O jogo do simbólico - por José Fernandes ( análise crítica sobre o conto "Bico de Ouro / David Gonçalves)

Mais uma vez a análise do professor José Fernandes me surpreende sobremaneira por sua habilidade na percepção dos inúmeros universos contidos em uma obra. É delicioso, depois da leitura de um conto, poema, etc., apreciar a desenvoltura com que  que o professor transita pela narrativa, desvendando o implícito contido na trama; mostrando que há muito que se "ver" nas entrelinhas,  que o não dito através das palavras confere valor ao escrito. Quero frisar a importância de se ler uma boa análise crítica, pois a mesma acaba por nos levar a descobertas dantes não feitas; e, que por consequência, nos deixa na superfície da leitura.

                           O JOGO SIMBÓLICO 

                               José Fernandes
A arte literária, como nenhuma outra, joga com símbolos, de tal modo que, principalmente no discurso poético, chega-se a revelar para esconder e a esconder para revelar. Na ficção, também, o discurso sempre é simbólico; mas há narrativas em que ele se sobressai, a fim de que o estético se instale e a alegoria aponte para direções semânticas diversas. Assim, no conto Bico de ouro, a cor vermelha, inicialmente da camioneta, aponta para a briga de galos, em que ganha o que conseguir derrubar o outro, esgarçando-lhe o pescoço e a crista. Em consequência, o sangue será intenso, uma vez que o vermelho estará presente na oposição que se instaura entre os importantes contendores em momentos de peleja. 

O sangue, na conjuntura do conto, não apenas decorre da natural contenda entre os animais, mas, sobretudo, pela batalha que se trava entre os mandões da política e da economia, normalmente guarnecidos por guarda-costas, escolhidos entre meliantes e bandidos. Em circunstâncias determinadas, o sangue é utilizado apenas para aparentar rivalidades, encenar desavenças, acobertando, na verdade, conluios passados somente na alta cúpula da corrupção, tão conhecida do leitor. Consoante essa interpretação, o vocábulo rinha adquire uma interpretação dupla, pois pode referir-se tanto à briga de galos, quanto às cenas que se montam em torno do poder e suas cristas: os galos que mandam na cidade, como se apercebe pela empáfia do deputado.

No contexto do desmando e da maior crista, o jogo proibido adquire uma simbologia singular: deixa entrever um prazer especial, manifesto no desrespeito à lei e, sobretudo, pelo fato de os galos políticos se colocarem acima dela. Ligado à satisfação da violação, situa-se, também, um verdadeiro deleite pelo sangue, uma espécie de sadismo, expressão do extravasamento de anomalias que se comprazem com a dor e suas consequências, como se verifica à morte do galinho de Quadrínculo: O sangue espirrou quente. O público se eletrizou. (2002:93). O contentamento do público, no entanto, contrasta o com o sentimento do narrador ante a inutilidade do perdedor, abandonado pelo dono, tendo como única serventia encharcar a serragem de vermelho vivo (2002:94).

A rinha, a partir do momento que começam as lutas, passa a representar a própria sociedade, em que se têm os fortes e os fracos, ou os incluídos e os excluídos. Percebe-se essa imagem na peleja entre Asa Quebrada e Perneta, marcada pelo desinteresse dos apostadores e da plateia. A exclusão, nesse caso, se inscreve no nome das “personagens”, caracterizadas por defeitos físicos, definidores da incapacidade para o combate e, em consequência, também para a batalha que se configura apenas como espetáculo para divertir o poder, como ocorre com os humanos, relegados apenas à existência, sem participar da totalidade do que a vida poderia oferecer. Mesmo as vezes que ela se assemelha à existência de Perneta, protegido pelo dono, o ser não chega a ascender à plenitude, uma vez que está sempre dependente de quem lhe detém a posse.

Os excluídos representam, inclusive, para uma massa indefinida, uma vez que não ascendeu à minoria que controla o poder; mas, também, não degradou inteiramente. São os que apostam nos pernetas e asas quebradas só para ver o circo pegar fogo, à exceção, em parte, de Jiló, que faz valer a essência do nome, e defende Perneta, por achar injusto desdenhá-lo. Mesmo assim, reconhece que deseja atiçar a festa.

A narrativa, como vimos percebendo, é uma sátira à sociedade, em que sequer o pároco escapa à leitura, nas entrelinhas. Nessa circunstância, o texto bíblico colocado no meio da narrativa funciona como uma endógrafe que percorre todo o discurso na direção da epígrafe, não havida, e em direção à hipógrafe, também ausente; mas ambas compensadas pela força das palavras do Evangelho. O ofício divino, neste jogo de hipocrisias sociais, compete com o jogo da rinha, à medida que o padre celebra mais preocupado com a diversão do que com a obrigação.

Ludovico, além de desviar o padre de suas funções, exercita os significados do nome, guerreiro, às avessas: por mais que se esforce, não deixa de ser pobre, uma que vez gasta o pouco de que ganha na criação de galos de briga. Por outro lado, Padre Zeca, tendo o nome deturpado, também tem sua vida afastada dos rumos, uma vez que o jota, inicial de Iavel, lhe fora subtraída e, com ela, os acréscimos dela advindos. É por isso que maldiz a carreira a que abraçara, além de condenar a sociedade que lhe exige determinado recato. Para fazer o que gosta, é obrigado a valer-se de disfarce, nada condizente com a vida de um religioso. Não é sem motivo que escolhe Gervásio — significa vestir — como pseudônimo, uma vez que se traveste de civil e de personalidade, a fim de participar do jogo. Em seu caso, o ludismo é tamanho que chega a colocar a vida e a reputação em jogo.

Ironicamente, no entanto, Gervásio pensa incorporar as outras acepções do nome, através do colega de infância que, pela descrição, realmente era potente e governava com lança: Nunca perdeu uma briga entre a molecada. Tinha tutano. Não levava desaforos para casa.(2002:102). A conversa do padre, entretanto, causa espécime em Ludovico, pois acha estranho que alguém possa incorporar a alma de um vivo, o que anula a possibilidade de Gervásio encarnar Gervásio e passar a ser brigão e ter tutano. Ademais, a própria sugestão, segundo pressentiu Ludovico, não ficava bem naquele momento: — Sei lá, padre. Tenho medo de mexer com essas coisas. Os espíritos vivem em mundos diferentes (2002:103.

Ludovico não recrimina o padre sem razão. Trata-se de uma pessoa que se deixa levar pelas superstições. Ouvir o galo cantar, fora de hora, dentro do carro, é o suficiente para ele acreditar que aquele dia seria de azar. O canto afigura-se-lhe como um presságio, um mal agouro. Por outro lado, o padre que falara em incorporação, agora diz tratar-se de mera superstição, porquanto está ávido para assistir às lutas. O pior, no entanto, é que Ludovico estava certo. Seus pressentimentos se tornaram realidade.

Se a endógrafe se contrapõe às ações do padre e, sobretudo, à hipocrisia dos detentores do poder, a letra da música Cabocla Teresa, pelo seu caráter trágico, liga-se à cor vermelha da camioneta e ao sangue que se derrama na rinha, tanto por parte dos galos, quanto pelos homens que se digladiam para conquistar e conservar o poder. Ao mesmo tempo, a letra da música funciona como índice ao que poderá acontecer ao narrador, se ele continuar se engraçando pela morena, já ligada à figuração, devorador de inocência pública. A despeito de o índice apontar para o trágico, ele se encontra com ela e chegam a conversar; mas, para sua felicidade, ela sabia do perigo que a circundava e, ao mesmo tempo, da tranquilidade com que poderia contar.

Outros episódios trágicos eram anunciados pela letra e, sobretudo, pela estranheza dos acordes, aparentemente sem o ânimo que a harmonia e o compasso requeriam. À semelhança da endógrafe evangélica, o discurso musical executa uma semântica que remete para o passado, ocorrido em rinha de Ponta Grossa, e para o futuro próximo, uma vez que Evaristo finge gostar dos rinhadeiros, a fim de obter informações sobre o jogo proibido. A lama vermelha que se segue à obtenção dos dados necessários, e o jogo dos símbolos que lhe são afectos, se adensa, como se prenunciassem a tragédia que estava por acontecer.

Mas não apenas a canção e a lama que pressagiam acontecimentos nefastos.; o próprio narrador, já estando em rinha, medita sobre a amplitude do jogo e sente o destino avisar-lhe que sua vida, após aquele dia, não seria mais a mesma. O jogo extrapolava os limites da semânticas e já atingia até Padre Zeca, já que o disfarce também é uma atividade lúdica, como a que desempenha Evaristo, ao se fingir rinhadeiro. A sociedade, assim visualizada, não passa de um jogo, em que todos lançam os seus dados e as suas cartas.

O vermelho corre em todas as direções, desde a camioneta, até a atração incontida do narrador pela morena que parece tê-lo enfeitiçado, a ponto de ele sentir ciúmes, como se já a conhecesse ou a amasse há muito tempo. A aceleração do ritmo cardíaco demonstra que o sangue está fervendo e, portanto, o vermelho se encontra em ação, como se uma explosão estivesse para acontecer. Estabelece-se, deste modo, uma simbiose entre ele e os galos, que também são símbolos de potência sexual. Destarte, ao agito do galináceo na arena, ocorre-lhe igual agitação dos desejos, como o pescoço pelado, e vermelho, do animal fosse um reflexo de seu alvoroço erótico.

A contradição da cor vermelha se faz notar logo em seguida. O amor sentido pelo morena cede lugar ao ódio pelo espanhol, como se o narrador fizesse parte integrante do jogo, como se a petulância do adversário de Jiló também o atingisse. Em consequência, ele começa a vomitar uma praga sobre o seu galo: O danado haveria de comer o pó da arena, ensanguentado. (2002:129).

A cor vermelha que domina o narrador começa a ser melhor analisada por ele, ao verificar a construtura da rinha, em forma de prisão, a fim de que nenhum dos contendores pudesse fugir à sanha do adversário. Sintomaticamente, aquele inchaço causado pelo ódio do narrador, agora é transferido para os galos, como se os pescoços fossem estourar, dado ao renhido da luta. Por outro lado, se a preocupação com a morena deu lugar ao cuidado com Bico de Ouro, o mesmo não se pode dizer de Evaristo, que se agita mais que os combatentes, a fim de desbaratar a rinha e se tornar famoso. Era agora ou nunca. Mas, de nada adiantou tanto sangue. Evaristo foi desmoralizado, porque o poder de fogo dos rinhadeiros era maior, transformando-o em excremento dos animais, uma espécie de nada aos olhos de quem realmente dispõe sobre o destino da cidade e suas normas.

No momento crucial da luta, o sangue é a tônica. Sangue que esguicha dos combatentes, dos apostadores e das palavras desdenhosas do espanhol, levando Jiló a envermelhar ódio e desânimo. Mas, em vez de o sangue de Jiló encerrar-se em suas bochechas, transfere-se inesperadamente para Bico de Ouro que, movido por alguma magia, destrona o adversário de sua empáfia. Sob certo sentido, todas as personagens que compõem a narrativa são animadas pelo sangue: dos galos, impondo a morte aos vencidos: os donos, pelo júbilo de ver o pupilo vitorioso; os assistentes, pela alegria da aposta ganha; o enamorado, pela correspondência do amor. Finalmente, Jiló, não somente pela cor vermelha calhar à essência do nome, quanto por sentir-se tocado pelo amor, após ver e aspirar o cheiro do sangue. A obsessão pelo vermelho assemelha-se a uma espécie de tara inerente ao ser das personagens, notadamente Jiló, como se fosse ele, mobilizado por um sentimento sádico, que tem no sangue sua fonte, como se depreende de sua animação ao final do relato. 

Por falar em relato, em um passe de mágica, o narrador, que até aquele momento dirigia os passos da narrativa, se ausenta, como se passasse a ver os acontecimentos de longe, como se outorgasse a outro o destino do discurso e, talvez, o das próprias personagens. Constitui também esse um jogo para deixar em suspenso o que lhes ocorrera naquela casa, à beira da estrada.Será que se sucumbiram pelo amor?
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