HILTON GORRESEN



Texto que publiquei na coletânea "Saganossa". E o pior é que o fato é real.

DANÇANDO FANK

Sexta-feira. Era o dia em que Claudinha vinha da capital para passarmos juntos o fim de semana. Claudinha não tinha ainda 20 anos, e já conseguira um bom emprego por lá. 
Bom, eu também ainda não cheguei aos 21. Estava estudando para um concurso público. Morava sozinho num apartamento de quarto e sala. Meu dia era estudo, academia, preparar uma comidinha simples e arrumar o apartamento. Ainda mais hoje, que era dia de reencontro. Uma semana em seco, só aguardando. Mas não era só a parte sexual, gostava de me deitar no sofá com a cabeça nas pernas dela e colocar pra fora minhas frustrações. Sozinho, longe de casa, com pouca grana mandada com sacrifico pela família, tendo que pagar cursinho e manter o corpo sarado. Pouco sobrava para um cinema ou para umas cervas.
Claudinha morava com a família dela. Nas sextas-feiras, sem falhar, pegava o ônibus e vinha ficar comigo. Eu ia esperá-la na rodoviária. Meu Pálio 99 ainda aguentava o tranco, apesar de duas trombadas. Ainda estava devendo uma nota na oficina.
Eu era um motorista afoito, mas só isso, evitava brigas e confusões. É que na direção me sentia outro,como se estivesse enfrentado as dificuldades, passando por cima das agruras do cotidiano. 
Esperava passar no concurso e, com sorte, poder mudar para a capital; então podia juntar os trapos com a Claudinha, como eu dizia e ela achava divertido. 
Saí da academia aí pelas 4 da tarde e comecei a “higienização” do apê. A cozinha estava zuada, com o acúmulo das louças da semana. Limpei os restos de comida da mesinha e da pia. Lavei toda a louça engordurada, os copos com restos de cerveja; joguei fora um pacote de pão já azedo. Depois varri o chão e fui passar desinfetante no banheiro. Esfreguei bem as paredes e lustrei o espelho. Chequei a geladeira: havia latinhas de cerveja suficientes. Depois tomei um bom banho e abri a apostila de matemática. Tinha que fazer alguma coisa para ocupar o tempo, por menos atenção que desse às páginas com números e equações.
Vinte para as nove peguei o Pálio na garagem do prédio e vi que precisava de uma boa lavada. Não dava mais tempo. Claudinha chegava no ônibus das nove.
Fui com o coração aos pulos. Era a melhor parte da semana e também da minha vida. Sempre imaginava que ela podia não chegar, que alguma coisa a retivesse na capital, que tivesse perdido o ônibus, sei lá. 
Mas lá estava ela, descendo do ônibus, como sempre, com sua mochila nas costas. Uma lourinha magra e frágil, parecendo mais nova do que era. Tinha o sorriso doce e a voz um pouco infantil. De calcinha, mostrava umas pernas róseas e bem torneadas.
Demos um rolê pela cidade e aí pelas dez da noite resolvemos fazer um lanche. Na rua quase deserta, estava parada uma van da polícia. Os dois policiais que estavam de pé, diante da van, me mandaram encostar o carro. Um deles, atarracado, veio agressivo:
– Cinto não precisa usar, né?
Eu havia tirado o cinto de segurança ao parar. Me mandou descer do carro para olhar o interior do veículo. Obedeci, dizendo que estava tudo certo,que tinha carteira e os documentos estavam em ordem.
Mesmo constatando que os documentos do carro estavam certos e que não havia nenhuma restrição, ele falou que meu carro estava um lixo, que eu devia ser daqueles moleques que “dava pau” no carro. Queria me multar a todo custo.
– Tu estava sem cinto, seu merda. Vai levar multa.
– Engano, seu guarda. Eu estava com cinto. Tirei quando vocês mandaram parar.
– Cala a boca, viado! – gritou o companheiro dele. Vai levar multa e pronto!
– Por que fazer isso comigo, cara? Estou com tudo certo. Estava levando a guria pra tomar um lanche.
Foi quando outro policial gritou de dentro da van:
– Se você falar mais alguma coisa vai tomar um soco na cara, seu bosta.
– Nossa, cara, pra que tudo isso? – eu falei educadamente.
Ele desceu rápido do carro e me deu um soco logo abaixo do olho. Escutei o craque no osso junto com a dor. Tentei me defender, e ele me ameaçou, falando que iam me prender, me espancar, que eu era um merda, se abrisse de novo a boca levava um chute na cara. Claudinha soluçava dentro do Pálio. Mesmo assim, colocou a cabeça para fora do vidro, os olhos vermelhos, e falou revoltada:
– São vocês que são pagos para proteger as pessoas? Não somos bandidos!
– Cala a boca você também, sua piranha! Querem fazer denúncia, podem ir. Querem meu nome? Não vai adiantar nada. Aqui nós é que manda.
O policial que havia me batido afastou-se um pouco e ficou me encarando, como um cão raivoso. Era magro e ágil, tinha as pernas meio arqueadas. Pareciam revoltados, prontos para linchar alguém, e esse alguém no momento era eu.
O primeiro policial, depois de preencher a multa, disse:
– Se você não abrisse a porra da boca não acontecia nada. Agora vai, seu cagão.
Os outros nos olhavam com ar de deboche. Liguei o carro e arranquei dali. Meu rosto já estava dormente no lado do soco, mas o que doía mais era a humilhação. Claudinha ainda soluçava, transtornada. 
Pelo retrovisor, vi os três desgraçados, na calçada, ensaiando passos de funk.

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