MIA COUTO - CONTOS


MENTIRAS QUE PODERIAM SER VERDADES
     Um suspiro lhe remata a angústia. As memórias lhe fazem bem. A avó afaga uma mão com a outra como se entendesse retificar o seu destino, desenhado em seus entortados dedos.
     — Agora, meu neto, me chegue aquele álbum.
    Aponta um velho álbum de fotografias pousado na poeira do armário. Era ali que, às escondidas, ela vinha tirar vingança do tempo. Naquele livro a Avó visitava lembranças, doces revivências.
    Mas quando o álbum se abre em seu colo eu reparo, espantado, que não há fotografia nenhuma. As páginas de desbotada cartolina estão vazias. Ainda se notam as marcas onde, antes, estiveram coladas fotos.
    — Vá. Sente aqui que eu lhe mostro.
    Finjo que acompanho, cúmplice da mentira.
    — Está ver aqui seu pai, tão novo, tão clarinho até parece mulato?
    E vai repassando as folhas vazias, com aqueles seus dedos sem aptidão, a voz num fio como se não quisesse despertar os fotografados.
    — Aqui, veja bem, aqui está sua mãe. E olhe nesta, você, tão pequeninho! Vê como está bonita consigo no colo?
    Me comovo, tal é a convicção que deitava em suas visões, a ponto de os meus dedos serem chamados a tocar o velho álbum. Mas Dulcineusa corrige-me.
    — Não passe a mão pelas fotos que se estragam. Elas são o contrário de nós: apagam-se quando recebem carícias.
Dulcineusa queixa-se que ela nunca aparece em nenhuma foto. Sem remorso, empurro, empurro mais longe a ilusão. Afinal, a fotografia é sempre uma mentira. Tudo na vida está acontecendo por repetida vez.
    — Engano seu. Veja esta foto, aqui está a Avó.
    — Onde? Aqui no meio desta gente toda?
    — Sim, Avó. É a senhora aqui de vestido branco.
    — Era uma festa? Parece festa.
    — Era a festa de aniversário da Avó!
    Vou ganhando coragem, quase acreditando naquela falsidade.
    — Não me lembro que me tivessem feito uma festa…
    — E aqui, veja aqui, é o Avô lhe entregando uma prenda.
    — Mostre! Que prenda é essa, afinal?
    — É um anel, Avó. Veja bem, como brilha esse anel!
    Dulcineusa fixa a inexistente foto de ângulos diversos. Depois, contempla longamente as mãos como se as comparasse com a imagem ou nelas se lembrasse de um outro tempo.
    — Pronto, agora vá. Me deixe aqui, sozinha.
Vou saindo, com respeitosos vagares. Já no limiar da porta, a Avó me chama. Em seu rosto, adivinho um sorriso:
    — Obrigada, meu neto!
    — Obrigada, por quê?
    — Você mente com tanta bondade que até Deus lhe ajuda a pecar.

A INFINITA FIANDEIRA
     A aranha, aquela aranha, era tão única: não parava de fazer teias! Fazia-as de todos os tamanhos e formas. Havia, contudo, um senão: ela fazia-as, mas não lhes dava utilidade. O bicho repaginava o mundo. Contudo, sempre inacabava as suas obras. Ao fio e ao cabo, ela já amealhava uma porção de teias que só ganhavam senso no rebrilho das manhãs.
    E dia e noite: dos seus palpos primavam obras, com belezas de cacimbo gotejando, rendas e rendilhados. Tudo sem nem finalidade. Todo bom aracnídeo sabe que a teia cumpre as fatias funções: lençol de núpcias, armadilha de caçador. Todos sabem, menos a nossa aranhinha, em suas distraiçoeiras funções.
    Para a mãe-aranha aquilo não passava de mau senso. Para quê tanto labor se depois não se dava a indevida aplicação? Mas a jovem aranhiça não fazia ouvidos. E alfaiatava, alfinetava, cegava os nós. Tecia e retecia o fio, entrelaçava e reentrelaçava mais e mais teia. Sem nunca fazer morada em nenhuma. Recusava a utilitária vocação da sua espécie.
     — Não faço teias por instinto.
     — Então, faz por quê?
     — Faço por arte.
    Benzia-se a mãe, rezava o pai. Mas nem com preces. A filha saiu pelo mundo em ofício de infinita teceloa. E em cantos e recantos deixava a sua marca, o engenho da sua seda. os pais, após concertação, a mandaram chamar. A mãe:
    — Minha filha, quando é que acentas as patas na parede?
    E o pai:
    — Já eu me vejo em palpos de mim...
    Em choro múltiplo, a mãe limpou as lágrimas dos muitos olhos enquanto disse:
    — Estamos recebendo queixas do aranhal.
    — O que é que dizem, mãe?
    — Dizem que isso só pode ser doença apanhada de outras criaturas.
  Até que se decidiram: a jovem aranha tinha que ser reconduzida aos seus mandos genéticos. Aquele devaneio seria causado por falta de namorado. A moça seria até virgem, não tendo nunca digerido um machito. E organizaram um amoroso encontro.
    — Vai ver que custa menos que engolir mosca — disse a mãe.
    E aconteceu. Contudo, ao invés de devorar o singelo namorador, a aranha namorou e ficou enamorada. Os dois deram-se os apêndices e dançaram ao som de uma brisa que fazia vibrar a teia. Ou seria a teia que fabricava a brisa?
     A aranhiça levou o namorado a visitar sua coleção de teias, ele que escolhesse uma, ficaria prova de seu amor.
    A família desiludida consultou o Deus dos bichos, para reclamar da fabricação daquele espécime. Uma aranha assim, com mania de gente? Na sua alta teia, o Deus dos bichos quis saber o que poderia fazer. Pediram que ela transitasse para humana. E assim sucedeu: num golpe divino, a aranha foi convertida em pessoa. Quando ela, já transfigurada., se apresentou no mundo dos humanos logo lhe exigiram a imediata identificação. Quem era, o que fazia?
    — Faço arte.
    — Arte?
E os humanos se entreolharam, intrigados. Desconheciam o que fosse arte. Em que consistia? Até que um, mais-velho, se lembrou. Que houvera um tempo, em tempos de que já se perdera memória, em que alguns se ocupavam de tais improdutivos afazeres. Felizmente, isso tinha acabado, e os poucos que teimavam em criar esses pouco rentáveis produtos — chamados de obras de arte — tinham sido geneticamente transmutados em bichos. Não se lembrava bem em que bichos. Aranhas, ao que parece.





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