PARÁBOLA – MÁRIO DE
ANDRADE
Começo por uma história. Quase
uma parábola. Gosto de falar por parábolas como Cristo... uma diferença
essencial que desejo estabelecer desde o princípio: Cristo dizia: “Sou a Verdade”.
E tinha razão. Digo sempre: “Sou a minha verdade”. E tenho razão. ... Vamos à
história!
... e Adão viu Lavé tirar-lhe
da costela um ser que os homens se obstinam em proclamar a coisa mais perfeita
da criação: Eva. Invejoso e macaco o primeiro homem resolveu criar também. E
como não soubesse ainda cirurgia para uma operação tão interna quanto
extraordinária tirou da língua um outro ser. Era também – primeiro plágio! –
uma mulher. Humana, cósmica e bela. E para exemplo das gerações futuras Adão
colocou esta mulher nua e eterna no cume do Ararat. Depois do pecado porém indo
visitar sua criatura notou-lhe a maravilhosa nudez. Envergonhou-se. Colocou-lhe
uma primeira coberta: a folha de parra.
Caim, porque lhe sobrassem
rebanhos co o testamento forçado de Abel, cobriu a mulher com um velocino
alvíssimo. Segundo a mais completa indumentária.
E cada nova geração e a raças
novas sem tirar as vestes já existentes sobre a escrava do Ararat sobre ela
depunham os novos refinamentos do trajar. Os gregos enfim lhe deram o coturno.
Os romanos o peplo. Qual lhe dava um colar, qual uma axorca. Os indianos,
pérolas; os persas, rosas; os chins, ventarolas.
E os séculos depois dos
séculos ...
Um vagabundo genial nascido
a 20 de outubro de 1854 passou uma vez junto do monte. E admirou-se de, em vez
do Ararat de terra, encontrar um Guarisancar
de sedas, cetins, chapéus, joias, botinas, máscaras, espartilhos... que
sei lá! Mas o vagabundo quis ver o monte e deu um chute de vinte anos naquela
eterogénea rouparia. Tudo desapareceu por encanto. E o menino descobriu a
mulher nua, angustiada, ignara, falando por sons musicais, desconhecendo as
novas línguas, selvagem, áspera, livre, ingênua, sincera.
A escrava do Ararat
chamava-se Poesia.
O vagabundo genial era
Artur Rimbaud.
Essa mulher
escandalosamente nua é que os poetas modernistas se puseram a adorar ...
Andrade, Mário de. “A escrava que não é Isaura”. São Paulo/Brasília ,
Martins/INL/MEC. 1972. (Obra Imatura)
Glossário:
Lavé – Javé, Jeová, designação de Deus no Antigo testamento;
Ararat – monte da Turquia;
Velocino – pele de cordeiro, ovelha ou cordeiro com lã;
Peplo – túnica sem mangas presa ao ombro por fivela;
Axorca – bracelete, pulseira de prata;
Guarisancar – pico do Himalaia;
Artur Rimbaud – poeta francês (1854-1891), aos 16 anos publicou poemas
geniais e exerceu influência sobre a revolução da poesia moderna.
1 comentários:
quem é que procura cultivar a arte poética redescoberta pelo ´genial vagabundo´?
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