JOSÉ FERNANDES
Nasceu a 18 de março de 1946, em Alto Rio Doce, Minas Gerais, é graduado em Letras pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná, Mestre em Letras pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Foi professor da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, de 1973 a 1983, e da Universidade Federal de Goiás, de 1983 a 1995, quando se aposentou. Publicou muitos livros, destacando-se na poesia e no ensaio sobre literatura, em especial sobre a poética.
CICATRIZES PARA AFAGOS
Goiânia: Kelps, 2002
RASCUNHO
A Afonso Feliciano,
memória da humildade.
Não quero passar a vida a limpo.
Preciso ser sempre rascunho,
sempre início, vir-a-ser.
Nada de ser definitivo.
Quero apenas ser passagem.
Passagem para mim mesmo,
para meu eterno rascunho.
POÉTICA
A Aninha e Sérgio
O bisturi secciona a pele das palavras,
abre as suas artérias, conota-lhes sentidos
e lhes imprime a circularidade dos sisos
na alquimia mais li(n) das palavras.
O coração da palavra poética palpita
verdades nuas nas veias do poema;
cruas verdades sendo e acontecendo
nas longitudes limosas dos versos:
a arte poética — a latitude do ser:
encontra-lhe a morada e os mistérios —
é descobrir os ardis e os logros da linguagem.
Poesia é a sístole e a diástole da palavra
sangrando verdades plurais, com seu fundo
escuro de silêncio e inutensílio.
CAMINHOS PLURAIS
Aos padrinhos Zé Belinho e Conceição,
que conservam a memória da casa.
Viajo em caminhos plurais,
sem direção fixa, nem fichas de bordo.
Transbordo meu singular nos desvãos
encruzilhados nos arroios de meus juízos.
Atraco, a contragosto,
no porto das pedras.
Fecho o meu círculo:
morada sem portas,
nem janelas.
Mesmo assim, conservo os plurais
no meu singular.
POESIA VERDE
A Manu(o)el Bandeira de Barros que
que sabem o sangue e a seiva em poesia.
Eu faço versos como quem caminha
por vales, pedras e montanhas íngremes.
Enfrento a forte ira das palavras
que se não querem submeter às artes
de enfeitiçar menires e serpentes.
Fogem-me como imagens de sacis,
de merlins, de sereias, salamandras...
Brincam como as maléficas ondinas,
como silfos e gnomos invisíveis.
Você não precisou poier o poema;
nasceu Verso, Poema e Poesia:
Poesia verde no fundo dos olhos,
Poesia vermelha no imo da alma,
Poesia azul celeste de corpo inteiro.
LÓGICA INFANTIL
Thiago acorda no meio da noite
e sonha brinquedos nos quarenta
graus da febre tropical.
Quer furar os olhos da noite velha,
vazar o caldo do dia
e ligar os motores da cidade.
— Agora é noite. Olhe como está escuro!
— Mãe, acende o sol!!!
— Só amanhã.
— Acende!!!
— Como que vou acender o sol, menino?
— Mãe, onde fica a tomada do sol?
De
PONTO X
Goiânia: Kelpes, 2007
TOUPEIRA
Há muito conheço quem sabe a anta:
estica o nome em húmus e espinheiros
e se empoça em rios, lagos e corixos.
Conheço também quem sabe a toupeira:
marca o rumo das pedras e mede a dureza
da massa cinzenta e das contorções intestinas.
Quando alçado a um posto, não pensa o poço
e troca as mãos pelos pés, escorrega no próprio
limo e entope os trilhos de fecalomas.
Gosta muito de lavar tijolos e de tudo
que lembre inutensílios, como esfolar notas,
acarinhar bolinhas e escovar bolhas de sabão.
OPRESSÃO
Naquele tempo eu trabalhava pássaros:
vivia as direções do vento nas asas
com as gotas a escorrerem verde e azul;
brincava de estorvar pedra e limo.
Nas cores da manhã, o rio pantanoso
corria nuvens e aves afinadas a pauta
e ao contraponto das sereias, pautadas
a harmonia e ao silêncio xaraé.
Armava-me com os escudos das palavras:
queria derrotar a vadiagem do tempo
que roía as árvores e seus enfeites
de primavera para o fastio do inverno.
Agora, vivo o espaço da gaiola e seus restos
de árvore para o pulo das asas quebradas.
Dia e noite, olhos predadores me espreitam
do rés do chão, a arrastarem a gulodice
e os limites das salas vazadas a cardume.
Vejo as pantomimas dos macacos pendurados
nos saltos e nos sapatos, a grunhirem atavismos.
Para não me contaminar, fecho o bico e deslizo
minha pena pelo papel e viajo além das grades.
2-7-2004
LEITE DE PEDRA
A Maria Alves, que sabe as dobras da língua
Já vi de tudo, desde que a maçã comeu Eva,
a árvore e a serpente: gente tirar leite
de pedra, carro puxar bois e candeeiros,
água subir morro e rio correr pra trás.
Já vi as sociais máscaras da dor:
gente rir, chorar e cantar o trilho ferido,
para satisfazer a seita e o emprego,
e até babar daqui, dali e dacolá
Vi também a extensão do cambão
a frente da práxis e do carretão,
para carregar o que nunca se viu
e sequer se sabe por onde passou.
Vi lobo comer lobo; vi boi conversar,
periquito comer milho e papagaio
levar fama, cachorro casar com gato,
pantera e cobra lamberem meus pés.
Vi a mentira enlamear a verdade:
gente travestida de leão e tigre;
mas gente não é certamente,
e tigre e leão não se vestem assim.
10-02-2007
JOSÉ FERNANDES, poeta e crítico, professor da Universidade Federal de Goiás, lançou o livro POESIA E CIBERPOESIA sobre a poesia concreta/ poesia visual) de DA NIGHAM EROS (heterônimo de ANTONIO MIRANDA) pela editora KELPS, de Goiânia (setembro, 2011), Fala da poesia animaverbivocovisual e dos “poegoespaços” e haicais visuais . Veja no Youtube>>>
ANO NOVO
José Fernandes
Renasço sempre no ano novo velho,
como renascem árvores e folhas,
flores e frutos; mas em verbo
conformado.
O verbo me conjuga e me impede
de ser folha caída, pisada, varrida,
arrastada pela ventania e convertida
em húmus ou abandonada em cova,
sem germinação.
O verbo me transmuda em insumo pó-
ético com que adubo letras e palavras
fertilizo e atavio a fôrma do poema.
Por isso, renasço sempre novo velho,
enquanto o Verbo, verbo me der.
Feliz Ano Novo em verbo substantivado!
28-12-11
( ANTONIO MIRANDA - POESIA DOS BRASIS )
Obras publicadas: 1978, A Polifonia do Verso, em co-autoria com Orlando Antunes Batista; 1983, O poeta da linguagem; 1984, O poeta do Pantanal; 1986, O existencialismo na ficção brasileira; 1987, A loucura da palavra; 1992, Dimensões da literatura goiana; 1996, O poema visual; 1999, Técnicas de estudos e pesquisas; 1999, Assombramento;2001, Cicatrizes para afagos; 2005, O selo do poeta e, em 2005, Água mole.
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