ZOIÚDA - LUIZ VILELA


                                                       Zoiúda
                                                       Por Luiz Vilela
     Zoiúda... Foi numa noite que ele conheceu Zoiúda. Foi numa noite — e nem poderia ser de outra forma, já que, como as prostitutas e as estrelas, as lagartixas também são seres da noite e só nela ou de preferência nela se mostram- que ele a viu pela primeira vez.
   Era uma sexta-feira, ele tinha acabado de chegar da rua: quando se aproximou da talha para tomar um copo d'água, lá estava a lagartixa, na parede, perto do vitrô que dava para a área de serviço do apartamento onde morava, no décimo andar. Era esbranquiçada, um pouco mais cabeçudinha que o comum e quase rabicó. Mas foram os olhos, foram os olhos o que mais lhe chamou a atenção: exorbitados, duas bolinhas brilhantes, parecendo duas miçangas. Observou-a mais um pouco, acabou de tomar a água e, o corpo pedindo cama depois dos muitos copos de chope, ele foi dormir.
  Na noite seguinte — de novo o bar, de novo as conversas e as bebidas, conversas e bebidas que só serviam para matar o tempo e para matar dentro dele alguma coisa que ele não sabia bem o quê, mas que sabia ser essencial —, ao chegar em casa, acender a luz da cozinha e se aproximar da talha, viu de novo a lagartixa, quase no mesmo lugar da véspera. Sim, era ela, ele não tinha a menor dúvida, apesar de estar meio de porre: ali estava o toquinho de rabo, ali estavam os olhos, os olhos desmedidos. "Zoiúda", disse, como que batizando-a. Nela, nenhuma reação, a não ser, pareceu-lhe, estatelar mais ainda os já de si estatelados olhos. E ficaram os dois novamente se olhando, ele pensando se haveria naquela cabecinha algo como o pensamento, algo que...
     Na terceira noite, domingo, o mesmo bar e os mesmos amigos e as mesmas conversas e bebidas, ele, num momento de quase convulsivo tédio ("isso mesmo", se diria depois, "convulsivo tédio"), lembrou-se de Zoiúda, isolando-se por alguns minutos do ambiente ao redor, um leve sorriso lhe aflorando aos lábios. "O que foi?", perguntou a amiga que estava a seu lado, na mesa. "Estou me lembrando da Zoiúda", ele respondeu. "Aquela dos nossos tempos de faculdade?", perguntou a amiga. "Não", ele disse, "é outra; essa eu acho que nem chegou a prestar o vestibular...".
     "Zoiúda, Zoiudinha", disse em voz alta, depois de entrar em casa e acender a luz. Como em quase todas as noites, foi direto à cozinha. Mas... Zoiúda não estava lá. Não estava. Ficou meio decepcionado. Tinha certeza que... Chamou-a, uma vez, duas, três, esperando que ela, ouvindo sua voz, aparecesse, vinda lá de fora, da área ou até do paredão do prédio; mas ela não apareceu.
    "Essas mulheres... A gente não pode mesmo confiar..." Aliás aquela, ele pensou, não só mulher não era, como talvez nem fêmea fosse, pois lera uma vez que nas espécies animais o macho quase sempre tem a cabeça maior; além disso, a cauda... A cauda, a cabeça e tinha 



ainda mais alguma coisa, alguma coisa que ele até agora, de manhã, no carro, estava tentando lembrar, enquanto se dirigia para a escola (uma escola pública num dos bairros mais longes da capital, onde dava aulas de português para um bando de adolescentes desinteressados e distraídos). Não, não lembrava; podia desistir. Mas também, diabo, que importância tinha aquilo? Nenhuma, nenhuma importância.
    "Apareceu uma lagartixa no meu apartamento", contou, no intervalo. "Uma?", o colega admirou-se. "Pois lá em casa, uma ocasião, tinha umas 300. Mas aí eles me ensinaram um veneno, e eu pus: não ficou uma só para contar a história. Se você quiser, eu posso te passar o nome”. "Eu tenho pavor", confessou a colega, "eu tenho pavor de lagartixa. Se eu souber que tem uma dentro de casa, eu simplesmente não durmo. Uma vez eu quase telefonei chamando o Corpo de Bombeiros, vocês acreditam?". "Acho que eu sou meio maluco", ele disse, "acho que eu sou mesmo meio maluco" — mas nenhum dos dois estava mais prestando atenção nele.
     À noite, naquela plena segunda-feira, ele não saiu, substituindo o bar pela TV — a mesmice pela idiotice, pensou. Sentou-se só de short (era outubro, um calorão danado), acomodou-se na poltrona da sala, pegou o controle remoto e ligou a televisão. Algum tempo depois, ao sentir sede, foi até a cozinha e... "Zoiúda!", exclamou, com a alegria de um menino, "você está aí!...". Estava; ali estava ela de novo, próximo à talha, e, como sempre, permaneceu impassível — ou lá dentro, àquela hora, o minúsculo coração também estaria batendo um pouquinho mais forte?...
     O certo é que, entre aparições e desaparições, entre o atento silêncio dela e as peremptórias declarações dele — "Zoiúda, tirando minha mãe, você é a única criatura que eu amo hoje no mundo" —, Zoiúda passou a ser para ele uma... uma espécie de companhia. Afinal, num apartamento onde havia somente ele de gente e onde, por dificuldade em criá-los, não havia cachorro, gato ou passarinho, ela era uma presença, um ser vivo a quem ele podia dirigir a palavra, embora não houvesse resposta — mas para que resposta? Não queria resposta. Queria apenas falar. Apenas isso. "Né, Zoiúda?”
     E assim, como nas histórias antigas, foram se passando os dias. Até que, tendo de fazer uma viagem e se ausentar por uma semana, ao voltar, ele não viu mais Zoiúda. Partira para outras bandas? Morrera? Ele não sabia. O fato é que não a viu mais, em nenhuma noite.
     Sentiu falta dela? Imagine; imagine um homem sentir falta de uma lagartixa... Claro que ele não sentiu. Mas sentiu — tinha de admitir — que aquele apartamento ficara um pouco mais vazio e aqueles fins-de-noite um pouco mais tristes.

Texto extraído do caderno “Mais!”, de 24/11/2002, publicado pelo jornal “Folha de São Paulo” – São Paulo, pág. 12.

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