PÁSSARO MAROTO
DE FALSO PUDOR, COBRE-SE , FINGIDA,
POR PENSAMENTO LOUCO, INSANO DESEJO         
CORPO SEQUIOSO DE PAIXÃO E  VIDA,
SONHA O PROIBIDO, CORAÇÃO ANDEJO!

ASSIM, NUA DE CERTO OU DE ERRADO,
VESTIR-SE-Á   DE RUBRA ROSA
PARA NAS PÉTALAS QUENTES  DO PECADO
SACIAR DE VEZ, A FOME INDECOROSA.

LIBERTA A ALMA DE TODO O PEJO
BEBE DO  CORPO, O SUOR SALGADO. 
SATISFEITA DE TUDO, RECUSA-TE UM BEIJO
JÁ  VÊ, POIS,  EM TI,  SANSÃO  TOMBADO.

CHEIA DE TUDO, QUERER SATISFEITO,
MIRA ANSIOSA, CAMINHOS OUTROS,
PROMESSAS INSINUADAS, CONVITE AO LEITO,
VOA LIGEIRO,  PÁSSARO MAROTO!

ODENILDE N. MARTINS
MAR
RUGE ZANGADO O MAR,
CIUMENTO DE SUAS  ONDAS  ESPUMOSAS
QUE BATEM E REBATEM E LAMBEM  ROCHEDOS,
 DEPOIS, SEMPRE CANTANTES
SOBRE AS AREIAS BRANCAS,
DERRAMAM-SE E ESPARRAMAM-SE DENGOSAS.

 ENTÃO, BRANDAS E SILENCIOSAS
COMO EM CANTILENA, CHEIAS DE SEGREDOS
NUM  RASTRO DE ALVA RENDA,
ENCOLHEM-SE E  RECOLHEM-SE SERENAS.

E NESSE VAIVÉM,
ENTRISTECIDAS FICAM AS AREIAS,
ENTRISTECIDOS FICAM OS ROCHEDOS.

ODENILDE N. MARTINS

FÁCIL

Torta de carne moída

17 de agosto de 2012, Categoria: EspeciaisSalgadossua receitatortas
  • Telespectadora: Lucia Comba
  • Massa:
  • 4 ovos
  • Sal a gosto
  • 1 xícara (chá) de óleo
  • 1 xícara (chá) de leite
  • 1 pacote de queijo ralado
  • 3 xícaras (chá) de farinha de trigo
  • 2 colheres (sopa) de fermento em pó
  • Recheio:
  • 1 colher (sopa) de azeite de oliva
  • ½ cebola picada
  • 2 dentes de alho amassados
  • 750 gramas de carne moída (coxão mole)
  • 1 cubo de caldo de carne
  • 1 tomate sem pele e sem sementes picado
  • Azeitonas verdes picadas
  • 3 ovos cozidos picados
  • Queijo ralado a gosto
1 hora
10 porções
Massa: Bata bem os ovos com o sal. Coloque o óleo, o leite e misture bem. Acrescente o queijo e misture. Coloque a farinha e vá misturando bem até que a massa fique homogênea. Por ultimo, coloque o fermento e misture delicadamente.
Recheio: Aqueça o azeite e refogue a cebola e o alho. Acrescente a carne moída e o caldo de carne. Refogue até que a carne esteja cozida. Coloque o tomate e refogue por mais cinco minutos. Desligue o fogo, coloque as azeitonas, acerte o sal e misture. Reserve.

Montagem: 
Coloque parte da massa em uma forma (não precisa estar untada). Em seguida, distribua o recheio e, por cima, coloque os ovos cozidos picados. Despeje o restante da massa e salpique o queijo ralado. Leve para assar no forno médio (180 ºC) preaquecido por aproximadamente 30 minutos.
empadao-site-edu-guedes
  • Massa
  • 1 xícara (chá) de óleo
  • 2 xícaras (chá) de água
  • 5 xícaras (chá) de farinha de trigo
  • 1 colher (sobremesa) de sal
  • 1 colher (sopa) de fermento em pó
  • 1 gema para pincelar a massa
  • Recheio
  • 3 colheres (sopa) de azeite
  • 1 dente de alho picado
  • 1 xícara (chá) de cebola picada
  • 3 xícaras (chá) de frango desfiado
  • 1 xícara (chá) de palmito picado
  • 1 xícara (chá) de azeitona verde picada
  • 1 xícara (chá) de ervilha
  • 1 xícara (chá) de molho de tomate
  • 1 xícara (chá) de tomate picado
  • ½ xícara (chá) de salsinha picada
  • 1 pimenta dedo de moça picada
  • ½ xícara (chá) de caldo de frango
  • 1 colher (sopa) de farinha de trigo
  • Sal a gosto
40 minutos (+1 hora de descanso)
12 porções
Massa: misture o óleo, a água, a farinha de trigo, o sal e o fermento. Mexa até obter uma massa firme que desgrude das mãos. Deixe descansar por cerca de 1 hora.
Recheio: em uma panela, aqueça o azeite, doure o alho e a cebola. Acrescente o frango, a azeitona, o palmito, a ervilha, o molho de tomate, o tomate, a pimenta e a salsinha.
Adicione o caldo de frango com a farinha dissolvida e misture bem ate engrossar levemente, acerte o sal. Deixe esfriar. Abra a massa. Coloque em uma forma, coloque o recheio frio e feche com a massa. Pincele com a gema. Asse em forno a 180°C por aproximadamente 25 minutos.

LANCHE DA TARDE, BOA PEDIDA



Amasse 2 bananas e junte 2 ovos, 1 xícara de farinha de trigo, 1 xícara de açúcar, 4 colheres (sopa) de óleo e 1 colher (sopa) de fermento em pó. Misture a massa com um batedor de arame ou similar. Coloque em forma untada e enfarinhada. Agora pique 2 bananas e espalhe por cima da massa. Polvilhe açúcar e canela tomando cuidado para não colocar demais nas bordas porque o açúcar gruda da parede da assadeira e fica pretinho. Leve para assar em forno preaquecido em 200º.

Fonte: Panelaterapia

CONVITE

CURVAS!
GOSTO DAS CURVAS!
DAS CURVAS DAS ESTRADAS,
DOS RIOS,
DAS ÁRVORES,
DAS PESSOAS.

GOSTO MESMO É DAS CURVAS!
DE TODAS AS CURVAS!
AH!AS CURVAS DAS PALAVRAS...
TÃO BELAS, TÃO ENIGMÁTICAS.
A ELAS ME CURVO!

AINDA GOSTO MAIS DAQUELAS QUE TENS EM TI.
AS CURVAS DE TUA BOCA, DO TEU OLHAR,
QUANDO FOGE DO MEU,
PARA NADA REVELAR!

CURVAS QUE NÃO APONTAM UM CAMINHO,
MISTERIOSAS! INESPERADAS.
O INESPERADO!
FASCINANTE , POR VEZES, TORTUOSO.

É DAS CURVAS QUE GOSTO MAIS!
SINUOSAS QUE INSINUAM,
ÀQUELAS QUE CONHECIDAS,
 RESERVAM SURPRESAS, SEMPRE!
QUE MOSTRAM-SE  QUASE NADA!
QUE NÃO ME TIRAM A VIBRANTE DESCOBERTA!

AH! QUE PENA SINTO DAS RETAS!
ALMAS SOLITÁRIAS

SOLUÇAM NA NOITE, AS ALMAS SOLITÁRIAS
ERANDO PRA LÁ E PRA CÁ,
VÃO E VÊM TEIMOSAMENTE
SEM NUNCA OUTRA ALMA ENCONTRAR.

SOLUÇAM AS ALMAS SOLITÁRIAS
EM GEMIDOS E LAMENTOS DE DOR
E DELAS ESCORREM SUMARENTAS
PALAVRAS MENDIGANTES DE AMOR.

ODENILDE N. MARTINS




A OLHO NU

NÃO SONHAR A OLHO NU
NÃO SER EMBARCAÇÃO APORTADA
EM MAR QUE RONCA FEIO
TAL ALMA APRISIONADA.

NÃO DESLIZAR EM ONDA PARTIDA
FEITO VOZ FRATURADA
QUE EM SOLUÇOS ENTRECORTADOS
SÓ FAZ LAMENTAR, MAIS NADA.

QUERO SER BARCO ANCORADO
EM ENSEADA BEM DISTANTE
ONDE O MARULHO SEJA CÂNTICO
DE PÁSSARO CANTANDO DOBRADO.

ODENILDE N. MARTINS

FINGIMENTO

EU CAMINHO SOZINHA
NADA ESPERO DE NINGUÉM,
TU FINGES QUE ME QUERES,
EU FINJO QUE ME TENS.

EU CAMINHO SOZINHA
A ESMO NESSE UNIVERSO,
MAS A ESTRELA É TODA MINHA
COM ELA FAÇO MEU VERSO.

EU CAMINHO SOZINHA
FEITA DE SONHOS E FANTASIA
DANÇO NA LUZ DA LUA,
VIAJO NA POESIA.

EU CAMINHO SOZINHA
APRENDI O QUE ME CONVÉM
TU FINGES QUE ME QUERES,
EU FINJO QUE ME TENS.

ODENILDE N. MARTNS


DESCOMPASSO

NO DESCOMPASSO DE OUTROS PASSOS,

PASSO.

PASSANTE, ITINERANTE, PASSAGEIRA,

PEDAÇO DE ESPAÇO, ABRAÇO.

ARDORES ENIGMÁTICOS DE ESPANTO E ENCANTO,

URGÊNCIAS FAÇO, CANSAÇO.

ESPARSOS CAMINHOS, TRAÇO,

PASSO.

ENLAÇO-ME, DOU PASSOS,

PASSANTE, ITINERANTE, PASSAGEIRA.

ODENILDE N. MARTINS
CORAÇÃO DE  MENINO

DO ALTO DA COLINA O MENINO VÊ,
NÃO O CASARIO CINZENTO DO VILAREJO,
VÊ O AZULÁCEO DA CÚPULA  MAJESTOSA
E DAS FLORES DOS  IPÊS, O FESTEJO.

O MENINO VÊ NA MAGIA TRANSCENDENTE
 DOS DESENHOS DE ESBRANQUIÇADAS NUVENS
A BELEZA, DO CORCEL  QUE GALOPA
DE ENCONTRO AO LARANJA DO SOL INCANDESCENTE 

ALIADO , SEU AMIGO , O TEMPO,
EM PURO ÊXTASE, SONHA
O MENINO, EXPLODINDO EM SENTIMENTO
DERRAMA   AMOR , NELE SE BANHA.

CHEIRO DE MUNDO, O MENINO SENTE
NO VENTO SUAVE  E PERFUMOSO
  ESPARGIDO NO AR, É ESPECIOSO,
INODORO AO CORAÇÃO INDOLENTE.

ODENILDE N. MARTINS

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Oswaldo Montenegro e Renato Teixeira - "Pro Renato Teixeira", música de ...

A PORTA E O PINHEIRO - ROBERT LOUIS STEVENSON

O conde detestava certo barão alemão, forasteiro em Roma.
Não importam as razões desse ódio, mas, como tinha o firme propósito de vingar-se, com o mínimo de perigo, ele as manteve secretas até do barão. De fato, tal é a primeira lei da vingança, já que ódio revelado é ódio, impotente.

O conde era curioso e minucioso; tinha algo de artista; executava tudo com uma perfeição tão exata que se estendia não só aos fins como também aos meios ou instrumentos. Certo dia cavalgava ele pelas regue iras e chegou a um caminho lamacento que se perdia nos pântanos que circundam Roma. À direita havia uma antiga tumba romana; à esquerda uma casa abandonada no meio de um jardim de sempre-vivas. Esse caminho conduziu-o a um campo de ruínas, em cujo centro, no declive de uma colina, viu uma porta aberta e, não muito longe, um solitário pinheiro atrofiado, não maior que um arbusto. O local era deserto e secreto; o conde pressentiu que algo favorável o espreitava na solidão; amarrou o cavalo ao pinheiro, acendeu a luz com o isqueiro e penetrou na colina. A porta dava para um corredor de construção romana; este corredor, a uns vinte passos, se bifurcava. O conde tornou pela direita e chegou, tateando na escuridão, a uma espécie de barra que ia de uma parede à outra. Avançando o pé, encontrou uma borda de pedra polida, e logo depois o vácuo. Interessado, juntou uns galhos secos e acendeu o fogo. À sua frente havia um poço profundissimo; sem duvida algum aldeão, que o havia usado para tirar água, teria colocado a barra. O conde apoiou-se na roldana e olhou o poço, demoradamente. Era uma obra romana e, como todas as desse povo, parecia construída para a eternidade. Suas paredes eram lisas e verticais: o desditoso que caísse no fundo não teria salvação. “Um impulso me trouxe a este lugar”, pensava o conde. “Com que fim? Que consegui eu? Por que fui enviado a olhar este poço?” A roldana cedeu; o conde esteve a ponto de cair. Saltou para trás, para salvar-se, e apagou com o pé as ultimas brasas do fogo. Fui enviado para aqui a fim de morrer?”, disse com temor. Teve uma inspiração. Arrastou-se até a boca do poço e levantou o braço, tateando: duas hastes estavam sustentando a roldana; agora esta pendia de uma delas. O conde a repôs de modo que cedesse ao primeiro apoio. Saiu à luz do dia, como um doente. No outro dia, enquanto passeava com o barão, mostrou-se preocupado. Interrogado pelo barão, admitiu finalmente que o havia abatido um estranho sonho. Queria interessar ao barão – homem supersticioso que fingia desdenhar as superstições. O conde, instado pelo seu amigo, disse-lhe abruptamente que se precatasse, porque havia sonhado com ele. Como é obvio, o barão não descansou até que lhe contaram o sonho.
— Pressinto —disse o conde com aparente tristeza— que esta narração será infausta; algo me diz. Entretanto, se para nenhum dos dois pode haver paz até que você a ouça, carregue você com a culpa. Este era o sonho: Vi-o cavalgando, não sei onde, mas devia ser perto de Roma; de um lado havia um antigo sepulcro, outro um jardim de sempre-vivas. Eu o chamava, voltava a gritar que não prosseguisse, em uma espécie de transe de terror. Ignoro se você me ouviu, porque seguiu para frente. O caminho levou-o a um local deserto entre ruínas, onde havia uma porta numa ladeira e, perto da porta, um pinheiro disforme. Você apeou-se (apesar de minhas suplicas), ateou o cavalo ao pinheiro, abriu a porta e entrou resolutamente. Dentro estava escuro, mas no sonho eu continuava vendo-o e pedindo-lhe que voltasse. Você seguiu a parede da direita, dobrou outra vez pela direita e chegou a uma câmara na qual havia um poço e uma roldana. Então, não sei por que, meu alarme cresceu e tornei a gritar-lhe que ainda estava em tempo e que abandonasse o vestíbulo. Essa foi a palavra que empreguei no sonho e então lhe atribui um sentido preciso; mas agora, acordado, não sei o que significava para mim. Você não escutou minha suplica; apoiou-se na roldana e olhou demoradamente a água do poço. Então lhe revelaram alguma coisa. Não creio haver sabido do que era, mas o pavor me arrancou do sonho, e acordei chorando e tremendo. E agora lhe agradeço de coração o haver insistido. Este sonho estava-me oprimindo, e, agora que o narrei à luz do dia, parece-me terrível.
— Talvez —disse o barão.

— Tem alguns pormenores estranhos. Revelaram-me alguma coisa, disse você? Sim, é um sonho raro. Divertirá os nossos amigos.

— Não sei —disse o conde. — Estou quase arrependido. Esqueçamo-lo. — De acordo —disse o barão.

Não falaram mais do sonho. Daí a poucos dias, o conde convidou-o a sair a cavalo; o outro aceitou. Ao regressar a Roma o conde sofreou o cavalo, tapou os olhos e deu um grito.

— Que aconteceu? —disse o barão.

— Nada —gritou o conde. — Não é nada. Voltemos depressa a Roma.

Mas o barão havia olhado a seu redor e, à mão esquerda, viu um caminho lamacento com uma tumba e um jardim de sempre-vivas.

— Sim —respondeu com a voz mudada. — Voltemos a Roma imediatamente. Temo que você se ache indisposto.

— Por favor —gritou o conde. — Voltemos a Roma, quero me deitar.
Regressaram em silencio. O conde, que fora convidado para uma festa, deitou-se, alegando que tinha febre. No dia seguinte, o barão havia desaparecido; alguém achou seu cavalo atado ao pinheiro. Isto foi um assassínio?





Robert Louis Stevenson

LEONOR / EDGAR ALLAN POE


Sou oriundo duma raça caracterizada pelo vigor da fantasia e pelo ardor da paixão.

Os homens chamaram-me louco; mas ainda não está resolvido o problema ? se a loucura é ou não a suprema inteligência ? se muito do que é glorioso ? se tudo o que é profundo ? não tem a sua origem numa doença do pensamento ? em modalidades do espírito exaltadas a custa das faculdades gerais. Aqueles que sonham de dia sabem muitas coisas que escapam àqueles que somente de noite sonham. Nas suas vagas visões obtêm relances de eternidade e, quando despertam, estremecem ao verem que estiveram mesmo à beira do grande segredo. Penetram sem leme nem bússola, no vasto oceano da “luz inefável”; e de novo, como os aventureiros do geógrafo núbio, agressi sunt mare tenebrarum, quid in eo esset exploraturi.

Diremos, então, que estou doido. Concordo, pelo menos, em que há dois estados distintos da minha existência mental ? o de uma razão lúcida que não pode ser contestada, e pertence à memória de acontecimentos que constituem a primeira época da minha vida ? e um estado de sombra e dúvida, que abrange o presente e a recordação do que constitui a segunda grande era do meu ser. Por conseqüência, acreditai tudo o que eu disser do primeiro período de minha existência; e dai ao que eu vier a contar dos derradeiros tempos o crédito que se vos afigurar justo; ou ponde-o completamente em dúvida; ou, se não puderes duvidar, fazei como Édipo e procurai decifrar o seu enigma.

Aquela que na minha mocidade amei, e de quem agora, serena e lucidamente, estou traçando estas recordações, era a filha única da única irmã de minha mãe havia muito falecida.

Minha prima chamava-se Leonor. Havíamos sempre vivido juntos, sob um sol tropical, no vale de Many-Coloured Crass. Jamais viandante algum aventurou seus passos por aquele vale; pois se estendia por entre uma cadeia de montes gigantescos, que sobre ele debruçavam as suas escarpas, vedando o acesso dos raios solares aos seus mais aprazíveis recônditos. Nas suas proximidades atalho algum jamais fora trilhado, e, para chegarmos ao nosso lar, não precisávamos afastar, com força, a folhagem de milhares de árvores, nem esmagar milhões de fragrantes flores. Assim vivíamos nós sozinhos, nada sabendo do mundo para além do vale ? eu, minha prima e sua mãe.

Das obscuras regiões de além dos montes, no extremo superior de nossos domínios, descia um estreito e profundo rio, que excedia em brilho e limpidez tudo menos os claros olhos de Leonor; e, serpenteando furtivamente em intrincados meandros, embrenhava-se por fim através de uma sombria garganta, por entre montes ainda mais negros do que aqueles de que brotara. Denominávamo-lo o “Rio do Silêncio”, pois as suas águas pareciam ter a faculdade de tudo emudecer. Do seu leito nenhum murmúrio se erguia, e tão de mansinho ia desfiando seu curso que os diáfanos seixinhos que esmaltavam o fundo e que nós tanto gostávamos de contemplar, permaneciam absolutamente imóveis, refulgindo eternamente no lugar onde um dia se quedaram.

A margem do rio e de muitos cintilantes riachos que, por tortuosos rodeios, a ele afluíam, bem como os espaços que as margens desciam até o leito de seixos do fundo das águas ? todos estes lugares, não menos de que toda a superfície do vale, desde o rio até as montanhas que o circundavam, eram tapetados por uma relva verde, macia, espessa, curta, perfeitamente lisa e perfumada, mas tão profusamente matizada com botões de ouro, margaridas, violetas e asfódelos que a sua extraordinária beleza dilatava nossos corações com eloquência e paixão, do amor e da glória de Deus.

E, aqui e além, em maciços que se diriam antes matas de sonhos, brotavam fantásticas árvores, cujos altos e esguios troncos se não erguiam a prumo, mas, torcendo-se, inclinavam-se para a luz que ao meio-dia irrompia pelo centro do vale. A sua casca apresentava ao mesmo tempo o esplendor do marfim e da prata, e seria mais suave do que tudo não fosse a suave face de Leonor; de sorte que, se não fora o verde brilhante das enormes folhas que das suas copas se alastravam em linhas compridas e trêmulas, embaladas pelos zéfiros, poderia alguém imaginá-las gigantescas serpentes da Síria, prestando homenagem ao seu soberano, o Sol.

De mãos dadas, durante 15 anos, vaguei com Leonor por este vale, antes de o Amor penetrar em nossos corações. Era uma tarde, ao cerrar-se o terceiro lustro da sua vida e o quarto da minha: estávamos sentados, abraçados, debaixo das árvores-serpentes e contemplávamos as nossas imagens refletidas no espelho das águas do rio. Nem mais uma palavra pronunciamos durante o resto daquele doce dia, e na manhã seguinte ainda as nossas palavras eram trêmulas e raras. Do fundo das águas havíamos tirado o deus Eros, e agora sentíamos que havíamos ateado dentro de nós as almas ardorosas dos nossos maiores. As paixões que durante séculos haviam caracterizado a nossa raça acudiam agora de tropel com as fantasias que os haviam igualmente distinguido e bafejavam venturas e bênçãos sobre o vale de Many-Coloured Crass. Tudo como por encanto mudou. Sobre as árvores onde jamais se conhecera uma flor desabrocharam agora estranhas flores em forma de estrela. Tornaram-se mais carregados os tons das alfombras de verdura; e quando uma a uma murcharam as brancas margaridas, surgiram em seus lugares, dez a dez, os asfóidelos da cor dos rubis. E a vida brotava em nossos atalhos; pois o alto flamingo, até aqui nunca visto, com todas as álacres e variegadas aves, ostentava ante nós a sua plumagem escarlate. Peixes de ouro e de prata acorriam agora ao rio, de cujo seio se erguia, de mansinho, um murmúrio que, por fim, foi engrossando até se transformar numa suave melodia mais divina de que a da harpa de Éolo, mais doce do que tudo, não fosse a voz de Leonor. E agora, também uma enorme nuvem, que por muito tempo dominara as regiões do Hesper, avançara num deslumbramento carmesim e ouro e viera pairar serenamente sobre nós, descendo dia a dia até pousar sobre os cumes dos montes, transfigurando-os com o seu glorioso esplendor e encerrando-nos, como que para sempre, dentro duma mágica prisão de magnificência e glória.

O encanto de Leonor era o de um Serafim, mas ela era uma adolescente ingênua e simples como a curta vida que vivera entre as flores. Nenhum artifício mascarava o amor que lhe estuava no coração, e ela examinava comigo os seus mais íntimos recessos, quando passeávamos no vale de Many-Coloured e conversávamos sobre as notáveis transformações que nele ultimamente se haviam operado.

Um dia, finalmente, tendo falado, banhada em pranto da triste e derradeira transformação que a Humanidade deve sofrer, nunca mais deixou de discutir este doloroso assunto, intercalando-o em todas as nossas conversas, como nos cantos do bardo de Schiraz estão constantemente ocorrendo as mesmas imagens, a cada passo repetidas em cada impressionante variação de frase.

Ela tinha visto que o dedo da morte se lhe cravara no seio ? que, como o efêmero, ela fora feita perfeita em encanto e beleza somente para morrer; mas para ela os terrores do túmulo apenas consistiam numa apreensão, que uma tarde, ao crepúsculo, ela me revelou, passeando comigo pelas margens do Rio do Silêncio. O que a penalizava era pensar que, após havê-la sepultado no vale de Many-Coloured, eu abandonaria para sempre aquelas ditosas paragens, transferindo o amor, que só dela tão apaixonadamente agora era, para alguma jovem do mundo exterior e banal. E, então, ao ouvir-lhe expressar este pesar, atirei-me aos pés de Leonor e jurei que nunca me ligaria pelo casamento a filha alguma da Terra ? que jamais eu, fosse de que maneira fosse, trairia a sua querida recordação. Invoquei o Onipotente Senhor como testemunha da pia solenidade do meu juramento. E a maldição de que Deus e dela impetrei, no caso de eu atraiçoar meu juramento, envolvia uma pena cujo extraordinário horror me não permite referi-la aqui.

Os olhos de Leonor se tornaram mais claros, quando eu assim exprimi o carinho que a prendia à minha vida; como se do peito arrancassem um peso mortal; tremeu e chorou amargamente; mas (que era ela senão uma criança?) aceitou o juramento, que lhe tornava mais suave o leito de morte. E disse-me, não muitos dias depois, finando-se tranqüilamente, que, em vista do que eu fizera para alívio e consolo do seu espírito, velaria sempre por mim depois de morta, e se tal lhe fosse permitido, voltaria visivelmente a visitar-me nas vigílias da noite; se, porém, isto ultrapassasse o que às almas no Paraíso é permitido, dar-me-ia, pelo menos, freqüentes indicações de sua presença, suspirando sobre mim nos ventos da tarde ou enchendo o ar que eu respirasse com o perfume dos turíbulos dos anjos. E, com estas palavras, exalou a sua inocente vida, ponto termo à primeira época da minha.

Até aqui é fiel o relato que fiz. Mas, quando transponho a barreira formada pela morte de minha amada e penetro na segunda era da minha existência, sinto uma sombra empolgar-me o cérebro e não confio na perfeita sanidade das minhas palavras. Mas, prossigamos.

Os anos foram-se arrastando pesadamente e eu continuei habitando no vale ? mas uma segunda transformação se operara em todas as coisas. As flores em forma de estrela secaram nas árvores e não mais reapareceram. Apagaram-se os matizes do verde tapete de relva; e, um a um, murcharam os rubros asfódelos e, em seu lugar, surgiram, dez a dez, escuras violetas sempre carregadas de orvalho.

A vida desapareceu dos nossos atalhos; o alto flamingo já não exibia ante nós a sua plumagem escarlate, mas tristemente fugiu do vale para os montes com todas as álacres aves multicores que em sua companhia tinham vindo. Os peixes de ouro e prata nunca mais esmaltaram o nosso doce rio. A suave melodia que encantara mais do que a harpa e Éolo e fora mais divina do que tudo menos a voz de Leonor, foi-se pouco a pouco extinguindo, sumindo-se em murmúrios cada vez mais débeis, até que, por fim, o rio voltou à solenidade do seu primitivo silêncio. E então ergueu-se de novo a enorme nuvem e, abandonando os píncaros dos montes à sua antiga tristeza, recuou para as regiões de Hesper, e consigo levou o áureo esplendor e todas as magnificências que por alguns anos transfiguraram o vale de Many-Coloured Crass.

Todavia, as promessas de Leonor não ficaram no olvido; pois eu ouvia os sons do balouçar dos turíbulos dos anjos; correntes dum sagrado perfume flutuavam permanentemente sobre o vale; nas horas ermas, quando meu coração palpitava pesadamente, os ventos que me refrescavam a fronte vinham carregados de brandos suspiros; indistintos murmúrios ? oh, mas só uma vez! fui desperto de um sono, que se me afigurava o sono da morte, pela pressão de uns lábios espirituais sobre os meus.

Mas o vácuo dentro do meu coração recusava-se, ainda assim, a ser preenchido. Tinha saudades do amor que o enchera a transbordar. Por fim o vale fazia-me sofrer pelas recordações, e abandonei-o então para sempre, trocando-o pelas vaidades e pelos turbulentos triunfos do mundo.

Encontrei-me dentro duma estranha cidade, onde todas as coisas podiam ter servido para me apagaram da lembrança os doces sonhos que por tanto tempo sonhara no vale. O luxo e a pompa de uma corte majestosa, o doido clangor das armas e a radiosa beleza das mulheres desvairaram-me e embriagaram-me o cérebro. Até aqui, porém, ainda a minha alma permanecera fiel aos seus juramentos, e nas horas silentes da noite ainda até mim chegavam as revelações da presença de Leonor.

De súbito, cessaram estas manifestações; mundo escureceu de todo ante os meus olhos, e quedei-me espavorido ante o escaldante pensamento que me possuía ? ante as terríveis tentações que me empolgavam; pois de muito longe, de uma terra distante e ignota, viera para a alegre corte do rei que eu servia, uma donzela a cuja beleza todo o meu perjuro coração imediatamente se rendeu ? a cujos pés me curvei sem uma luta, no mais ardente, no mais abjeto culto de amor.

Que era, na verdade, a minha paixão pela adolescente do vale comparada com o fervor e o delírio, o alucinado êxtase de adoração com que eu depunha toda a minha alma em pranto aos pés da etérea Hermengarda? ? Oh, que deslumbrante era a angélica Hermengarda! E na minha alma para ninguém mais havia lugar. ? Oh, que divina era a celestial Hermengarda! E quando eu sondava as profundezas dos olhos inolvidáveis, só neles pensava ? só neles e nela!

Casei; não me arreceei da maldição que invocara; nem senti o amargor de haver infringido um juramento solene.

Mas uma vez, no silêncio da noite, chegaram até mim, através das minhas persianas, os brandos suspiros que havia muito eu já não ouvia e, numa voz familiar e doce, percebi estas palavras que jamais esquecerei:

- Dorme em paz! ? pois o Espírito do Amor reina e governa e, acolhendo no teu apaixonado coração aquela que se chama Hermengarda, tu és absolvido, por motivos que só no céu serão explicados, dos juramentos que fizeste a Leonor!

Edgar Allan Poe
Extraído do site Nox in Vitro


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TIRA-DÚVIDAS






































INVEJA - ALUÍSIO AZEVEDO


Era uma rica tarde de novembro. O sol acabava de retirar-se naquele instante, mas a terra, toda enrubescida, palpitava ainda com o calor dos seus últimos beijos.

O céu, vermelho e quente, debruçava-se sobre ela, envolvendo-a num longo abraço voluptuoso; de todos os lados ouvia-se o lamentoso estridular das cigarras, e as árvores concentravam-se, murmurando, em êxtases, como se rezassem a oração do crepúsculo.

Àquela hora de recolhimento e de amor a natureza parecia comovida.

A noite abria lentamente no espaço as suas asas de paz, úmidas de orvalho, prenhez de estrelas que ainda mal se denunciavam numa palpitação difusa. Uma boiada recolhida ao longe, abeberando nos charcos do caminho, e bois tranqüilos levantavam a cabeça, com a boca escorrendo em fios de prata, e enchiam a solidão das clareiras com a prolongada tristeza dos seus mugidos. Num quintal, entre uma nuvem de pombos, uma rapariga apanhava da corda a roupa lavada que estivera a secar durante o dia; enquanto um homem, em mangas de camisa, passava pela estrada, cantando, de ferramenta ao ombro. De cada casa vinha um rumor alegre de famílias que se reúnem para jantar, e, junto com latidos de cães e choros de criança, ouvia-se o contente palavrear dos trabalhadores em descanso, ao lado da mulher e dos filhos.

Entretanto, um padre ainda moço, depois de passear silenciosamente à sombra das árvores, foi assentar-se, triste e preocupado, nos restos de uma fonte de pedra, cuja pobreza as ervas disfarçavam com a opulência da sua folhagem viçosa e florida. E aí ficou a cismar, perdido num profundo enlevo, como se o ardente perfume daquela tarde de verão fora forte demais para a sua pobre alma enferma de homem casto.

Estranhos e indefinidos desejos levantavam-se dentro dele, pedindo confortos de uma felicidade que lhe não pertencia e levando-o a cobiçar uma doce existência desconhecida, que seu coração magoado e ressentido mal se animava de sonhar por instinto.

E, assim, vinham-lhe à memória, com uma reminiscência dolorosa, todas as suas aspirações da infância. Ah! nesse tempo, quanta esperança no futuro!… Quanta inocência nas suas aspirações!… Quanta confiança em tudo que é da terra e em tudo que é do céu!… Nesse tempo não conhecia ele a luta dos homens contra os homens; não conhecia as guerras da inveja e as guerras da vaidade; não conhecia as humilhantes necessidades deste mundo; não conhecia ainda a responsabilidade da sua vida e não sabia como e quanto dói ambicionar muito e nada conseguir. Ah! nesse tempo feliz, ele era expansivo e risonho. Nesse tempo ele era bom.

Mas, continuou a pensar, cruzando sobre o fundo estômago as mãos finas e descoradas, enterraram-me numa casa abominável, para ser padre. Deram-me depois uma mortalha negra e disseram-me: “Estuda, medita, reza, e faze-te um santo! És moço? Pois bem! quando o sangue, em ondas de fogo, subir-te à cabeça e quiser estrangular os teus votos, agarra aquele cilício e fustiga com ele o corpo! quando vires uma mulher, cujo olhar, úmido e casto, te faça sonhar os deslumbramentos do amor, bate com os punhos cerrados contra o teu peito e alanha tua carne com as unhas, até que sangres de todo o veneno da tua mocidade! Fecha-te ao prazer e à ternura, fecha-te dentro da tua fé, como se te fechasses dentro de um túmulo!”

E, com estas recordações, o infeliz quedara-se esquecido, a olhar cegamente para a paisagem que defronte dele ia pouco e pouco se esfumando e esbatendo nos crepes da noite; ao passo que no céu as estrelas se acendiam.

Desde que o destinaram a padre, sentia-se arrastado para a tristeza e para a solidão; achava certo gozo amargo em deixar-se consumir pela áspera certeza da sua inutilidade física. Não queria a convivência dos outros homens, porque todos tinham e desfrutavam aquilo que lhe era vedado – o amor, a alegria, a doce consolação da família. O que ele desejava do fundo do seu desgosto era morrer, morrer logo ou quando menos envelhecer quanto antes; ficar feio, acabado, impotente; que o seu cabelo de preto e lustroso se tornasse todo branco; que o seu olhar arrefecesse; que os seus dentes amarelassem e a sua fronte se abrisse em rugas. Desejava refugiar-se covardemente na velhice como num abrigo seguro contra as paixões mundanas.

Sofria ímpetos de arrancar aquele seu coração importuno e esmagá-lo debaixo dos pés. Não se sentia capaz de domar a matilha que lhe rosnava no sangue; sobressaltava-se com a idéia de sucumbir a uma revolta mais forte dos nervos, e só a lembrança de que seria capaz de uma paixão sensual sacudia-o todo com um frio tremor de febre.

- Todavia.. replicou-lhe do íntimo da consciência uma voz meiga, medrosa, quase imperceptível todavia, o amor deve ser bem bom!…

E dois fios compridos escorreram pelas faces pálidas do padre.

Nisto, o canto de um passarinho fê-lo olhar para cima. Na embalsamada cúpula de verdura que cobria a monte o inocente intruso trinava ao lado da sua companheira.

O moço estremeceu e ficou a olhar fixamente para eles. Os dois velhaquinhos, descuidosos na sua felicidade, conservavam-se muito unidos, como se estivessem cochichando segredos de amor. A fêmea estendia a cabeça ao amigo e, enquanto este lhe ordenava as penas com o bico, ela, num arrepio, contraía-se toda, com as asas levemente abertas e trêmulas. Depois, uniram-se ainda mais, prostrados logo pelo mesmo entorpecimento.

Então, o jovem eclesiástico, tomado de uma vertigem, levantou o guarda-chuva e com uma pancada lançou por terra o amoroso par.

Os pobrezitos, ainda palpitantes de amor, caíram, estrebuchando a seus pés

O padre voltou o rosto e afastou-se silenciosamente.

No horizonte esbatia-se a última réstia de sol e o sino de uma torre distante começou a soluçar Ave-Maria.

Aluísio Azevedo
Extraído do site Biblio

CINCO MULHERES - MACHADO DE ASSIS


Aqui vai um grupo de cinco mulheres, diferentes entre si, partindo de diversos pontos, mas reunidas na mesma coleção, como em um álbum de fotografias.

Desenhei-as rapidamente, conforme apareciam, sem intenção de precedência, nem cuidado de escolha.

Cada uma delas forma um esboço à parte; mas todas podem ser examinadas entre o charuto e o café.
                                              I- Marcelina

Marcelina era uma criatura débil como uma haste de flor; dissera-se que a vida lhe fugia em cada palavra que lhe saía dos lábios rosados e finos. Tinha um olhar lânguido como os últimos raios do dia. A cabeça, mais angélica do que feminina, aspirava ao céu. Quinze anos contava, como Julieta. Como Ofélia, parecia que estava destinada a colher a um tempo as flores da terra e as flores da morte.

De todas as irmãs — eram cinco —, era Marcelina a única a quem a natureza tinha dado tão pouca vida. Todas as mais pareciam ter seiva de sobra. Eram mulheres altas e reforçadas, de olhos vivos e cheios de fogo. Alfenim era o nome que davam a Marcelina. Ninguém a convidava para as fadigas de um baile ou para os grandes passeios. A boa menina fraqueava depois de uma valsa ou no fim de cinqüenta passos do caminho.

Era ela a mais querida dos pais. Tinha na sua fragilidade a razão da preferência. Um instinto secreto dizia aos velhos que ela não havia de viver muito; e como que para desforrá-la do amor que havia de perder, eles a amavam mais do que às outras filhas. Era ela a mais moça, circunstância que acrescia àquela, porque ordinariamente os pais amam o último filho mais do que os primeiros, sem que os primeiros pereçam inteiramente no seu coração.

Marcelina tocava piano perfeitamente. Era a sua distração habitual; tinha o gosto da música no mais apurado grau. Conhecia os compositores mais estimados, Mozart, Weber, Beethoven, Palestrina. Quando se assentava ao piano para executar as obras dos seus favoritos, nenhum prazer da terra a tiraria dali.

Chegara à idade em que o coração da mulher começa a interrogá-la secretamente; mas ninguém conhecia um sentimento só de amor no coração de Marcelina. Talvez não fosse a hora, mas todos que a viam acreditavam que ela não pudesse amar na terra, tão do céu parecia ser aquela delicada criatura.

Um poeta de vinte anos, virgem ainda nas suas ilusões, teria encontrado nela o mais puro ideal dos seus sonhos; mas nenhum havia na roda que freqüentava a casa da moça. Os homens que lá iam preferiam a tagarelice insossa e incessante das irmãs à compleição frágil e a recatada modéstia de Marcelina.

A mais velha das irmãs tinha um namorado. As outras sabiam do namoro e o protegiam na medida dos seus recursos. Do namoro ao casamento pouco tempo mediou, apenas um mês. O casamento foi fixado para um dia de junho. O namorado era um belo rapaz de vinte e seis anos, alto, moreno, de olhos e cabelos pretos. Chamava-se Júlio.

No dia seguinte em que se anunciou o casamento de Júlio, Marcelina não se levantou da cama. Era uma ligeira febre que cedeu no fim de dois dias aos esforços de um velho médico, amigo do pai. Mas, ainda assim, a mãe de Marcelina chorou amargamente, e não dormiu uma hora. Nunca houve crise séria na moléstia da filha, mas o simples fato da moléstia bastou para que a boa mãe perdesse a cabeça. Quando a viu de pé regou de lágrimas os pés de uma imagem da Virgem, que era a sua devoção particular.

Entretanto seguiam os preparativos do casamento. Devia efetuar-se dali a quinze dias. Júlio estava radiante de alegria, e não perdia ocasião de comunicar-se a todos o estado em que se achava. Marcelina ouvia-o com tristeza; dizia-lhe duas palavras de cumprimento e desviava a conversa daquele assunto, que lhe parecia penoso. Ninguém reparava, menos o médico, que um dia, em que ela se achava ao piano, disse-lhe com ar pesaroso:

— Menina, isso faz-lhe mal.

— Isso quê?

— Sufoque o que sente, esqueça um sonho impossível e não vá adoecer por um sentimento sem esperança.

Marcelina cravou os olhos nas teclas do piano e levantou-se a chorar.

O doutor saiu mais pesaroso do que estava.

— Está morta, dizia ele descendo as escadas.

O dia do casamento chegou. Foi uma alegria na casa, mesmo para Marcelina, que cobria a irmã de beijos; aos olhos de todos era a afeição fraternal que se manifestava assim num dia de júbilo para a irmã; mas a um olhar experimentado não escaparia a tristeza escondida debaixo daquelas demonstrações tão fervorosas.

Isto não é um romance, nem um conto, nem um episódio; — não me ocuparei, portanto, com os acontecimentos dia por dia. Um mês se passou depois do casamento de Júlio com a irmã de Marcelina. Era o dia marcado para o jantar comemorativo em casa de Júlio. Marcelina foi com repugnância, mas era preciso; simular uma doença era impedir a festa; a boa menina não quis. Foi.

Mas quem pode responder pelo futuro? Marcelina, duas horas depois de estar em casa da irmã, teve uma vertigem. Foi levada para um sofá, mas tornada a si achou-se doente. Foi transportada para casa. Toda a família a acompanhou. A festa não teve lugar.

Declarou-se uma nova febre.

O médico, que sabia o fundo da doença de Marcelina, procurou curar-lhe a um tempo o corpo e o coração. Os remédios do corpo pouco faziam, porque o coração era o mais doente. O médico quando empregava uma dose no corpo, empregava duas no coração. Eram os conselhos brandos, as palavras persuasivas, as carícias quase fraternais. A moça respondia a tudo com um sorriso triste — era a única resposta.

Quando o velho médico lhe dizia:

— Menina, esse amor é impossível…

Ela respondia:

— Que amor?

— Esse: o de seu cunhado.

— Está sonhando, doutor. Eu não amo ninguém.

— É debalde que procura ocultar.

Um dia, como ela insistisse em negar, o doutor ameaçou-a sorrindo que ia contar tudo à mãe.

A moça empalideceu mais do que estava.

— Não, disse ela, não diga nada.

— Então, é verdade?

A moça não ousou responder: fez um leve sinal com a cabeça.

— Mas não vê que é impossível? perguntou o doutor.

— Sei.

— Então por que pensar nisso?

— Não penso.

— Pensa. É por isso que está tão doente…

— Não creia, doutor; estou doente porque Deus o quer; talvez fique boa, talvez não; é indiferente para mim; só Deus é quem manda estas coisas.

— Mas sua mãe?…

— Ela irá ter comigo, se eu morrer.

O médico voltou a cabeça para o lado de uma janela que se achava meio aberta.

Esta conversa reproduziu-se muitas vezes, sempre com o mesmo resultado. Marcelina definhava a olhos vistos. No fim de alguns dias o médico declarou que era impossível salvá-la.

A família ficou desolada com esta notícia.

Júlio ia visitar Marcelina com sua mulher; nessas ocasiões Marcelina sentia-se elevada a uma esfera de bem-aventurança. Vivia da voz de Júlio. As faces se lhe coloriam e os olhos readquiriam um brilho celeste.

Depois voltava ao seu estado habitual.

Mais de uma vez quis o médico declarar à família qual era a verdadeira causa da moléstia de Marcelina; mas que ganharia com isso? Não viria daí o remédio, e a boa menina ficaria do mesmo modo.

A mãe, desesperada com aquele estado de coisas, imaginou todos os meios de salvar a filha; lembrou a mudança de ares, mas a pobre Marcelina raras vezes deixava de arder em febre.

Um dia, era um domingo de julho, a menina declarou que desejava comunicar alguma coisa ao doutor.

Todos os deixaram a sós.

— Que quer? perguntou o médico.

— Sei que é nosso amigo, e sobretudo meu amigo. Sei quanto sente a minha doença, e como lhe dói que eu não possa ficar boa…

— Há de ficar, não fale assim…

— Qual doutor! eu sei o que sinto! Se lhe quero falar é para dizer-lhe uma coisa. Quando eu morrer não diga a ninguém qual foi o motivo da minha morte.

— Não fale assim… interrompeu o velho levando o lenço aos olhos.

— Di-lo-á somente a uma pessoa, continuou Marcelina; é a minha mãe. Essa sim, coitada, que tanto me ama e que vai ter a dor de me perder! Quando lhe disser, entregue-lhe então este papel.

Marcelina tirou debaixo do travesseiro uma folha de papel dobrada em quatro, e atada por uma fita roxa.

— Escreveu isto? Quando? perguntou o médico.

— Antes de adoecer.

O velho tomou o papel das mãos da doente e guardou-o no seu bolso.

— Mas, venha cá, disse ele, que idéias são essas de morrer? Tão moça! Começa apenas a viver; outros corações podem ainda receber os seus afetos; para que quer tão cedo deixar o mundo? Pode ainda encontrar nele uma felicidade digna da sua alma e dos seus sentimentos… Olhe cá, ficando boa iremos todos para fora. A menina gosta da roça. Pois toda a família irá para a roça…

— Basta, doutor! É inútil.

Daí em diante Marcelina pouco falou.

No dia seguinte à tarde Júlio e a mulher vieram visitá-la. Marcelina achava-se pior. Toda a família estava ao pé da cama. A mãe debruçada à cabeça chorava silenciosamente.

Quando veio a noite fechada, declarou-se a crise da morte. Houve então uma explosão de soluços; porém a menina, serena e calma, a todos procurava consolar dando-lhes a esperança de que iria orar por todos no céu.

Quis ver o piano em que tocava; mas era difícil satisfazer-lhe o desejo e ela facilmente se convenceu. Não desistiu porém de ver as músicas; quando elas lhas deram distribuiu-as pelas irmãs.

— Quanto a mim vou tocar outras músicas no céu.

Pediu algumas flores secas que tinha numa gaveta, e distribuiu-as igualmente pelas pessoas presentes.

Às oito horas expirou.

Um mês depois o velho médico, fiel à promessa que fizera à moribunda, pediu uma conferência particular à infeliz mãe.

— Sabe de que morreu Marcelina? perguntou ele; não foi de uma febre, foi de um amor.

— Ah!

— É verdade.

— Quem era?

— A pobre menina pôs a sua felicidade num desejo impossível; mas não se revoltou contra a sorte; resignou-se e morreu.

— Quem era? perguntou a mãe.

— Seu genro.

— É possível? disse a pobre mãe dando um grito.

— É verdade. Eu o descobri, e ela mo confessou. Sabe como eu era amigo dela; fiz tudo quanto pude para desviá-la de semelhante pensamento; mas tinha chegado tarde. A sentença estava lavrada; ela devia amar, adoecer e subir ao céu. Que amor, e que destino!

O velho tinha os olhos rasos de lágrimas; a mãe de Marcelina chorava e soluçava que cortava o coração. Quando ela pôde ficar um pouco calma, o médico continuou:

— A entrevista que ela me pediu nos seus últimos dias foi para dar-me um papel, disse-me então que lho entregasse depois da morte. Aqui o tem.

O médico tirou do bolso o papel que recebera de Marcelina e lho entregou intacto.

— Leia-o, doutor. O segredo é nosso.

O doutor leu em voz alta e com voz trêmula:

Devo morrer deste amor. Sinto que e o primeiro e o último. Podia ser a minha vida e é a minha morte. Por quê? Deus o quer.

Não viu ele nunca que era eu a quem devia amar. Não lhe dizia acaso um secreto instinto que eu carecia dele para ser feliz? Cego! foi procurar o amor de outra, tão sincero como o meu, mas nunca tão grande e tão elevado! Deus o faça feliz!

Escrevi um pensamento mau. Por que me hei de revoltar contra minha irmã? Não pode ela sentir o que eu sinto? Se eu sofro por não ter a felicidade de possuí-lo não sofreria ela, se ele fosse meu? Querer a minha felicidade à custa dela, é um sentimento mau que mamãe nunca me ensinou. Que ela seja feliz e sofra eu a minha sorte.

Talvez eu possa viver; e nesse caso, ó minha Virgem da Conceição, eu só te peço que me dês a força necessária para ser feliz só com a vista dele, embora ele me seja indiferente.

Se mamãe soubesse disto talvez ralhasse comigo, mas eu acho que…

O papel achava-se interrompido neste ponto.

O médico acabou estas linhas banhado em lágrimas. A mãe chorava igualmente. O segredo confiado aos dois morreu com ambos.

Mas um dia, tendo morrido a velha mãe de Marcelina, e procedendo-se ao inventário, foi achado o papel pelo cunhado de Marcelina… Júlio conheceu então a causa da morte a cunhada. Lançou os olhos para um espelho, procurando nas suas feições um raio da simpatia que inspirara a Marcelina, e exclamou:

— Pobre menina!

Acendeu um charuto e foi ao teatro.

                                       II -Antônia

A história conhece um tipo da dissimulação, que resume todos os outros, como a mais alta expressão de todos: — é Tibério. Mas nem esse chegaria a vencer a dissimulação dos Tibérios femininos, armados de olhos e sorrisos capazes de frustrar os planos mais bem combinados e enfraquecer as vontades mais resolutas.

Antônia era uma mulher assim.

Quando eu a conheci era ela casada de doze meses. O marido tinha nela a mais plena confiança. Amavam-se ambos com o amor mais ardente e apaixonado que ainda houve. Era uma alma só em dois corpos. Se ele demorava fora de casa, Antônia não só velava todo o tempo, como desfazia-se em lágrimas de saudades e de dor. Apenas ele chegava, não havia o desenlace comum das recriminações estéreis; Antônia lançava-se-lhe aos braços e tudo voltava em bem.

Onde um não ia, não ia o outro. Para quê, se a felicidade deles residia em estarem juntos, viverem dos olhos um do outro, fora do mundo e dos seus vãos prazeres?

Assim ligadas estas duas criaturas davam ao mundo o doce espetáculo de uma união perfeita. Eram o enlevo das famílias e o desespero dos mal casados.

Antônia era bela; tinha vinte e seis anos. Estava no pleno desenvolvimento de uma dessas belezas robustas e destinadas a resistir à ação do tempo. Oliveira, seu marido, era o que se podia chamar um Apolo. Via-se que aquela mulher devia amar aquele homem e aquele homem devia amar aquela mulher.

Frequentavam a casa de Oliveira alguns amigos, uns da infância, outros de data recente, alguns de menos de um ano, isto é, da data do casamento de Oliveira. A amizade é o melhor pretexto, até hoje inventado, para que um indivíduo pretenda tomar parte na felicidade de outro. Os amigos de Oliveira, que não primavam pela originalidade dos costumes, não ficaram isentos de encantos que a beleza de Antônia produzia em todos. Uns, menos corajosos, desanimaram diante do extremoso amor que ligava o casal; mas um houve, menos tímido, que assentou de si para si tomar lugar à mesa da ventura doméstica do amigo.

Era um tal Moura.

Não sei dos primeiros passos de Moura; nem das esperanças que ele pôde ir concebendo à proporção que corria o tempo. Um dia, porém, a notícia de que entre Moura e Antônia havia um laço de simpatia amorosa surpreendeu a todos.

Antônia era até então o símbolo do amor e da felicidade conjugal. Que demônio lhe soprara ao ouvido tão negra resolução de iludir a confiança e o amor do marido? Uns duvidaram, outros se irritaram, alguns esfregaram as mãos de contentes, animados pela idéia de que o primeiro erro devia ser uma arma e um incentivo para os erros futuros.

Desde que a notícia, contada à meia voz, e com a mais perfeita discrição, correu de boca em boca, todas as atenções voltaram-se para Antônia e Moura. Um olhar, um gesto, um suspiro, escapam aos mais dissimulados; os olhos mais experimentados viram logo a veracidade dos boatos; se os dois se não amavam, estavam perto do amor.

Deve-se acrescentar que ao pé de Oliveira, Moura fazia o papel de deus Pã ao pé do deus Febo. Era uma figura vulgar, às vezes ridículo, sem nada que pudesse legitimar a paixão de uma mulher bela e altiva. Mas assim aconteceu, a grande aprazimento da sombra de La Bruyère.

Uma noite uma família da amizade de Oliveira foi convidá-la para irem ao Teatro Lírico. Antônia mostrou grande desejo de ir. Cantava então não sei que celebridade italiana.

Oliveira, por doente ou por enfado, não quis ir. As instâncias da família que os convidara foram inúteis; Oliveira teimou em ficar.

Oliveira insistia em ficar, Antônia em ir. Depois de muito tempo o mais que se conseguiu foi que Antônia fosse em companhia das amigas, que a trariam depois para casa.

Oliveira ficara em companhia de um amigo.

Mas, antes de saírem todos, Antônia insistiu de novo com o marido para que fosse.

— Mas se eu não quero ir? dizia ele. Vai tu, eu ficarei, conversando com ***.

— E que se tu não fores, disse Antônia o espetáculo não vale nada para mim. Anda!

— Vai, querida, eu irei em outra ocasião.

— Pois não vou!

E sentou-se disposta a não ir ao teatro. As amigas exclamaram em coro:

— Como é isso: não ir? Que maçada! Era o que faltava! anda, anda!

— Vai, sim, disse Oliveira. Então por que eu não vou, não te queres divertir?

Antônia levantou-se:

— Está bem, disse ela, irei.

— De que número é o camarote? perguntou bruscamente Oliveira.

— Vinte, segunda ordem, disseram as amigas de Antônia.

Antônia empalideceu ligeiramente.

— Então, irás depois, não é? disse ela.

— Não, decididamente, não.

— Dize se vais.

— Não, fico, é decidido.

Saíram para o Teatro Lírico. Sob pretexto de que desejava ir ver a celebridade tomei o chapéu e fui ao Teatro Lirico.

Moura estava lá!

                                         III -Carolina

— Pois quê! vais casar-te?

— É verdade.

— Com o Mendonça?

— Com o Mendonça.

— Isso é impossível! Tu, Carolina, tu formosa e moça, mulher de um homem como aquele, sem nada que possa inspirar amor? Ama-o acaso?

— Hei de estimá-lo.

— Não o amas, já vejo.

— É meu dever. Que queres, Lúcia? Meu pai assim o quer, devo obedecer-lhe. Pobre pai! ele cuida fazer a minha felicidade. A fortuna de Mendonça parece-lhe uma garantia de paz e de ventura da minha vida. Como se engana!

— Mas não deves consentir nisso… Vou falar-lhe.

— É inútil, nem eu quero.

— Mas então…

— Olha, há talvez outra razão: creio que meu pai deve favores ao Mendonça; este apaixonou-se por mim, pediu-me; meu pai não teve ânimo de recusar-me.

— Pobre amiga!

Sem conhecer ainda as nossas heroínas, já o leitor começa a lamentar a sorte da futura mulher de Mendonça. É mais uma vítima, dirá o leitor, imolada ao capricho ou à necessidade. Assim é. Carolina devia casar-se daí a alguns dias com Mendonça, e era isso o que lamentava a amiga Lúcia.

— Pobre Carolina!

— Boa Lúcia!

Carolina é uma moça de vinte anos, alta, formosa, refeita. Era uma dessas belezas que seduzem os olhos lascivos, e já por aqui ficam os leitores sabendo que Mendonça é um desses, com a circunstância agravante de ter meios com que lisonjear os seus caprichos.

Bem vejo como me poderia levar longe este último ponto da minha história; mas eu desisto de fazer agora uma sátira contra o vil metal (por que metal?); e bem assim não me dou ao trabalho de descrever a figura da amiga de Carolina.

Direi somente que as duas amigas conversavam no quarto de dormir da prometida noiva de Mendonça.

Depois das lamentações feitas por Lúcia à sorte de Carolina, houve um momento de silêncio. Carolina empregou algumas lágrimas; Lúcia continuou:

— E ele?

— Quem?

— Fernando.

— Ah! esse que me perdoe e me esqueça; é tudo quanto posso fazer por ele. Não quis Deus que fôssemos felizes; paciência!

— Por isso o vi triste lá na sala!

— Triste? ele não sabe nada. Há de ser por outra coisa.

— O Mendonça virá?

— Deve vir.

As duas moças saíram para a sala. Lá se achava Mendonça em conversa com o pai de Carolina, Fernando a uma janela de costas para a rua, uma tia de Carolina conversando com o pai de Lúcia. Ninguém mais havia. Esperava-se a hora do chá.

Quando as duas moças apareceram todos voltaram-se para elas. O pai de Carolina foi buscá-las e levou-as a um sofá.

Depois, no meio do silêncio geral, o velho anunciou o casamento próximo de Carolina e Mendonça.

Ouviu-se um grito sufocado do lado da janela. Ouviu-se, digo mal — não se ouviu; Carolina foi a única que ouviu ou antes adivinhou. Quando voltou os olhos para a janela, Fernando estava de costas para a sala e tinha a cabeça entre mãos.

O chá foi tomado no meio de geral acanhamento. Parece que ninguém, além do noivo e do pai de Carolina, aprovava semelhante consórcio.

Mas, quer aprovasse, quer não, ele devia efetuar-se daí a vinte dias.

Entro no teto conjugal como num túmulo, escrevia Carolina na manhã do casamento à amiga Lúcia; deixo as minhas ilusões à porta, e peço a Deus que não perca só isso.

Quanto a Fernando, a quem ela não pôde ver mais depois da noite da declaração do casamento, eis a carta que ele mandou a Carolina, na véspera de realizar-se o consórcio:

Quis acreditar até hoje que fosse uma ilusão, ou um sonho mau semelhante casamento; agora sei que não é possível duvidar da verdade. Pois quê! tudo te esqueceu, o amor, as promessas, os castelos de felicidade, tudo, por amor de um velho ridículo, mas opulento, isto é, dono desse vil metal, etc., etc..

O leitor sagaz suprirá o resto da carta, acrescentando qualquer período tirado de qualquer romance da moda.

Isto que aí fica escrito não muda em nada a situação da pobre Carolina; condenada a receber recriminações quando ia dar a mão de esposa com o luto no coração.

A única resposta dada por ela à carta de Fernando foi esta:

Esqueça-se de mim.

Fernando não assistiu ao casamento. Lúcia assistiu triste como se fora um enterro. Em geral perguntava-se que amor estranho era aquele que levava Carolina a desfolhar a sua mocidade tão viçosa nos braços de semelhante homem. Ninguém atinava com a resposta.

Como eu não quero entreter os leitores com episódios inúteis e narrações fastidiosas, salto aqui uns seis meses e vou levá-los à casa do Mendonça, numa manhã de inverno.

Lúcia, solteira ainda, está com Carolina, onde costuma ir passar alguns dias. Não se fala na pessoa de Mendonça; Carolina é a primeira a respeitá-lo; a amiga respeita esses sentimentos.

É verdade que os seis primeiros meses de casamento foram para Carolina seis séculos de lágrimas, de angústia, de desespero. De longe a desgraça parecia-lhe menor; mas desde que ela pôde tocar com o dedo o deserto árido e seco em que entrou, então não pôde resistir e chorou amargamente.

Era o único recurso que lhe restava: chorar. Uma porta de bronze separava-a para sempre da felicidade que sonhara nas suas ambições de donzela. Ninguém sabia dessa odisséia íntima, menos Lúcia, que ainda assim sabia mais por adivinhar e por surpreender as torturas menores da companheira dos primeiros anos.

Estavam, pois, as duas em conversa, quando às mãos de Carolina chegou uma carta assinada por Fernando.

Pintava-lhe o antigo namorado o estado em que tinha o coração, as dores que sofrera, as mortes de que escapara. Nessa série de padecimentos, dizia ele, nunca perdera a coragem de viver para amá-la, embora de longe.

A carta era abundante em comentários, mas eu julgo melhor conservar somente a substância dela.

Leu-a Carolina, trêmula e confusa; esteve alguns minutos calada; depois rasgando a carta em tiras muito miúdas:

— Pobre rapaz!

— Que é? perguntou Lúcia.

— É uma carta de Fernando.

Lúcia não insistiu. Carolina indagou do escravo que lhe trouxera a carta o modo por que lhe havia chegado às mãos. O escravo respondeu que um moleque lha entregara à porta. Lúcia deu ordem para que não recebesse cartas que viessem pelo mesmo portador.

Mas no dia seguinte uma nova carta de Fernando chegou às mãos de Carolina. Outro portador a entregara.

Nessa carta Fernando pintava com cores negras a situação em que se achava e pedia dois minutos de entrevista com Carolina.

Carolina hesitou, mas releu a carta; ela parecia tão desesperada e dolorosa, que a pobre moça, em quem falava um resto de amor por Fernando, respondeu afirmativamente.

Ia mandar a resposta, mas de novo hesitou e rasgou o bilhete, protestando fazer o mesmo a quantas cartas chegassem.

Durante os cinco dias seguintes vieram cinco cartas, uma por dia, mas todas ficaram sem resposta, como as anteriores.

Enfim, na noite do quarto dia, Carolina achava-se no gabinete de trabalho, quando assomou à janela que dava para o jardim a figura de Fernando.

A moça deu um grito e recuou.

— Não grite! disse o moço em voz baixa, podem ouvir…

— Mas, fuja! fuja!

— Não! quis vir de propósito, a fim de saber se deveras não me amas, se esqueceste aqueles juramentos…

— Não devo amá-lo!…

— Não deve! Que tem o dever conosco?

— Vou chamar alguém! Fuja! Fuja!

Fernando saltou para o quarto.

— Não, não hás de chamar!

A moça correu para a porta. Fernando travou-lhe do braço.

— Que é isso? disse ele; amo-te tanto, e tu foges de mim? Quem impede a nossa felicidade?

— Quem? Meu marido!

— Seu marido! Que temos nós com ele? Ele…

Carolina pareceu adivinhar um pensamento sinistro em Fernando e tapou os ouvidos. Nesse momento abriu-se a porta e apareceu Lúcia.

Fernando não pôde afrontar a presença da moça. Correu para a janela e saltou para o jardim.

Lúcia, que ouvira as últimas palavras dos dois, correu a abraçar a amiga, exclamando:

— Muito bem! muito bem!

Dias depois Mendonça e Carolina saíram para uma viagem de um ano. Carolina escrevia o seguinte a Lúcia:

Deixo-te, minha Lúcia, mas assim é preciso. Amei Fernando, e não sei se o amo agora, apesar do ato covarde que praticou. Mas eu não quero expor-me a um crime. Se o meu casamento é um túmulo, nem por isso posso deixar de respeitá-lo. Reza por mim e pede a Deus que te faça feliz.

Foi para estas almas corajosas e honradas que se fez a bem-aventurança.

                                     IV - Carlota e Hortência

Uma fila de cinqüenta carros, com um coche fúnebre à frente, dirigia-se para um dos cemitérios da capital.

O carro funerário conduzia o cadáver de Carlota Durval, senhora de vinte e oito anos, morta no esplendor da beleza.

Os que acompanhavam o enterro, apenas dois o faziam por estima à finada: eram Luís Patrício e Valadares.

Os mais iam por satisfazer a vaidade do viúvo, um José Durval, homem de trinta e seis anos, dono de cinco prédios e de uma dose de fatuidade sem igual.

Valadares e Patrício, na qualidade de amigos da finada, eram os únicos que traduziam no rosto a profunda tristeza do coração. Os outros levavam uma cara de tristeza oficial.

Valadares e Patrício iam no mesmo carro.

— Até que morreu a pobre senhora, disse o primeiro ao fim de algum silêncio.

— Coitada! murmurou o outro.

— Na flor da idade, acrescentava o primeiro, mãe de duas crianças tão bonitas, amadas por todos… Deus perdoe aos culpados!

— Ao culpado, que foi só ele. Quanto à outra, essa se não fora desinquietada…

— Tens razão!

— Mas ele deve ter remorsos.

— Quais remorsos! É incapaz de os ter. Não o conheces, como eu? Ri e zomba de tudo. Isto para ele foi apenas um acidente; não lhe dá maior importância, acredita.

Este pequeno diálogo dá já ao leitor uma idéia dos acontecimentos que precederam à morte de Carlota.

Como esses acontecimentos são o objeto destas linhas destinadas a apresentar o perfil desta quarta mulher, passo a narrá-los mui sucintamente.

Carlota casara com vinte e dois anos. Não sei por que apaixonara-se por José Durval, e menos ainda no tempo de solteira, de que depois de casada. O marido era para Carlota um ídolo. Só a idéia de uma infidelidade da parte dele bastava para matá-la.

Viveram algum tempo no meio da mais perfeita paz, não que ele não desse à mulher motivos de desgosto, mas porque eram estes tão encobertos que nunca haviam chegado aos ouvidos da pobre moça.

Um ano antes Hortência B., amiga de Carlota, separava-se do marido. Dizia-se que era por motivos de infidelidade conjugal da parte dele; mas ainda que o não fosse, Carlota receberia a amiga em sua casa, tão amiga era dela.

Carlota compreendia as dores que podiam trazer a uma mulher as infidelidades do marido; por isso recebeu Hortência com os braços abertos e entusiasmo no coração.

Era o mesmo que se uma rosa abrisse o seio confiante a um inseto venenoso.

Dai a seis meses Carlota reconhecia o mal que tinha feito. Mas era tarde.

Hortência era amante de José Durval.

Quando Carlota descobriu qual era a situação de Hortência em relação a ela, sufocou um grito. Era a um tempo, ciúme, desprezo, vergonha. Se alguma coisa podia atenuar a dor que ela sentia, era a covardia do ato de Hortência, que tão mal pagava a hospitalidade que obtivera de Carlota.

Mas o marido? Não era igualmente culpado? Carlota avaliou de um relance toda a hediondez do proceder de ambos, e resolveu romper um dia.

A frieza que começou a manifestar a Hortência, mais do que isso, a repugnância e o desdém com que a tratava, despertou no espírito desta a idéia de que era preciso sair de uma situação tão falsa.

Todavia, retirar-se simplesmente seria confessar o crime. Hortência dissimulou e um dia recriminou a Carlota os seus modos recentes de tratamento.

Então tudo se clareou.

Carlota, com uma cólera sufocada, lançou em rosto à amiga o procedimento que tivera em casa dela. Hortência negou, mas era negar confessando, pois que nenhum tom de sinceridade tinha a sua voz.

Depois disso era necessário sair. Hortência, negando sempre o crime de que era acusada, declarou que sairia de casa.

— Mas isso não desmente, nem remedia nada, disse Carlota com os lábios trêmulos. É simplesmente mudar o teatro das suas loucuras.

Esta cena abalou a saúde de Carlota. No dia seguinte amanheceu doente. Hortência apareceu para falar-lhe, mas ela voltou o rosto para a parede. Hortência não voltou ao quarto, mas também não saiu da casa. José Durval impôs essa condição.

— Que dirá o mundo? perguntava ele.

A pobre mulher foi obrigada a sofrer mais essa humilhação.

A doença foi rápida e benéfica, porque no fim de quinze dias Carlota expirava.

Os leitores já assistiram ao enterro dela.

Quanto a Hortência, continuou a viver em casa de José Durval, até que se passassem os primeiros seis meses do luto, no fim dos quais casaram-se perante um concurso numeroso de amigos, ou pessoas que se davam por isso.

Supondo que os leitores terão curiosidade de saber o que sucedeu depois, aqui termino com uma carta escrita, depois de dois anos da morte de Carlota, por Valadares a L. Patrício.

Meu amigo. Corte, 12 de… — Vou dar-te algumas notícias que te hão de alegrar, como a mim, posto que a caridade evangélica nos manda lastimar as desgraças alheias. Mas há certas desgraças que parecem um castigo do céu e a alma sente-se satisfeita quando vê o crime punido.

Lembras-te ainda da pobre Carlota Durval, morta de desgosto pela traição do marido e de Hortência? Sabes que esta ficou a viver em casa do viúvo, e que no fim de seis meses casaram-se à face da Igreja, como duas criaturas abençoadas do céu? Pois bem, ninguém as faça que as não pague; Durval está mais do que nunca arrependido do passo que deu.

Primeiramente, ao passo que a pobre Carlota era uma pomba sem fel, Hortência é um dragão de saias, que não deixa o marido pôr pé em ramo verde. São exigências de toda a casta, exigências de luxo, exigências de honra, porque a fortuna de Durval não podendo resistir aos ataques de Hortência, foi-se desmoronando a pouco e pouco.

Os desgostos envelheceram o pobre José Durval. Mas se fosse apenas isso, era de agradecer a Deus. O caso, porém, tornou-se pior; Hortência, que traíra a amiga, não teve dúvida em trair o marido: Hortência tem hoje um amante!

É realmente triste semelhante coisa, mas eu não sei por que esfreguei as mãos de contente quando soube da infidelidade de Hortência. Parece que as cinzas da Carlota deviam estremecer de alegria debaixo da terra…

Perdoe-me Deus a blasfêmia, se acaso o é.

Julguei que estas notícias te seriam agradáveis, a ti que estimastes aquela pobre mártir.

Ia acabando sem contar a cena que houve entre Durval e a mulher.

Um bilhete mandado por H. (o amante) caiu nas mãos de José Durval, não sei por que terrível acaso. Houve explosão da parte do marido; mas o infeliz não tinha forças para manter-se na sua posição; dois gritos e dois sorrisos da mulher puseram-lhe água fria na cólera.

Daí em diante, Durval anda triste, cabisbaixo, taciturno. Emagrece a olhos vistos. Pobre homem! afinal de contas começo a ter pena…

Adeus, meu caro, vai cultivando, etc…

Esta carta era dirigida a Campos, onde se achava L. Patrício. A resposta deste foi a seguinte:

Muito me contas, meu amigo Valadares, acerca dos algozes da Carlota. É uma pagã, não deixes de crê-lo, mas no que fazes mal, é em mostrares alegria por essa desgraça. Nem devemos tê-la, nem as cinzas de Carlota se regozijaram no outro mundo. Os maus, no fim de conta, são dignos de lástima, por serem tão fracos que não possam ser bons. E basta a punição para ficarmos já condoídos do pobre homem.

Falemos de outra coisa. Sabes que os cafezais…

Não interessa aos leitores saber dos cafezais de L. Patrício.

O que interessa saber é que Durval morreu de desgosto dentro de pouco tempo, e que Hortência procurou na devoção de uma velhice prematura a expiação dos erros passados.

Machado de Assis
Publicado originalmente em Jornal das Famílias (1865)