RITA - MEU PRIMEIRO CONTO. ESPERO QUE LEIAM E GOSTEM.

                        __A polícia tá na fazenda Encantado, tão cavocando. Deve de ter ouro na terra do Zé Fernandes.
O boato, feito no único posto de gasolina da pequena cidade, correu rápido feito rastilho de pólvora. Eram aproximadamente nove horas da manhã, às dez, uma estranha movimentação já se fazia perceber .
Os miseráveis e os desabrigados do lugar, tomando conhecimento do boato, começaram a se dispersar, deixando os bares imundos e a pequena praça que lhes servia de moradia. Saiam silenciosos. A possibilidade de trabalho na exploração de uma mina, era uma esperança que em poucos segundos tomou forma.
            O mesmo pensamento silencioso passou a ocupar a cabeça das dezenas de desocupados que perambulavam pelo lugar. Ninguém trocava ideia, como em cidade esquecida por Deus cada um trata de si, melhor era agir sem espalhar.
Às onze horas, começaram a se concentrar próximo à entrada de Encantado. A princípio, não passavam de uma dezena que passou para centena num instantinho. Olhares desconfiados, meio atravessados, vez por outra eram trocados, já que cada homem daqueles podia representar um adversário, um impedimento na hora de se pedir o trabalho. Os mais jovens, então, se fosse possível matar alguém em pensamento, teriam morrido no instante que ali chegavam. Pensavam, mas ninguém dizia nada, nem mesmo os que costumavam dividir a cachaça enquanto papeavam e jogavam baralho nos botecos imundos. Nessa hora não tem amigo não. 
A cabeça fervia de tanta pergunta que não era feita, podia que alguém soubesse de mais coisa... As perguntas pendiam-lhe da ponta da língua. Todos os infortúnios concebíveis, aquela trupe de errantes refugos humanos já sofrera, estando no lado avesso da vida. A expectativa se tornava quase intolerável: excitação, tensão nervosa, pensamentos em efervescência, abstração. Compartilhar ou não o que lhe corria na cabeça? Mas e se soubesse menos que ele e resolvesse bancar o esperto, pescando daqui, colhendo verde dali? O melhor mesmo era ficar de boca fechada e não dar conversa pra ninguém. Como diz o bom e velho ditado: em boca fechada, não entra mosca.
            O calor era terrível. O sol, a pino, ardia no lombo, a boca parecia grudar, a língua engrossar. Nem uma sombra! Um copo de água? Qual! De onde? Entrar na fazenda sem autorização , não dava, podia se queimar e não conseguir o trabalho, o jeito era aguentar. E firme!
            A presença de tanta gente do lado de fora da fazenda, acabou chamando a atenção do delegado Natal - recebera este nome porque nascera no dia vinte e cinco de dezembro – que mandou um de seus homens averiguar o que aquele povo fazia ali. Estava intrigado, como é que aquela gente soubera dos fatos se tudo havia sido feito com absoluta discrição?
Do lado de fora, a multidão já não era formada só de miseráveis, tinha gente de todo tipo. Muitos estavam ali simplesmente porque não tinham nada para fazer, gente de vida fácil que passa a vida esperando o tempo passar. Esse tipo, que só espera o tempo passar, costuma se ocupar da vida alheia. Faça sol, faça chuva não arredam pé de um lugar onde sentem cheiro de desgraça. São os curiosos de carteirinha, e a polícia nas terras da família mais rica das redondezas, era coisa que não se podia desprezar.
O homem, encarregado de fazer a tal averiguação, voltou dizendo que nada descobrira porque nada ouvira, já que ninguém nada dissera. Os donos da fazenda estavam temerosos, por hora a suspeita do delegado não se confirmara, mas e se aquela gente resolvesse entrar? Eles poderiam ter mais problemas além daqueles que já estavam tendo.
            Doutor Natal resolveu agir, era melhor prevenir do que remediar.
            __ Cândido, põe gente de guarda nas entradas da fazenda. Ninguém entra, ninguém sai até que tudo esteja acabado.
             Todo o contingente, que ali havia, foi utilizado. Até os trabalhadores da fazenda e seus filhos. Nem os cachorros que tivessem serventia, arreganhando os dentes para assustar, foram dispensados. Afinal, era preciso manter a ordem e garantir a segurança tanto do lado de dentro, quanto do lado de fora, já que lá se havia formado uma verdadeira turba, cujas intenções ele ignorava. Ele, como delegado, tinha a obrigação de zelar pelo bem da coletividade.
            O ar se tornara sufocante por causa do calor e o tempo gotejava lentamente. Parecia que os minutos haviam se transformado em horas, mas ninguém arredava pé dali. Cada qual pensando em seu interesse, uns no trabalho que podiam conseguir, outros na satisfação de ver aquela família em papos de aranha. Isso não era coisa que aqueles, de vida fácil, que passam o tempo cuidando da vida dos outros, podiam perder. O espetáculo seria grandioso! Valeria o sacrifício. Ah! Valeria sim!
            O silêncio tenso permanecia e o sol castigava ainda mais os miseráveis já maltratados pela fome do dia a  dia, turvando os olhos e provocando uma tontura que quase chegava a um desmaio. Sair dali? Nem pensar! Se pelo menos não estivesse tão quente! Sair dali, podia significar dar as costas à sorte. E a sorte é madrasta, não é mãe não! Não podia arriscar!
            É, ficar esperando não se sabe o quê, com a cabeça cheia de planos, dá comichão. Silêncio e tempo passando devagar, cabeça cheia, barriga vazia, podem levar o homem a pensar coisas. Uns com muito, outros com menos. Muito menos! Ouro nas terras de Zé Fernandes! Esse era um dos que tinha demais. Não precisava de mais riquezas. Esse pensamento azeda a alma do que nada tem. Alguns, ali, não têm nem certidão de nascimento! Não existem para ninguém, nem mesmo pra aquele bando de urubus disposto a comer qualquer carniça! Não votam! Quem se importa com gente que não vota e não existe? A raiva sobe, surda, o suor pinga. Chega de esperar! Vou entrar! Bufando faz menção de ir em direção à entrada da fazenda, mas ninguém se mexe! Recua. Melhor mesmo ficar quieto e esperar.
            A pequena cidade parecia abandonada. Ninguém em parte alguma. Até o comércio estava fechado e eram só cinco horas da tarde! Mas quem passasse em frente à pequena construção, que servia de delegacia, podia ouvir os lamentos chorosos de um desesperado:
            __Eu sou inocente. Me tirem daqui. Perguntem ao Jamelão se o que eu disse não é verdade. Por favor, seu guarda! Eu não fiz nada!
            Era Everaldo Luz, conhecido na cidade pelo nome de guerra: Nadine. Rapaz franzino, de voz estridente e gestos afetados que dividia espaço com Ritinha no bordel de Jamelão, atendendo freguês de gosto mais extravagante.
            Ritinha, morena bonita, ambiciosa, fogosa e faceira, chegara àquela cidade por pura obra do destino. Resolveu ir embora de sua cidadezinha e tentar a sorte na cidade grande e, para isso, contou com a ajuda de um caminhoneiro que conhecia desde menina e que lhe oferecera carona.
            Tudo ia bem até que Rubens, o caminhoneiro, resolver que ela devia pagar pela viagem. Pediu, pediu, xingou, esbravejou, socou e nada! A infeliz mesmo com a roupa em tiras, saiu correndo do caminhão e se enfiou mato a dentro sem ligar para a escuridão do lugar deserto, onde nem luz de vaga-lume se via, só o brilho das estrelas naquela noite de breu. Pois que se virasse, deu comida, até pagou um quartinho em um hotelzinho na beira da estrada, quando podia tê-la deixado dormindo ao relento. O que custava, então, satisfazer a fome dele? Ia se perder mesmo na cidade grande! Ligou o caminhão e se mandou! Nem olhou pelo espelho para ver se Rita tinha saído do mato. Era muita ingratidão! Que se virasse!
            Quando o dia clareou, Rita saiu do mato, olhou para um lado, nada!Para o outro, nada também! Que fazer? Pôs-se a andar,  andou por horas a fio. Finalmente chegou à cidade. Bateu de porta em porta pedindo emprego como doméstica, fazia qualquer tipo de trabalho. Mas como moça sozinha e bonita desperta dois tipos de sentimentos nas pessoas: inveja em mulher feia que não quer saber de tentação andando dentro de sua casa, e cobiça em homem mal casado, Rita se viu em um mato sem cachorro. Acabou adormecendo em um banco da praça.
            Toda cidadezinha, de fim de mundo, tem uma praça que é onde os desocupados se abrigam do sol enquanto o mundo gira, a moçada namora no fim do dia e as fofoqueiras se reúnem aos domingos depois da missa, na única igreja católica que há, e que é maior até que a sede da prefeitura, que é para saber das últimas novidades.
            E foi ali que Nadine a encontrou, cansada, esfomeada, esfarrapada, entregue ao Deus dará. Compadeceu-se da pobre e levou-a para o lugar que tinha como a sua casa, o bordel de Jamelão Cintra. Roupas lhe foram emprestadas, foi alimentada e lhe deram um lugar para descansar, no dia seguinte, as coisas se resolveriam.
            O sol já ia alto e Rita nem sentia o queimor em seu rosto. A música tocada em volume altíssimo, as gargalhadas e, por vezes gritos, não atrapalharam o seu sono. Acordou com Nadine que a sacudia:
            __Acorda, bela adormecida. O patrão quer lhe falar. Te apressa se não fica sem café.
Rapidamente a moça levantou-se, ficou em dúvida se devia ou não vestir as roupas que lhe foram emprestadas. Vestiu. Não podia se apresentar ao dono da casa com os andrajos com que ali chegara. Jamelão estava à sua espera na pequena sala, que servia, também, como sala de baile.
            __Tenho uma proposta pra lhe fazer, você pode trabalhar pra mim. Tá interessada?
Claro que estava! Tudo foi tratado, nos mínimos detalhes que era pra ela não pensar que podia bancar a espertinha. Tudo preto no branco e com algum dinheiro, pouco, é claro, lá foi Rita tratar de comprar alguma roupa que a tornasse apresentável. Aos olhos dos fregueses, bem entendido.
            Como já disse, em cidade esquecida por Deus, até pensamento corre rápido, Jamelão encarregou duas ou três mulheres para tornar de conhecimento público que a casa tinha carne nova, que não havia sido batida. E que, na noite do dia seguinte, haveria leilão. Por que não naquela noite? Simples! Como é que os tubarões da redondeza iam ficar sabendo da novidade? Carecia dar tempo para que a notícia se espalhasse e chegasse aos ouvidos daqueles que pagam bem por carne fresca!
            Na noite seguinte, apesar da sordidez, o lugar estava cheio. Jamelão não cabia em si de tanto contentamento! Ia tirar a barriga da miséria! Aquela moleca havia de lhe render um bom dinheiro. A expectativa era geral. Até as mulheres honradas sabiam do evento, e sabiam que seus maridos estariam lá. Mas fazer o quê? O melhor era se faze de morta. E depois, que diferença fazia se eles iam se refestelar com uma puta, desde que elas continuassem a ser as virtuosas esposas? Importância nenhuma, queriam mais é que eles se esvaziassem por aí! Menos um incômodo!
            Às 20h00min. , do dia seguinte, já havia fregueses no bordel de Jamelão. Ninguém queria correr o risco da casa encher demais e não poder participar do leilão dando um lance, por mínimo que fosse! Boas que desse sorte?
            21h00min. , envolta em véus baratos, Rita é conduzida à sala principal e oferecida em leilão. Quem desse mais, desfrutaria. Um frenesi tomou conta do ambiente. Como seria a nova aquisição de Jamelão? Bom para ele que a mercadoria valesse a pena porque se não fosse, se veria em maus lençóis. Era só o que faltava ficar fazendo propaganda enganosa!
            Um lance daqui, outro de lá, e quem acaba arrematando o produto é o filho de um rico fazendeiro da região, que tendo ganhado o leilão não quis saber de perder tempo, e sob protesto, se retirou da sala para usufruir do que lhe havia custado uma quantia razoável.
            Durante alguns dias, não se falava em outra coisa nos círculos masculinos, que não fosse Rita. Era uma disputa só. Rita nem conseguia atender tantos fregueses! Era casa cheia todas as noites, e Jamelão rindo à toa, tinha bom faro, sem falsa modéstia! Suas previsões se confirmavam, estava faturando como nunca! E Rita então? Estava deslumbrada, achando mesmo que Deus escreve certo por linhas tortas e que ali estava a sua riqueza.
            O que é novo em pouco tempo fica velho, e por que com Rita seria diferente? Ah! Não seria, não! Passadas algumas semanas, lá estava ela, aceitando qualquer um, esperando que o tempo de vacas magras passasse.
            __Por favor, seu guarda, me tire daqui! Eu sou amiga da Ritinha.
            __È melhor você parar com essa gritaria. Você tá bem encrencado. Todo mundo sabe da sua briga com aquela piranha por causa de macho. Muita gente viu quando você tentou fazer barba e bigode naquela infeliz com uma navalha.
            __Fale com o Jamelão! Ele vai dizer que eu não acertei aquela vadia.
            __Te aquieta que o doutor Natal tá investigando a tua história.
            Sucedera que uma semana antes, Nadine atacara Ritinha com uma navalha porque a vadia lhe tirara um freguês. Partira para cima da outra que era pra mostrar que quem invadisse um território conquistado, não saía ilesa. E o de Nadine, então, muito menos! Achar que podia lhe tirar o pão de cada - dia e passar em branco, era o mesmo que pedir para o sol não aparecer e o dia não amanhecer. Tinha que mostrar que com ela ninguém brincava. Estava disposta a defender seu território com unhas e dentes. 
            __E só não conseguiu porque o macho dela chegou bem na hora e conseguiu evitar que você cortasse a infeliz.
            __Eu não ia matar. Só queria assustar. Depois que ela saiu com ele de lá, não vi mais a Ritinha.  Eu juro!
            Rita sumira naquela noite, e Jamelão cheirando a encrenca, no quarto dia, resolvera dar ciência do desaparecimento à polícia que, sabendo da confusão que houvera, resolvera deter Nadine para averiguação, já que era a principal suspeita do sumiço da concorrente. Depois de ouvir Everaldo e confirmar a história contada com Jamelão, o delegado resolvera fazer uma visita ao rapaz que havia arrematado Rita na noite do leilão.
            Salvador era o nome do rico herdeiro que vivia a vida a folgar. Bebida, mulheres, carro importado e drogas, era assim que conduzia seu tempo. Festa, festa e festa. Sua vida se resumia nisso, pois tendo voltado de uma cidade grande, para onde fora sob o pretexto de estudar, o que podia lhe oferecer aquele fim de mundo, já que trabalhar a terra não lhe interessava?
            O ócio é inimigo feroz da virtude, e o rapaz que já era de caráter fraco, acabou por se perder no mundo ilusório do dinheiro disponível sem que, para tê-lo, precisasse fazer algum esforço. A permissividade dos pais, que procuram dar ao filho do bom e do melhor, julgando que assim agem certo, pode operar de forma negativa na formação do indivíduo, e foi isso o que aconteceu com Salvador. Amor e facilidades demais!
            Chegando à fazenda, o delegado pôde confirmar com o rapaz a história contada por Nadine. Realmente era tudo verdade. Ele entrou no bordel no momento em que Everaldo bramia a navalha e na penumbra do lugar, o brilho da lâmina riscava o ar, em busca do corpo de Rita, que gritava desesperada pedindo socorro e procurando se defender como podia.
            __Eu não podia deixar que alguém fosse assassinado, sem tentar ajudar. Foi o que eu fiz, seu delegado. Tirei a moça dali e a deixei na praça. Em seguida, vim para casa e não vi mais Rita. - dizia Salvador ao delegado. Não negara que saíra do bordel com a moça.
            Esse não era um interrogatório, lhe explicara o delegado que fora até a fazenda, não o chamara à delegacia para evitar falatório. A conversa acontecia dentro da camionete que Salvador dirigia pela fazenda para que Natal conhecesse a propriedade.
            Quase nos limites das terras com um pedaço de mato, algo chamou a atenção do delegado, que durante a excursão feita, perscrutava atentamente cada palmo de lugar que seu olhar alcançava. Indubitavelmente, na divisa, a terra fora remexida, e, a julgar pele extensão, isso não fora feito com ação de uma pá. Ali fora usada uma máquina. Nada comentou sobre isso, queria juntar alguns fatos.
            Retornando à fazenda, viu que no galpão havia uma retroescavadeira. Perguntou ao pai de Salvador se o mesmo tinha a intenção de construir algum açude. Isso foi feito depois do delegado ter aceitado o café que lhe fora oferecido e Salvador ter saído, alegando um compromisso. O proprietário disse que não cultivava tal intenção, e Natal comentou que chegara a essa conclusão depois ter visto que um pedaço de terra havia sido remexido. E como imaginava, o velho disse que o delegado vira mal, já que nenhuma ordem desse tipo fora dada.
            Saindo dali, o delegado dirigiu-se à casa do juiz, relatou as suas suspeitas e solicitou um mandado de busca que lhe permitisse escavar o local suspeito. Precisava agir rápido, afinal, Everaldo estava detido e ele não poderia liberá-lo, pois estava claro que o infeliz poria a cidade em polvorosa, assim que botasse os pés para fora da delegacia.
            De porte da autorização, no dia seguinte, solicitou homens à delegacia vizinha e, atendido, retornou à fazenda onde morava Salvador, que ainda não havia retornado a casa.
            E foi executando essa empreitada, que um joão-ninguém, que por ali passava, pensou que se escavava a terra em busca de algum tesouro, tratando de dar ciência do fato à pequena cidade carente de novidades. E, assim, o furdúncio estava armado e toda aquela gente foi conferir de perto o que acontecia. Cada qual torcendo por si, para que sua suspeita se confirmasse. Certo era que algo grande estava acontecendo! Podia ser ouro, podia ser encrenca feia para a família. Fosse o que fosse, alguém sairia dali satisfeito.
            Enquanto Rita enfrentava o tempo de vacas magras, e se ocupava de qualquer tipo de freguês que aparecesse e solicitasse os seus préstimos, certa noite, Salvador voltou ao bordel e terminou nos braços dela.
            Estava resolvido, Rita não atenderia ninguém, só a ele. Ela gostou da ideia de ser exclusiva. Não precisaria aturar aquela ralé fedendo a suor e cachaça barata por uns míseros trocados. Vez por outra, Salvador aparecia, pagava o aluguel do quarto, a comida e ainda lhe deixava algum dinheiro para suas despesas com produtos de higiene etc.
            Por hora estava bom, até que a situação melhorasse e a fartura voltasse, ia vivendo assim, sem nada fazer a não ser esperar por Salvador. Se tivesse tido juízo e feito um pé de meia, enquanto a maré estava alta, podia ir embora daquele lugar, mas o que havia ganhado, parte mandara para a família, parte fizera um investimento em si mesma, comprando roupas, perfumes e bugigangas para se enfeitar. Nada guardara, não contava com uma mudança, achava que estaria em alta por um bom tempo. Pelo menos, tempo suficiente para juntar uma boa quantia e cair fora dessa vida.
            Numas das visitas à sua amante, Salvador observou que ela já não estava mais com o corpo de antes, devia ser a boa vida que estava levando.
            __Você está engordando. Vida boa demais. Não quero saber de mulher gorda!-reclama Salvador.
            __Também, passo o dia sem fazer nada, nem dançar eu posso porque você não deixa. Mas não se preocupe que a sua Ritinha não vai ficar feito porca engordadeira. Da próxima vez, vai me encontrar nos trinques. - disse Rita, enquanto vestia a roupa.
            Nos trinques? Depois de três semanas, estava ainda mais gorda, a relaxada. A cintura fina, sumira, os peitinhos que ele tanto gostava, se derramavam e já não lhes cabiam nas mãos. Alguma coisa estava errada. Naquele angu tinha caroço.
            Um arrepio percorreu o corpo de Salvador, e se... Não queria nem pensar em tal coisa. Mas pelo sim, pelo não, era melhor ter certeza, e para tal usou uma tática que, com mulher, não falha nunca: voz amorosa e carinho!
            __Vem cá, minha nega. Conta pra mim o que está acontecendo. Você está atrasada? Não tenha medo, se estiver a gente dá um jeito. Não vou te abandonar. Há quanto tempo a tua menstruação não vem?
            __Dois meses. Mas não se preocupe que é só um atraso normal. Acontece. - diz Rita com o coração disparado.
            Era só o que faltava. Precisava ter certeza para dar um jeito na situação. Tudo o que Salvador não podia, era dar um neto a seu pai que fosse filho da puta! Seria deserdado! Adeus vida boa!
            __Toma esse dinheiro e amanhã bem cedo vá fazer um exame de sangue. - era preciso ter certeza antes de agir.
            Não deu outra: positivo, positivo... Essa palavra lida, no resultado do exame, martelava a cabeça de Salvador. Precisava agir com cautela e convencer aquela desgraçada a tirar a cria. Já pensou se a infeliz se recusa para garantir o futuro às suas custas? Estava ferrado! Saiu atordoado. Seu pai e sua mãe tão imbuídos da fé cristã, jamais aceitariam um neto nessas circunstâncias. Precisava se livrar do embaraço!
            Um mês passou sem que Salvador voltasse ao bordel. O aluguel do quarto estava atrasado e logo nem comida lhe dariam mais. Afinal quem é pobre e não trabalha, não come nem mora em lugar algum, azar seu que estava prenha. Ninguém se importava com isso, problema dela. Que se danasse! Quem mandou ser estúpida? Pensando assim, Rita resolveu cair na batalha. A barriga grávida de três meses podia ser disfarçada com a roupa, e depois, no escuro todo gato é pardo. Salvador devia estar muito ocupado, tomando providências em relação a ela e ao filho que ia nascer. Devia ter paciência, pois sabia que as coisas não seriam fáceis, lá com a família dele.
            Salvador devia estar mesmo muito ocupado! Quatro meses sem dar notícia! A barriga estava enorme, o ar faceiro de seu rosto sumira, dando lugar a uma criatura de cara pintada e fisionomia apática. Nem mesmo podia procurar uma fazedeira de anjos porque, para isso, era preciso um dinheiro que ela não tinha. Ainda faturava alguns trocados, pois há homem que sente o sangue ferver quando vê mulher recheada. A vontade aumenta! Porém, o que conseguia dava só para pagar o aluguel do quarto miserável e para comer o suficiente para se manter viva. Foi assim, disputando um desses fregueses de gosto extravagante, que Rita se metera em confusão, tentando tirar o que Nadine tinha como certo. E aí você já sabe, a navalha brilhou na penumbra do salão e apareceu Salvador para livrá-la do perigo.
            Enquanto o guarda de plantão, ficava cada vez mais enfezado com as lamúrias de Nadine, o trabalho do delegado andava a todo vapor. Quanto antes fosse terminado, melhor. Aquela gente do lado de fora da fazenda, deixavam-no cada vez mais preocupado. Raios de gente que nem um calor de quase quarenta graus era capaz de espantar! Os que se passava na cabeça daquelas pessoas, saberiam o que estava acontecendo? Isso era pouco provável já que Nadine continuava detida e era a única capaz de espalhar boatos.
            __Vamos, mais rápido. Logo escurece!-bradava Natal, andando de um lado para o outro feito barata tonta, ansioso por deslindar o mistério e voltar a sua pacata rotina.
            A morosidade do tempo era cada vez mais intolerável! 17h00min.! E nada! A polícia cavocando do lado de dentro e eles sem saber de nadinha do lado de fora. 
            Subitamente o ronco de um motor se faz ouvir ao longe. Como que impulsionadas por molas, acionadas de forma automática, todas as cabeças se viraram em direção ao ruído. O veículo vem na velocidade máxima que a poeirenta estradinha permite. Quando se torna visível, o espanto é geral e o silêncio é quebrado pelo grito de alguém:
            __Vão carregar o ouro no carro que carrega morto pra disfarçar! Vamos entrar! Àqueles que estavam de guarda, nada puderam fazer ante a turba ensandecida que avançava feito um trator, disposto a derrubar tudo o que encontrasse pela frente.
            __Não deu para impedir, delegado, - tentava se desculpar um dos policias que fora encarregado de conter a multidão, evitando que entrasse na fazenda. __.  Agora danou-se!  
         Rapidamente chegaram ao local onde a polícia estava e o rabecão estacionara.
            A cena que se seguiu era indescritível!A expressão no rosto daquelas pessoas era, no mínimo, bizarra. Ia da mais absoluta decepção a mais completa satisfação. Emudecidos pela surpresa, procuravam entender o que estava acontecendo. O que era aquilo que jazia do lado de fora da cratera que fora aberta?
            Um corpo misturado com a lama! Irreconhecível! Um não, dois! Que decepção para aqueles que esperavam ouro! E que satisfação para aqueles que estavam ali para se banquetear com a desgraça alheia!
            __ Nunca vi nada igual em toda a minha vida! Quem seria capaz de uma atrocidade dessas?- perguntava-se o delegado._ Levem para necrópsia.                                                              
            A ordem foi cumprida rapidamente diante dos olhares atônitos daqueles que ali estavam. A esposa do fazendeiro desmaiou, pois não suportara visão tão brutal. O fazendeiro não conseguia articular uma palavra sequer. Quem plantara aqueles corpos ali, e por quê? Julgaram que sua fazenda era um bom lugar para se ocultar um crime, já que a família jamais estivera envolvida em nada que pudesse desaboná-la. Não havia outra explicação.
            Lentamente a multidão começou a se dispersar. Excitação e desapontamento. Alguns ainda ficaram, precisavam ser solidários, oferecendo apoio à família, e, quem sabe,  mais bem informados.
            O dia seguinte foi de movimentação intensa. Em todos os lugares públicos era possível se encontrar vários investigadores tentando resolver o caso de alguma maneira, especulando sobre os fatos abjetos. Nadine não teria meios de matar e transportar o corpo até a fazenda. Por que faria isso? E a máquina? Como poderia tê-la tirado do barracão da fazenda? Impossível! Não, Nadine era inocente! Até fora solta! Não podia sair da cidade, mas ninguém da família Fernandes podia.
            Salvador não fora encontrado para prestar depoimento, não voltara para casa desde a ida do delegado à fazenda. Isso o tornava o suspeito número um. Quem não deve não teme. E ele certamente teria muitas explicações a dar, já que a autópsia revelara que o corpo encontrado era de Rita. E que o segundo corpo era de um feto no sexto mês de gestação e que fora cruelmente arrancado do ventre materno.
            Matar a mãe não bastava? Era necessário abrir sua barriga como que para garantir que a vida, que ali crescia, seria aniquilada. Esse ato inominável e desnecessário foi praticado para se vingar da mulher ou por crueldade extrema? Crueldade e vingança, já que a gravidez de seis meses não era escondida por Rita. Todos sabiam disso, só não sabiam quem era o pai. Coisa difícil de saber quando se ganha a vida usando o próprio corpo. Mas Rita sabia, e o pai também.
            Quinze dias se passaram sem que as investigações tivessem avançado um palmo. Afinal, o principal suspeito havia sumido e na fazenda ninguém sabia de nada, nem vira algo diferente, como a máquina sendo usada nas divisas das terras. Nem mesmo o empregado, que costumava operá-la, ajudou quando foi interrogado. Ele não usara a máquina naquele local. Entretanto, alguém usara. Mas quem? O próprio Salvador quem sabe.
            A poeira começava a assentar e as pessoas até já achavam que a responsável pela tragédia era a própria Rita, pois quem vive como ela chama desgraça. Não podia viver honestamente? Tinha que enveredar por aquele caminho? Era natural acabar mal, é assim que acabam muitas mulheres que querem vida fácil. Se fosse pela população, o caso já estaria resolvido e o culpado encontrado: a própria vítima! Mas eis que surge neste cenário o principal suspeito acompanhado de um famoso advogado.
            Salvador nem tomara conhecimento dos fatos, viajara e ficara sabendo da barbaridade quando, na noite anterior, retornara à fazenda. Como não era culpado de nada, colocava-se à disposição da polícia. Tinha como provar que não se encontrava na cidade na hora e dia do assassinato. O álibi foi confirmado junto ao um amigo dele, companheiro de diversões. Estavam os dois em um bordel de luxo em uma cidade vizinha. Isso também ficou provado, pois o dono do tal bordel, quando foi chamado a depor, jurou que ambos estavam em seu estabelecimento naquela noite. Disse até o nome da prostituta que estava com Salvador. Afirmação confirmada pela mulher.
            A arma do crime não fora encontrada, o operador da retroescavadeira também não, o acusado provou que não estava na cidade, nada restava a fazer... Caso encerrado e arquivado como insolúvel! Nada havia de concreto para efetuar a prisão de Salvador além da certeza do delegado Natal que o mesmo matara mãe e filho para se livrar de problemas futuros, e que o dinheiro compra tudo, até prova a inocência de um culpado.
            A família de Salvador nunca duvidou de sua inocência. Para o pai, o filho fora vítima da maldade humana, da inveja que por todos os meios procura destruir àqueles que possuem mais. Mas justiça fora feita e seu filho conseguira provar que era inocente. A honra da família não fora maculada.
            Salvador vive sem nenhum peso na consciência, pois, esta, é uma bengala de que cada qual usa para bater no vizinho, e da qual não se serve jamais para uso próprio.









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