Biografia de Thomas Mann revela o homem
difícil por trás do escritor de gênio


Flávio Moura

Admirar o escritor alemão Thomas Mann é fácil. Difícil é gostar da pessoa. Quem afirma é Donald Prater, autor de Thomas Mann: uma Biografia(tradução de Luciano Trigo; Nova Fronteira; 666 páginas; 59 reais). Gigante da literatura mundial do século XX, Mann já teve a obra esmiuçada até o osso. Sobre sua vida, porém, o material disponível era raro. É essa lacuna que o livro de Prater, lançado na Inglaterra há cinco anos e recém-publicado no Brasil, vem preencher. A biografia foi escrita com base nos diários do escritor, cuja publicação só foi iniciada em 1975, vinte anos após sua morte. Prater traz informações inéditas sobre os pendores homossexuais de Mann e analisa em minúcia os dilemas do autor como figura pública, entre eles as questões que levaram à demora em se posicionar contra o nazismo. Acima de tudo, o livro mostra por que Mann é um autor mais admirado do que amado. A julgar pelo relato do biógrafo, muitas vezes ele se mostrou um sujeito egocentrado, pedante e inacessível.
     Não se trata, é bom que se diga, de uma dessas biografias raivosas, tão em voga nos Estados Unidos e na Europa, cujo propósito é destruir a imagem do biografado. Longe disso. Mas, à medida que a história avança, é a imagem de um Mann esquivo e antipático que vai se formando. Segundo Prater, ele fazia questão de apresentar uma fachada respeitável. Essa respeitabilidade se traduzia numa frieza que desencorajava qualquer tipo de intimidade. Filho de um rico senador de Lübeck, cidade no norte da Alemanha, Mann tinha um modo de vida esnobe e sempre foi cioso de seu status. Ao cortejar Katia, a futura esposa, ele sabia exatamente quais as portas que a família da moça, rica e bem relacionada, poderiam lhe abrir no meio artístico de Munique. O ideal de vida burguês, porém, batia de frente com a tendência ao homossexualismo que desde cedo se manifestou. O livro narra as paixões platônicas que ele nutriu por rapazes ao longo da vida e as duchas frias que tomava para "acorrentar os cachorros escondidos no porão".
     Um dos capítulos mais extensos de sua trajetória é a briga com o irmão Heinrich. Quatro anos mais velho, o irmão também enveredou pela literatura. O que no início era mera competição acabou se transformando em incompatibilidade irremediável. As raízes da desavença eram políticas. Heinrich desde cedo defendeu a democracia e o cosmopolitismo. Thomas, por sua vez, apegou-se ao nacionalismo e defendeu com unhas e dentes a ideia de um retorno aos valores básicos do "espírito alemão" (ou seja, os do protestantismo e do romantismo). Depois da deflagração da I Guerra Mundial, as desavenças se tornaram públicas. Ambos trocaram farpas em artigos de jornal. Romperam relações e só voltaram a se falar em 1922, quando Heinrich contraiu uma doença grave. Thomas, no entanto, jamais perdoou o irmão completamente – mais ainda por perceber que a razão nunca estivera do seu lado. No entreguerras, Mann suavizou progressivamente suas opiniões políticas. Mas até o fim foi um conservador. Quando o nazismo se estabeleceu na Alemanha, ele ergueu sua bandeira contra o führer. Só não esteve entre os primeiros a fazê-lo.
     Além de mostrar esse lado pouco grandioso da personalidade do escritor, a biografia revela conexões entre a vida pessoal de Mann e sua obra. A decadente família aristocrática do romance Os Buddenbrooks (1901), seu primeiro sucesso, teve como modelo a própria família do autor. O argumento para A Montanha Mágica(1924) ele concebeu após visitar a mulher num elegante sanatório em Davos, na Suíça. Ao chegar lá, um médico sugeriu que Mann também passasse uma temporada no local. Nas primeiras páginas do romance, é exatamente isso que se dá com o protagonista, Hans Castorp. O livro dedica boa parte ao período de gestação de Doutor Fausto (1948), que não existiria sem o intenso diálogo com o filósofo Theodor Adorno e o músico Arnold Schoenberg. Características dos dois, aliás, podem ser encontradas nos personagens Kretzschmar e Leverkühn, centrais no romance. Adorno, Mann e Schoenberg, assim como o dramaturgo Bertolt Brecht e o escritor Herbert Marcuse, estavam exilados nos Estados Unidos durante a II Guerra e se reuniam para debater a situação da Alemanha.
     Para o crítico húngaro Georg Lukács, Mann foi um dos maiores escritores modernos por ter buscado expressar como um todo a realidade e o pensamento de sua época. Não à toa, Goethe, nome central do romantismo alemão, era a figura em que ele projetava seu ideal como artista. Homem de Estado, autor de obras-primas da literatura, exímio desenhista e entendedor de botânica, mineralogia e arquitetura, Goethe encarnava a ideia do artista total, do sujeito que domina por inteiro o espírito de sua época. Thomas Mann queria ser o Goethe do século XX. Não ficou longe. "Não fico triste ao me ver como aquele que veio por último, concluindo e fechando um ciclo", declarou ele no fim da vida. Derradeiro escritor a quem se pode chamar de clássico, ele realizou com sucesso um projeto literário de ambições globalizantes. Política, religião, ciência, arte – nenhum grande tema escapou à sua pena. Tudo bem que a megalomania tenha feito dele um sujeito difícil. Mann, no entanto, quase sempre conseguiu estar à altura de suas pretensões.

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