Quais eram os prédios, privados, públicos ou religiosos (palácios, galerias, portais, abadias, mosteiros, conventos, catedrais, igrejas, capelas, cemitérios, tumbas, etc.) que tinham sido alvo da ira popular?
     Durante os anos anteriores, a partir da Queda da Bastilha em 14 de julho 1789, e do colapso da Monarquia Bourbon, em 20 de setembro de 1792, turbas pilharam diversos tipos de construções pela França inteira. Em forma de uma poderosa onda ou em pequenos grupos, rapinaram ou destruíram os mais variados livros raros, vitrais, quadros religiosos, estátuas de santos, reis ou nobres.
     Qualquer coisa que fosse identificada com o Antigo Regime, com a Igreja Católica ou ainda com a Arte Romana, estava em perigo aos olhos da plebe feroz. Incitados pelo convencional extremista Barère, até mesmo a cripta dos reis franceses situada na basílica de Saint-Denis foi invadida em 31 de junho de 1793 e os restos mortais dos dinastas jogados em valas comuns.
     Isto sem omitir-se o estrago causado nas memoráveis bibliotecas dos monges e das freiras, cujos livros sagrados foram rasgados ou jogados em pilhas fantasmagóricas.
     Fogueiras eram acesas com eles e pequenas multidões dançavam em redor delas como nas imemoriais cerimônias pagãs feitas ao ar livre (alguns estudiosos do comportamento das massas ou turbas observam que, por vezes, a volúpia predadora resulta de uma momentânea ruptura com as injunções do mundo adulto e um regresso aos primeiros anos da infância: crianças sentem um evidente prazer em destruir tudo o que lhes cai nas mãos)
                                   O relatório devastador
     O resultado da investigação resultou no Rapport sur les destructions opérées par le vandalisme et les moyens d'y remédier (“Relatório sobre as destruições operadas pelo vandalismo e os meios de remediá-lo”), apresentado em três sessões na Convenção, a última em setembro de 1794, logo após a queda de Robespierre e dos jacobinos. As observações do abade foram tão precisas que serviram como um modelo das atuais politicas patrimonialistas adotadas na maior parte dos países ocidentais.
     O levantamento era impressionante, quase não houve aldeia, vila ou cidade francesa poupada de alguma atrocidade contra as artes: Bayeux, Douci, Etain, Fontainebleau, Villefranche, Toulouse, Verdun, Versalhes, Chantilly, Arles, Chartres, Troyes e, acima de tudo, em Paris.
     A primeira contradição apresentada pelos atos de vandalismo observou Gregoire, é que era uma escandalosa contradição com os ideais do Iluminismo, a qual a Revolução de 1789 se gabava de ser a herdeira. Como uma sociedade que se reclamava "das Luzes" poderia conviver de braços cruzados enquanto as maltas incendiavam, depredavam e saqueavam o que viam pela frente? O pior nem tanto era o roubo - pelo menos o objeto era mantido inteiro e poderia de algum modo vir a ser recuperado mais tarde -, mas a destruição gratuita e sem sentido.
     Queimar por queimar, derrubar uma estátua no chão e dar marretadas até ela virar pó, apedrejar as vidraças dos palácios, por abaixo os candelabros de cristais, tocarem fogo nos tapetes caríssimos, estourarem os tonéis e garrafas nas adegas. Maravilhas do gênio humano em minutos viravam num nada, como foi o caso da enorme cabeça de Júpiter dilapidada em Versalhes.
     Apelou então aos bons cidadãos para que não permitissem ou mesmo denunciassem ameaças aos monumentos das ciências e das artes do passado. Era o patrimônio da nação francesa que se via ameaçado por uma ação irracional, primitiva, bárbara. Os verdadeiros patriotas eram responsáveis por eles, todos deviam preservá-los por qualquer meio possível.
     O abade Gregoire, homem extraordinário que lutara pela abolição da escravidão e pela integração dos judeus, atribuiu aquela insanidade a três motivos: à ignorância voluntária, à cupidez e ao oportunismo dos larápios e dos tratantes, a escória infiltrada na multidão. Não aceitou qualquer argumento que a justificasse. Nem o exaltado ódio ao passado, nem o justo ressentimento contra as castas dirigentes então depostas e exiladas.
    Recomendou que as autoridades republicanas locais fossem alertadas e responsabilizadas para assegurar a preservação dos bens nacionais e que não recuassem frente à matilha doida e vingativa que empanava há cinco anos - desde a Queda da Bastilha - os bons propósitos da Revolução feita em nome do Esclarecimento.
     Deste então, o termo "vândalo" se universalizou. Não há país que possa se orgulhar de jamais ter sido vítima de uma horda desatinada e predadora, palavra associada para sempre à destruição sem motivo algum, a um ato lunático e gratuito de barbárie. 
      Durante os primeiros meses do desenrolar da Revolução Russa de 1917, A. Lunacharski, o Comissário do Povo da Educação, chegou a ameaçar renunciar ao cargo devido às crescentes notícias de atos de vandalismo que chegavam de várias partes do império czarista recém caído. Populares e soldados juntavam-se para saquear as catedrais e as igrejas ortodoxas. Novamente o fenômeno revolucionário despertava nas massas o furor vandálico que, por igual, se reproduziu durante a Revolução Cultural chinesa por obra da Guarda Vermelha (1966-1976), patrocinada pelo próprio chefe da nação, Mao Tse Tung. 

( FONTE: terra.com.br)




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