MACHO NÃO GANHA FLOR / DALTON TREVISA


Em Macho não ganha flor, reunião de 22 contos inéditos, Dalton Trevisan desfila ladrões, estupradores, sádicos e maníacos . Em 12 desses contos, são enfocados os ambientes e as circunstâncias da criminalidade urbana. Os personagens dividem-se entre ladrões, gigolôs e assassinos, sádicos e maníacos que desfilam por meio de uma linguagem sem firulas, além das pessoas que com elas se relacionam. Nos outros 10 contos abusos sexuais, taras e estupros permeiam as tramas.

São três as linhas narrativas. A primeira que se apresenta é a da humanidade perversa e pervertida, violenta e tarada onde os estupradores são os protagonistas e as belas e jovens meninas, as vítimas. Exatamente por ser o mais hediondo dos crimes e o que mais apavora o imaginário social contemporâneo, o autor o trata com proposital e apavorante crueza, nauseando o leitor, assustando a leitora, tirando do mundo qualquer possibilidade de sentido. É assim o conto que dá título e abre o volume, “Macho Não Ganha Flor”. E também o conto que o fecha, “Você é Virgem?”, em que uma menina de 15 anos fica sozinha em uma loja e atende o homem que a estupra, mesmo sendo virgem. Este, aliás, é um dos raros contos em terceira pessoa.

Uma segunda e mesmo estética linha é a da humanidade erótica, não necessariamente perversa, talvez apenas tarada, mas fundamentalmente excitada, desesperada pelo gozo carnal e subversivo. Desta linha são os belos (e excitantes) contos “O Vestido Vermelho” e “Prova de Redação”. Aqui a violência sexual do estupro dá lugar ao sadismo e masoquismo das relações selvagens, a fêmea clama por prazer, incita o parceiro a tê-la de todas as formas, a devolver o gozo perdido:

Nunca mais, seu puto, me fará gozar? Ordene, que eu obedeço. Ficar de pé no armário, portas e pernas abertas? Ou rendida me ajeitar de quatro? Me ofereço sem reserva às tuas massagens erógenas do eunuco na odalisca preferida do Sultão – e você, indiferente, nem pisca? Quero sentir os teus beijos pelo corpo me ungindo com o mais afrodisíaco dos óleos. Quero mordida doída na bundinha em flor. Do macho a gente espera fatal! o beijinho molhado e o tabefe ardido de mão aberta.”

Uma terceira linha é a da representação de uma humanidade marginalizada. São pobres coitados, assassinos por ocasião de uma briga na favela, prostitutas exploradas, mães humilhadas por roubar ovo de Páscoa para os filhos. Contos que mais parecem depoimentos, todos em primeira pessoa, e que lembram muito Contos Negreiros, de Marcelino Freire. Expostos assim, em meio aos contos de violência física e sexual, parecem justificar aquela selvageria do mundo, parecem mesmo julgar e condenar a marginalidade por todos os crimes, mas se pinçarmos estes contos um a um veremos uma face de Trevisan que não é das mais exploradas, a de um crítico social disposto a denunciar desigualdades, injustiças, desmandos.

Trevisan forja uma versão marginal do Conde Nelsinho, o Tibinha, redução do diminutivo Curitibinha, ladrão gago de boné vermelho e dentinho de ouro. Tibinha assalta a casa e se aproveita da filha de família. É ela quem narra o conto que dá título ao livro. E, mesmo horrorizada com o marginal, com sua brutalidade, com seu bafo de morte e droga, por um momento, ela se entrega: “essa carne, com fúria manuseada, já não era minha” (pág. 8). A moça, apesar de assustada, sente que seu corpo foi despertado e vive uma alteridade, como a mulher de bandido que gosta de apanhar. Ele a submete a tudo, mas não consegue a satisfação.

Tibinha evita o sentimentalismo e o romantismo, declarando conhecer a fraqueza das fêmeas. Conta que uma mulher, durante um assalto, também gostou dele e até lhe ofereceu uma rosa ou um cravo: “Mas eu avisei: ‘Macho não ganha flor.’ O que eu quero... vou lá e me sirvo” (pág. 11). E esta lógica proprietária que lhe dá os distintivos. Ele não pede, toma. É um assaltante também do corpo das mulheres. Findo o roubo, a vida da moça volta à normalidade, ela se casa, mas seu relacionamento não dá certo, porque à sombra daquele entusiasmante sofrimento.

A mulher, nesses contos, sempre aceita o macho e o valoriza na mesma proporção que ele a despreza. A tudo elas se entregam, como no conto "Vestido Vermelho", em que a amada escreve a seu homem:“Ordene, que eu obedeço” (pág. 21). Ou: “Do macho a gente espera fatal! o beijinho molhado e o tabefe ardido de mão aberta” (pág. 23). Uma outra personagem, que também escreve ao sedutor, oferecendo-se, confessa: “Sabe que de apanhar eu gosto?” (pág. 112). E, mesmo tendo medo, aceita ser sodomizada.

Essas personagens apenas assumem, na ótica dos anti-heróis de Trevisan, a inevitável queda pelo machão. Um outro personagem, que nunca abusou da mulher, diz que, se ela quiser, ele a espanca, pois“sou macho muito inteiro” (pág. 64). Esse super-homem não respeita nem as crianças, como em "Tio Beto", história das bolinações que um motorista de van faz em uma menininha. Mas o bruto não aceita ser sodomizado por um velho pederasta, matando-o quando ele tenta inverter os papéis - “A festa é você”.

Nesta esfera social, a lei da vida é ainda selvagem. Sobrevive o forte, despertando nas mulheres uma pulsão masoquista, reconhecimento do fascínio pela anormalidade. A marginalização ressuscita, em tempos de direitos da mulher, esse homem todo-poderoso, criando uma lógica de cafetão para as relações humanas, com as conseqüências inevitáveis: traumas nos personagens mais fracos e taras nos mais fortes. 

Se esta é a lógica narrativa dos contos, a linguagem de Dalton Trevisan também a segue. Cada vez mais, ela deixa de pertencer ao campo da ficção para se aproximar da poesia. Além de narrar episódios de prazer, Dalton sexualizou a linguagem. Há um uso erótico das palavras - palavras que entram em seus contos segundo o princípio do prazer linguístico. Em frases que possuem uma música moderna cheia de silêncios, há passagens onde o poético se impõe criando imagens e construções dignas da mais alta poesia: “Olha que tarde gloriosa de sol. O vento belisca de leve a cortina do quarto” (pág. 7); “no falo felação faço” (pág. 21); “Nunca mais abraço cafuné mordida tapa amasso agarro beijo nó górdio de língua?”(pág. 24); “Em que velho sapato se esconde a aranha-marrom do teu desejo?” (pág. 25); “Veja, o chuvisco de estrelas no céu - uma bela noite” (pág. 53); “Os dois agora aos berros, com punhais nos olhos”(pág. 78). Por mais sórdido que seja o contexto, a linguagem fulgura com função poética. Com isso, o autor dá um valor literário a expressões coloquiais e gírias, resgatando-as da vala comum.

Em “Três Ovos de Páscoa” uma mulher explica para algum “doutor” que roubou três ovinhos de Páscoa porque os filhos pequenos pediram, e conta como foi presa e humilhada pelos guardas, que a levaram para a delegacia e ainda disseram: “Ah, sua cadela, cê vai chegá lá. E vai ficá pelada pra apanhar. Cê vai vê o delega que tá lá hoje!”. Na hora temos a impressão que o conto virará o fio e narrará os abusos do delegado com a mulher. Mas não, aqui o efeito pretendido é outro, não o do pavor, mas o da revolta, não o do fracasso da humanidade, mas o do fracasso das relações sociais.

O primeiro conto, "Macho não ganha flor", que dá nome ao livro, começa em clima romântico, com uma jovem de roupão, prestes a entrar no banho, numa tarde de sol, ao som do canto de corruíras. De repente, a moça-narradora percebe que não está sozinha na casa, desponta um estuprador que, imediatamente, abre o roupão e tem início uma peleja sexual feita de gemidos, esfregas, nojo, medo, choro, zíper, calcinha, seio, mão boba, arranca, esgoela, até que a mocinha se dá conta "que ele tentava, mas não conseguia". Macho ofendido, a culpa é dela, Eva é culpada. Ele sai roubando e assim compensa a tentativa frustrada de dominação sexual.

Este conto dá o tom aos demais: o clima de folia fescenina, linguagem chula, obscenidade, domínio da intimidade escancarada, desejo e perversão sexual emulados pela violentação do outro são dados que transparecem na obra inteira.

Em "O vestido vermelho", a narradora, ao contrário da anterior, apela para que o amante volte. Ela deseja ser violentada e para isso veste vermelho, a cor da sedução:

"Quem não sabe que o meu amor é tarado por uma violação? Que só pensa em enfiar, meter, arrombar o meu corpo e currar a minha alminha."(p.23)

"Do macho a gente espera fatal! O beijinho molhado e o tabefe ardido de mão aberta. 

Mas onde está você, cego e surdo, que não responde?"(p.22)

Ao mesmo tempo em que existe um imaginário erótico masculino, ele é também feminino, pois a mulher o incorpora para se tornar sedutora ao homem. Mas quando ele a quer, ela não o quer, e vice-versa, instaurando o malfadado desencontro. O encontro nunca é natural, às vezes ele é forçado. Em "Ai, ai, eu morro", ele, de faquinha na cinta, bêbado, esfaqueia a mulher na barriga, porque ela, também bêbada, se queixa de que ele está pesando em seu ombro, enquanto caminham.

"Eu desmaiei e logo acordei. Já viu uma cachorra atropelada no meio da rua? Essa era eu. Me arrastava ali no chão. Um bando de caras nojentas em volta. Bem que apreciavam o quadro. Toda me esvaía pelas três bocas abertas na barriga." (p.61)

"Depois de quatro meses de recuperação, "Agora a gente tá junto de novo. Assim que me força pra ficar com ele. E não dá jeito de conhecer um cara legal." (p.61)

Quanto aos narradores homens, em "Isso aí, malandro", um assaltante conta a experiência de roubar um casarão, a emoção do risco e o relato de sexo entremeado com roubo: "Se aparece uma dona pela frente periga ter de abrir as pernas. Isso aí, chefia. Por bem ou por mal. Não dá pra segurar." (p.16) Também fios autobiográficos do narrador emergem: a filha "tava com seis meses, uma pombinha do céu. Só porque chorava, a mãe afogou no travesseiro." Seguindo o assassinato da filha, o abandono da mulher que se ligou a um viciado em pó e pedra, é o conto "Ele é do mal". Na terceira investida ao casarão, o narrador é pego pelo vigia, e os dois acabam dividindo o butim do roubo. Roubo, estupro, assassinato, droga, bebida, alcaguetagem, identificação entre ladrão e polícia, transitam por outros contos. Também a falta de solidariedade entre pares, o gesto gratuito de violência, a exploração da prostituta pelo freguês bacana e pelo gigolô, o abuso sexual de crianças complementam esse quadro em que não existe mais vestígio do bem. Não há princípio moral ou lei que se sustente, não escapa nem mesmo o estupro de uma mãe pelo próprio filho.

Em "O menino de sua mãe", a narradora é a mãe que conta que seu filho afogou seu pescoço, riscou de leve o estilete e

"sem mais palavra, penetrou. /…/ lembro ter pensado: Antes eu, e não outra. Que outra iria se conformar? Se o teu filho é pirado, até isso você deve sofrer. Quando todos condenam, não é a mãe que perdoa sempre?" (p.75)

Personagem que retorna de outros livros, uma estudante de uniforme escolar narra a projeção de suas aventuras com o Dr. João, da Academia de Letras, um velho safado, em "Prova de redação". Sua colega que passou pela experiência conta todos os passos da sedução, e a jovem os repete para o leitor. Ao repetir, o autor usa uma estratégia de linguagem em que "eu" equivale a "ela":

"E ela? eu? geme e grita e goza, erguendo os braços bem alto. Ai, ai, ai. E com a pontinha do dedo roça na asa do arcanjo que passa.
/…/ E manda que eu? ela? diga palavra porca. Eu digo e repito o que o doutor ensinar." (p.112)

As cenas amorosas seguem um só roteiro, as marcações são as mesmas, assim "eu" e "ela" oscilam mas apontam para uma prática idêntica. Neste sentido os pronomes se equivalem. Transformado em atividade puramente mecânica, o sexo predica a ausência de um sujeito. Predica o vazio. Assim, o relato em primeira pessoa não supõe um enfoque pessoal, a manifestação da personagem-narradora em pleno ato presente, como um "eu" que ocupa totalmente a tela imaginária da narrativa, porque há entre o "eu" e o narrado a mediação de um objeto que reaparece: a linguagem.

Escuta atenta e aguda, o autor registra falas de grupos e as põe em circulação em seus livros. Variadas, facilmente identificadas pelo leitor, o autor as vai atualizando. Assim, em obras mais recentes, ganha espaço o discurso do viciado em crack, do cheirador de pó, do traficante, ou a inclusão de falas relacionadas a seitas e grupos religiosos divulgados pela mídia, que trazem a promessa de se montar uma vida espiritual pelo prefixo telefônico 0800, em ligação direta com deus. Esses discursos deslocados do real para a ficção compõem com breves pinceladas uma espécie de "quadro vivo" concentrado no essencial, sem alçapões ilusionistas, nem jogos de luz enganadores. Funcionando como moeda corrente, essas falas são dessubjetivadas, não se ligam a um corpo, correm soltas na boca da jovem, da velha, do malandro, do pivete que passa, do bacana, da mulher, do doutor. Lapidadas a faca, o autor, mestre minimalista, as recorta, subtrai e decanta os restos, imprime-lhes um ritmo que quase prescinde do uso de pontuação. Essa linguagem provoca, sem dúvida, uma boa dose de desindividualização da matéria narrada. Utilizada, ela transforma a personagem em portador abstrato, não um "eu" que se conta ou conta o mundo através dela, é a linguagem que se emancipa, toma rumo próprio, alheio às intenções de qualquer subjetividade. Expressão da violência também no modo direto com que aborda sua matéria, a linguagem é incisiva, licenciosa, compacta, tem a precisão de um tiro à queima-roupa, que não prescinde de boa dose de humor. É difícil, entretanto, sustentar o riso quando o leitor se dá conta de que o que se apresenta é um mundo sem sentido e sem saída em relação ao qual ele quer estabelecer distância, mas é obrigado a se enxergar nele. Esse mundo calcado no negro perdeu o céu como parâmetro, detendo-se num corpo-a-corpo com o real, sem o anteparo de qualquer idealização ou promessa de redenção.

Para forçar a difícil identificação do leitor com as personagens em situação, uma das estratégias do autor é fazer deslizar a primeira para a segunda pessoa de modo a implicar também aquele que lê na matéria narrada:

"Grudados na tua nuca os mil olhos dos cagüetas da Vila". (p.15)

"Se o teu filho é pirado, até isso você deve sofrer." (p.75) 

A segunda pessoa inclui o leitor, em quem também respinga a violência dos atos, transformando a todos em co-participantes da vida nua, feita da distribuição global de miséria e morte.

É sempre a linguagem feita que carrega uma história própria, e o autor a traz para os contos para reduplicar os estereótipos sociais. Entretanto, ocorre uma reversão na passagem da ordem histórica para a ordem ficcional, e a linguagem passa a peça articulada que, em sua inteireza artística, mantém inteligível a imagem do grotesco e da alienação do grupo em que circula.

Os contos de Dalton Trevisan, apesar da proximidade que mantêm com sua matéria, instituem um outro princípio de realidade através do estranhamento. Pois é só quando quebra com o existente que a ficção realiza sua função cognitiva, comunicando sensações, intuições, "verdades" que o mais das vezes não são transmissíveis de outro modo. É nesse sentido que ela contra-diz, e é nesse sentido também que ela é subversiva. A representação formal do mundo de Dalton Trevisan se faz então através de uma linguagem rebaixada que o autor desgasta e explora com esmero e rigor, reduzindo-a ao mínimo, ao osso, tiro no coração do leitor.

Conto "Macho não ganha flor"

Olha que tarde gloriosa de sol. O vento belisca de leve a cortina do quarto. Lá fora uma corruíra canta alegrinha. No teu peito essa outra acorda e já responde.
Minha irmã e a mãe faziam compras. Afinal sozinha, a casa inteira para mim. De roupão, antes de entrar no banho, dava os últimos retoques diante do espelho.
De repente, com susto, senti que não estava só. Um cheiro no ar? Um estalido no soalho? Uma sombra no canto do olho?
Pronto! Aquela mão suada me tapou a boca. E a outra afogava o pescoço.
— Não grite! Nem um pio. Que eu te mato!
Me empurrou contra a parede. Abriu com violência o roupão.
— Oba!
Ai de mim, apenas calcinha e sutiã. Daí ele começou a fazer coisas.
Me beijou o rosto, o pescoço, um seio e outro. Ui, que nojo. Gemendo, se esfregava no meu corpo.
Todo vestido. Só abriu o zíper da calça.
— Faça tudo o que eu mandar. Bem quietinha.
Sem aliviar a mão esquerda no meu pescoço.
— Já matei uma. Não me custa apagar outra!
E arrancou o meu roupão. Tentei correr para a porta. Me sacudiu pelo cabelo e esfregou a cara na parede. 
— Quer morrer, sua vadia?
Era o bafo podre da morte. O corpo não parava quieto, tanto que eu tremia. O coração me batia aos saltos no joelho.
Em desespero, chorava e soluçava baixinho. Tão assustada, nem me defendia. Sem força de erguer os braços. 
Daí percebi que ele tentava, mas não conseguia. Acho que eu estava muito nervosa e chorando sem parar. Ele beijava e chupava ora um seio, ora outro. Me corria a mão boba pelo corpo.
— Não sabe que deve lutar? Por que não se defende como as outras?
Ele que não sabia: essa carne, com fúria manuseada, já não era a minha. Para não enlouquecer, de tamanho horror, me desligara do próprio corpo. Aquele pobre objeto seminu pertencia a outra.
A minha querida boneca, ela sim a melhor amiga, chorando com olhinho de vidro ao meu lado — e não eu, não eu —, que era desfrutada pelo monstro. Me xingava de piranha e cadela. Mandava eu calar a boca, assim ele não conseguia.
— Abra o olho. Não pisque. Feche o olho. Que porra. É o mesmo olho azul de minha mãe.
Daí eu pedi e supliquei. Em nome da santa mãezinha dele. Não me fizesse mal.
— Ela está me olhando com a tua cara!
Podia levar tudo de valor na casa. Pelo amor de Deus, me deixasse em paz. Era noiva e ia casar em três meses.
Ao falar que estava noiva ele assanhado começou tudo de novo.
— Aposto que é muito safadinha, né? Não transa com teu noivo? O que você faz com ele? Fala, sua vadia!
Ah, não fala? Que ficasse de joelho. Outra vez, de pé. Sentada. Deitada. De costas. Pernas fechadas. E abertas. Bem abertas.
E nada.
Cada vez mais irritado. E mais gago. A culpada era eu. Que só chorava. E só sabia tremer. Que porra.
— Não aprendeu nada? Não trepa com teu noivo? É boiola, por acaso?
Esse viadão, ele bem podia avisá-lo: eu era imprestável. Mais fria que uma puta velha. Se, ao menos, estivesse vestida. Gostava mesmo era de arrancar a tua roupa. Rebentar. Rasgar. Assim, quase nua, calcinha muito sem graça, não lhe agradava.
Disse que todas choram. Mas eu era a pior. Se a mulher soubesse a bruxa que fica, nunca mais chorava. Grande merda.
Chegou a mandar que botasse uma saia e blusa. Sapato de salto alto. Ou, melhor, um vestido. Vermelho, se tivesse.
Então olhou o relógio. E desistiu. Porra. E mais porra.
— Que tanto chora e treme e se desespera? O que tem de mais? Pensa que é a primeira? E a única? Nem é tão ruim assim. Algumas bem que gostam. Uma ruiva, quando eu saía, pediu que voltasse. E quis me dar uma rosa ou cravo, sei lá.
Ofendido e gaguejando.
— Mas eu avisei: "Macho não ganha flor."
Me olhou de soslaio.
— O que eu quero...
Enxugava a cara molhada de suor — e sem tirar o óculo escuro.
— ...vou lá e me sirvo.
Jogou a toalha num canto.
— Ah, se eu tivesse tempo. Porra. Já te ensinava o que é bom. Porra.
Uma hora tinha se passado. Uma hora que, no relógio parado da memória, se repetiria em mil horas inteiras de tortura e terror. E pelo resto da vida quantas vezes seria eu, indefesa no sonho, o pasto de tal bicho espumante de raiva?
Afinal ele parava de tentar. E fechou o zíper da calça.
Já não me olhava de frente. Acho que com vergonha, já pensou? Porque nada tinha conseguido.
— Agora te deixo aqui pelada.
Chutando o roupão debaixo da cama.
— Você desta vez se livrou.
Ressentido e com ódio.
— Só porque é uma vadia de olho azul. Como aquela outra.
Recolheu no chão a sua velha mochila.
— Senta aí na cama. Não se mexa daí. Até eu bater a porta. Senão eu volto. E será pior pra você. Ouviu, sua puta?
Foi catando na penteadeira o meu relógio de pulso, o celular, o cartão do banco. E, no estojinho azul de porcelana — ai, não —, até umas pobres jóias que a avó deixou.
Antes de sair, espiou em volta.
— Me dá a calcinha.
Que desgraçado.
Colheu a última peça. Macho não ganha flor. Se olhou demorado no espelho. Ainda surpreso e incrédulo, gaguejante.
— Que porra. Isso nunca me aconteceu!
Ajeitou o óculo escuro e o boné vermelho. Gostou do que viu. O que eu quero, vou lá e me sirvo.
E lá se foi.
Tremendo e chorando, me vesti todinha. Mas não deixei o quarto. Ali sentada, chorando e tremendo, até a volta de minha mãe.
Nunca mais ela esqueceu de fechar a porta. Com dois giros na chave.
Cada dia a gente notava a falta de algum objeto. Mas isso era o de menos.
Mudamos de bairro. Fiz tratamento com uma terapeuta. Tomei tranquilizante e antidepressivo. Dois a três comprimidos por dia, mas pouco adiantou.
Uma vez engoli um punhado deles. Não foi o bastante. Só dormi uma noite e um dia inteiro.
Na mesma cama, do olhinho de vidro escorrendo uma lágrima azul, essa boneca toda em cacos.
O noivo, que me adora, apoiou sem reserva. Ao meu lado no desespero e no horror. Não perdeu a esperança. E me salvou de mim mesma.
Seis meses depois, casamos.
Deve ser problema meu, sei lá. O nosso relacionamento não está dando certo.

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