Vida dura, a de dona Maroca. Aos dezessete anos, fugira de um colégio de freiras, onde estudava como interna, para viver com um homem vinte e um anos mais velho. Naquele tempo, quando os pais não concordavam com o namoro ou não se tinha dinheiro para bancar as pompas de um casamento, o moço roubava a moça. Com Maroca, juntou tudo isso e mais alguma coisa.
Em uma certa noite, depois que as luzes do internato foram apagadas, lá se foi Maroca pela janela, carregando uma pequena trouxa que ficara o dia todo escondida entre sacos de mantimentos e caixas em um depósito.
Um casal de caboclos deu guarida ao casal. No entanto, o esconderijo foi logo descoberto pelo pai da moça, italiano reacionário que sequer concebia a ideia de ver filha casada com um caboclinho, imagine amigada. Foi uma vergonha só! Coberto pela humilhação, o que tinha a ser feito senão limpar a honra do melhor jeito: fazer o caboclinho casar na marra! Sob a mira de uma espingarda, se necessário.
O casal, que acoitou os fujões, foi preso e surrado até dizer onde os dois estavam. A porta do quarto do pequeno hotel foi arrombada com violência pela polícia que saiu à caça. O casamento no religioso foi feito na mesma semana. Que proclamas, o quê! O velho italiano mandava no povoado e, para ele, a lei era diferente. Como ficar com uma filha desvirginada em casa esperando os proclamas correrem? E sob ameaça de retirada da doação que fazia à igreja, o velho padre rendeu-se e casou os dois. No civil, casariam mais tarde, o que valia, de fato era estarem casados diante de Deus, na Santa Madre Igreja Católica.
A senhora contava a história aos filhos, enquanto a cuia de chimarrão corria, em um final de tarde de um domingo calorento, sob a sombra de um frondoso abacateiro.
__ Não teve casamento no civil, o pai de vocês depois do casamento na igreja, contou que já era casado. A família morava em uma cidadezinha no estado do Rio Grande do Sul. E pra piorar, tinha três filhos. Disse que era separado fazia tempo, mas de que adiantava dizer que era separado? Casar de novo não podia.
__ O pai casou duas vezes na igreja? – perguntou a filha mais velha.
__ Ele disse que não, não tinha casado no religioso com a primeira mulher. Mais vergonha pro meu pai, a filha mais mimada, a única que saiu da roça e foi estudar num colégio de freira, ajuntada com um homem casado. Ele me disse que não ia perdoar nunca. E não perdoou mesmo.
__ Eu me lembro, – completava Jovita a filha mais velha - quando a gente ia visitar o vô, ele sempre dizia: “Negro e urubu são dois bichos parecidos, o negro faz negócio e urubu passa o recibo”. Ele não gostava da gente, somos filhos de caboclo, nosso sobrenome não é italiano.
__ Quanta ignorância! – arrematou Sandra, a caçula, que já contava uns dezoito anos.
__ É, meu pai foi muito ruim _ dizia dona Maroca. -- Ele teve um derrame, não andava, falava com muita dificuldade, passava as tardes sentado na varanda de casa, e quando passava alguém, que achava que era caboclo, ele dizia, em italiano: Negro, cão e urubu são todos iguais.” Puxa! Como ele era racista!
__ E a vó Maria, como era? - Indagou a caçula que não conhecera os avós.
__ A mãe não tinha boca pra nada. Era muito bondosa. Casou com o pai que era viúvo. Naquele tempo, morria muita mulher na hora do parto, e o avô de vocês tinha três filhos pequenos, precisava de uma mulher pra criar as crianças. Eles tiveram sorte porque minha mãe criou como se fossem filhos dela. Trabalhava de sol a sol na roça, cuidava da casa e dos filhos, que desde muito cedo iam pra lida também. E quando foi tendo seus filhos, eram levados pra roça e colocados dentro de um cesto na sombra. De vez em quando, ela ai dar de mamar. E assim, todos cresceram, enquanto o avô de vocês saia pra negociar. Ele comprava porcos, engordava e vendia. Tinha também uma pequena marcenaria, ali fazia móveis encomendados.
__ E com o pai, eles não se acertaram?
__ De jeito nenhum! Teu avô queria ver o capeta pintado, mas não queria ver teu pai. E teu pai também não gostava do sogro. Fiquei sem ver a família toda por muito tempo. Ninguém queria saber de aproximação, eu era muito mal falada. Ficou ainda pior, depois que eles ficaram ricos. Não queriam saber de mim. Eu era a ovelha negra da família, casada com um milico, pra lá e pra cá, de cidade em cidade, de fronteira em fronteira, vivendo que nem cigano.
__ Quando o pai morreu, eles apareceram? – perguntou a caçula.
__ Que apareceram nada! – disse Jovita! A mãe comeu o pão que o diabo amassou, sozinha com seis filhos pra criar. A mais velha, eu, com doze pra treze anos. Tempo duro aqueles, não é, mãe?
__ Bota duro nisso! Mas criei vocês todos. Nenhum é ladrão nem bandido. Quantas vezes fui dormir com fome e você me perguntava: “Não vai comer, mãe?” E eu dizia que não tava com fome...a barriga roncando. Não foi fácil. Lavar roupa pra quinze soldados e passar no ferro a brasa...
__ Eu que o diga! Quanta água puxada daquele poço! Quantas vezes a roupa tinha de ser lavada novamente porque caía cinza, enquanto eu estava passando, sujava e lá ia eu, no dia seguinte, pro tanque. Você e o Sandro não se lembram, eram muito pequenos quando o pai morreu, mas eu e o Milton lembramos muito bem. Quantas vezes foi ele quem trouxe comida pra gente. Pela manhã, trabalhava num açougue, que era de onde vinha, o pouco de carne que comíamos, em troca do serviço dele, à tarde, ele saía com uma caixinha, nas costas, engraxando sapatos, vendia picolé e todo dinheirinho que ganhava, trazia pra casa. Não foi fácil, hem, mano? No inverno, mal agasalhado, você saía quebrando geada com os pés descalços!
__ E no sábado, à tarde, ele saía com uma cesta pesada, entregando as cucas, que eu fazia, encomendas das vizinhas – arrematou dona Maroca com um longo suspiro.__ Coitado, era tão criança e já tinha que dar duro pra ajudar no sustento.
__ Mãe, você lembra da vez que eu pesquei uma galinha? – perguntou Jovita, gargalhando pra valer.
__ Se lembro! Que vergonha!
__ Pescou galinha? _ quis saber Sandro.
__ Então, a mãe não matava nenhuma galinha pra gente comer porque dizia que se tinha galinha tinha ovos sempre. Vez por outra, eu via a mãe tratando das galinhas e ela ficava muito brava dizendo que mais uma tinha sumido. A vizinha estava comendo as galinhas dela. Fiquei com muita raiva! A gente não comia nenhuma pra não faltar ovos, e a filha da mãe roubando. Matutei...Matutei...Caramba! Eles eram ricos! Eram donos do único armazém que havia no bairro! A família De César tinha até um Jeep. Podiam comer galinha quando quisessem. Não era certo.
__ E daí, o que você fez? – perguntou a caçula, curiosa.
__ Um dia, tive que ir pra cidade e disse pra tua irmã cuidar de vocês. O centro da cidade era bem longe, demorei a manhã inteira. Aí, ela aproveitou pra aprontar.
__ É hoje! – pensei. _ Eles vão ver! Nem bem a mãe saiu, lá estava eu, anzol preparado. Pus um grão de milho no anzol, joguei outro punhado no terreiro, perto da porta da cozinha e fiquei esperando. Não demorou muito, veio uma gulosa e engoliu o grão com anzol e tudo! Sucesso! Eu fora bem sucedida! Teríamos galinha ensopada no almoço! Eu estava muito orgulhosa de minha inteligência.
__ E como você sabia que a galinha era da vizinha?
__ As nossas estavam presas porque a mãe achava que elas estavam pondo ovos no mato.
__ De onde você tirou essa ideia? – quis saber Sandro.
__ Sei lá! Eu tive a ideia, executei e deu certo.
__ Nesse dia, então, o almoço foi de domingo? _ perguntou Sandro, dobrando-se de tanto rir.
__ Gorda foi a sova que eu levei! Não teve galinha no almoço.
__ Não teve? – perguntou uma das gêmeas.
__ Não teve. Eu só tinha matado a galinha, pra depenar, precisava jogar água fervendo e eu não sabia limpar. Então, matei e deixei pra mãe limpar quando chegasse. Ela chegou, eu fui correndo contar a minha proeza! Ela não acreditou que eu tivesse feito aquilo. Quando viu a galinha morta, já dentro da panela, prontinha pra ser depenada, me puxou pelo braço, pegou uma cinta e me sovou pra valer. Depois, enrolou a prova do crime num trapo e jogou dentro de um poço que estava abandonado. Demorei muitos anos pra entender porque nossa mãe tinha feito aquilo.
__ Teu pai sempre dizia que mentiroso e ladrão não se criavam na casa dele. Como é que eu podia dar pra vocês comer uma coisa roubada? Que exemplo que eu ia dar? E quando precisasse corrigir um de vocês, que moral ia ter? E o avô de vocês, por mais ruim que fosse, sempre dizia: “ O que é meu, eu quero, o que é de César, daí a César”. Então daí a De César o que é dele. Não entreguei a galinha pro seu De César, como ia explicar que a irmã de vocês tinha pescado. Não a comemos, joguei fora com o coração doendo, pensando na vontade que você devia estar de comer galinha ensopada. Mas, naquele dia, eu podia ter criado um ladrão se não tivesse agido assim.
__ Entendi isso, mãe, mais tarde, quase adulta.
ODENILDE N. MARTINS
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