É na hora da partilha que se conhecem as pessoas. Irmãos se matam pela herança já bem antes do enterro; casais com laços que pareciam eternos se dissolvem, e são regidos pelo ódio e vingança. Quem ganha com isso? Os espertalhões...
Na casa de Mãe Joaninha havia certa alegria no ar abafado e quente. Gorda, já envelhecida, uma papada cobrindo o pescoço roliço, a mãe de santo saltitava como criança, resfolegando. O gato preto ia de um lado a outro espiando; o cachorro, também preto e peludo, cheirando a mofo e a restos de velas queimadas no altar de oferendas, sentara-se num canto da sala de visitas, desconfiado. Mãe Joaninha bendizia a força de todos os santos. Ansiosa, de vez em quando espiava a rua ensolarada pela porta da frente. Esperava por alguém.
No final da tarde, quando nuvens se formavam no cume dos morros, um táxi parou na frente da casa e desceu a senhora magra e cadavérica, com mais de oitenta anos, os passos pequenos e incertos, ajudada pelo motorista, e embarafustou na casa de Mãe Joaninha.
“Ah, por Deus, pensei que não vinha!” – exclamou, aliviada. “Mas aqui está... Sente-se, a casa é tua.”
A velhinha, movida por extremo esforço, abancou-se no sofazinho recapado com tecido ramado.
“Como se sente? As dores se foram?”
“Ah, o corpo formiga, a dor não me deixa dormir...Sou um bagaço...”
“E os sonhos? Ainda te perseguem, mãezinha?”
Não se lembrava dos sonhos.
“Viu?! Não te disse? Em poucos dias não seria mais perseguida pelos sonhos. Está curada! Não duvide da força dos santos, mãezinha! Eles são poderosos... Aquelas ervas são tiro e queda. Por aqui, só eu sei o seu valor. Quando estava na selva, no meio dos índios, Pajeú me ensinou.”
Há dois anos Mãe Joaninha receitava ervas para a velha senhora e ouvia os seus queixumes. O marido dela morrera há 30 anos. Quem cuidava dela? Um copeiro e uma doméstica idiotas. Quando ela procurara por Mãe Joaninha, estava convicta de que deveria deixar a fortuna do finado marido para os dois idiotas.
“Trouxe os documentos, mãezinha?” – perguntou ansiosa, o coração aos pulos.
Houve um breve silêncio. Pela janela da frente, via-se o taxista aguardando a velhinha, escanchado sobre o capô do carro branco. O sol desaparecera e as nuvens engrossavam o céu.
Com dificuldade, remexendo a bolsa, as mãos lentas e os dedos entrevados, a idosa retirou duas folhas impressas, assinadas e registradas em cartório, com carimbos e selos oficiais. Trêmula, entregou-as para a mãe de santo, que a subtraiu rapidamente e as leu com os olhos cheios de cobiça.
“Agora, sim, mãezinha! Os poderes dos santos não te abandonarão mais. Chegue aqui no altar, vamos rezar juntas.”
Solícita, quase não contendo a explosão de alegria, fez a idosa ajoelhar na frente do altar de São Jorge, São Benedito, duas imagens de pais de santos negros e uma imagem esquisita, que parecia a Belzebu ensanguentado. Acendeu sete velas e ajoelhou-se também, recitando as orações de São Cipriano.
Em seguida, abriu a geladeira velha e retirou duas garrafas de água benta, dizendo:
“Continue tomando, as dores sumirão em poucos dias... Esconda essas garrafas, não deixe ninguém ver. Agora, pode ir, o taxista está esperando. Não deve gastar dinheiro com esses vigaristas...”
Quase empurrou a idosa porta afora, tão contente estava. Lá se foram a velhinha e o taxista rua afora. Começara a chover e logo o táxi e os moradores do bairro foram cobertos por uma chuva branca e fina.
Uma semana depois, a velhinha morria. A água que bebia da garrafa parecia intragável, deixando-a indisposta e o coração acelerado. Envenenava-se aos poucos.
Mãe Joaninha herdou tudo: casa, joias, objetos. O copeiro e a doméstica, que a cuidaram por 30 anos, ficaram sem nada. Pior ainda: o copeiro foi preso quando tentou surrupiar um colar de pérolas falso.
Mãe Joaninha está num passeio pelos mares do Caribe...
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