PARA LEMBRAR O QUE É BOM E ESTÁ TÃO ESQUECIDO EM NOSSA MEMÓRIA. PROFESSORES TEMOS O COMPROMISSO DE LEVAR ESTA LITERATURA AOS JOVENS!


ARTIGO: Rosinha Minha Canoa, de José Mauro de Vasconcelos
Publicado em 2 de outubro de 2012 por selmovasconcellos
A R T I G O
Jornal enviado pelo escritor e jornalista
Nelson Tangerini, Rio de Janeiro, RJ.

In Rosinha Minha Canoa, de José Mauro de Vasconcelos
     Deixemos de lado a normalidade. Ela governa o mundo. Governa o homem no dia da Mulher, governa o adulto no dia da Criança, governa o pescador no dia da Árvore e por aí adiante. Esta normalidade distingue-se da realidade porque é cinzenta, preta e branca. Não admite o amarelo, por exemplo. Está repleta de leis e sussurra números, barra, siglas, a torto e a direito… E sobretudo, não sai do mesmo lugar.
Que fique a normalidade no seu lugar ( de vez em quando até dá jeito ) e deixemo-nos levar pela loucura. Qual ? A poética. A dos livros, dos sonhos e dos filmes. A loucura respeitada e legitimada, pelas histórias invariavelmente trágicas, que lhe deram origem. Histórias guardadas em segredo, ou divulgadas pelos segredos, o que contribui também, para a dignificação da tal certa loucura.
    “Rosinha Minha Canoa” é um hino a essa loucura. O herói é Zé Orocó. A paisagem, que envolve toda a primeira parte final, é a selva, onde a natureza é rainha e o homem ainda não plantou betão. É uma “praia branca do rio” dum rio onde desliza uma canoa “macia como se voasse”, com quem Zé tem uma história de amor.
     - Você gosta de mim ?
    - Xengo-delengo-tengo. Gosto. E você ?
     E para a canoa Rosinha acreditar, ele jura pelas cinco chagas de S. Francisco de Assis. A canoa continua desconfiada porque o santo só tem quatro chagas. Mas afinal são mesmo cinco, contando com “uma grandona no coração, que ninguém podia ver”, confirma o Zé.
    Um dia chega o “doutor”. Vem saber das doenças daquela gente tão longe. O Chico do Adeus queixa-se do seu mal : “vontade de viajá”. Depois vem à conversa o Zé Orocó e logo se esboça o mistério da sua existência. Ninguém sabe. “Só Deus mermo. Pruque Zé Orocó num conta nada pra ninguém.”
    Mas conta ! Conta à Rosinha. Os dois contam muitas histórias um ao outro. São sempre as mesmas, ela adverte, mas ele insiste, porque há sempre qualquer coisa de novo e bonito, que se acrescenta. As dele, pede-lhe a Rosinha, que seja uma das que começam por “Era uma vez”. As histórias dos homens, as mais bonitas, são as que começam assim.
    Obrigado pela função de tratar, o médico visita Zé Orocó. Vê um homem com “aspecto saudável e bondade na maneira de olhar notadamente incomum”. Só se queixa de tristeza, mas para isso a intervenção médica é completamente absurda porque “ou se cura sozinha ou a gente morre”. Tão bem recebido no pedaço de selva do Zé Orocó, o médico não quer acreditar que seja mesmo doença e tenta comunicar também com a canoa. Precisa de mais explicações para o fenômeno e Zé Orocó conta que aprendeu com S. Francisco de Assis. Tão íntimo se tornou do santo que o trata por Chico. Tudo comoveu o “doutor”, mas nada o demoveu.
     Zé Orocó é levado para “um grande casarão, cercado de velhas e enferrujadas árvores”. Fez tudo como lhe disseram para fazer, disse tudo certo, até o nome e a idade, mesmo o sítio onde nascera. Mandaram-no e ele despiu-se, constrangido, sem a dignidade com que se despia para se banhar no rio, deram-lhe roupas grosseiras. Tinham-no levado para um hospício, só porque falava com uma canoa ? Não era razão para o seu entendimento. Dizem-lhe que é doido. Jacto de água fria, injeções na veia, choques eléctricos e camisa de forças. Cada vez mais triste, cada vez mais fraco e mais calado.Depois a lição : “uma árvore é uma árvore e as árvores não falam”. E ele aprendeu aquela lição, mas conta à “moça”, por que é que ficou “doido”. Entristece mais, cada vez mais. Veio ter com ele o Deus das árvores, deus da paciência, mas em vão. Quem conseguiu mesmo qualquer coisa foi o Chico de Assis : fez renascer a paz no coração do Zé Orocó.
     O médico diz-lhe que ele está “outro”, “completamente normal”. “Se tristeza quer dizer saúde, sou o homem mais são do mundo”. Curado, para os médicos, volta à sua casa. Repete : uma árvore é uma arvore e evita falar com a Rosinha. Mas só ela mesmo consegue convencê-lo que “loucos são os outros”. Afinal Chico de Assis falava com lobos !… A canoa contou que tinha esperado, com paciência de árvore, o regresso de Zé para se despedir e partir.
    Para esquecer as árvores, comprou um animal, uma égua. Como diz o povo, o animal escolhe o dono. Pelo menos foi isso que ela contou, no regresso da feira. “Eu estava doida para você me comprar”.
     Regressemos à normalidade, com paciência de árvore.

     Leitura sugerida – Rosinha Minha Canoa, de José Mauro de Vasconcelos.

     José Mauro de Vasconcellos nasceu em Bangu,
Rio de Janeiro, a 26 de fevereiro de 1920. As canoas fizeram parte da sua infância, quando se aventurava pelo mar para nadar. Venceu vários campeonatos de natação.
Começou a sua atividade literária aos 22 anos, mas só em 1968 é que o seu nome passou para o Mundo, com o “Meu Pé de Laranja Lima” que está traduzido em muitas línguas. O seu êxito é uma referência, Tailândia, por exemplo, onde só o sucesso de Harry Potter se compara ao da obra brasileira.
     Há tempos, a sua morte veio no jornal. Uma pequena notícia apenas, para dizer da morte de um homem grande.

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