O DIÁLOGO SEM DIÁLOGO


Técnica
O diálogo sem diálogo
Há situações em que mais importante do que a fala em si é resumir o conteúdo do que está sendo dito, em benefício da rapidez narrativa.

Escrever diálogos na prosa de ficção parece ser mais simples do que narrar ações ou descrever ambientes, já que todos nós conversamos várias vezes por dia. O diálogo é algo que já estamos acostumados a fazer. 

O problema surge quando o pretendente a escritor percebe que terá de falar em nome de diferentes pessoas, com diferentes personalidades, idades, classes sociais; terá de entender e reproduzir o modo como se comunicam. 

Como regra geral, o diálogo deve ser recriado (ou seja, devemos reproduzir o que os personagens disseram) quando queremos dar a impressão realista de duas ou mais pessoas interagindo, com as variações emocionais, as interrupções, hesitações, exageros, contradições, escolhas vocabulares, e tudo que compõe uma conversa.

Mesmo quando um personagem se alonga numa narrativa ou argumentação é bom mostrar essa fala diretamente, se achamos importante manter a voz narrativa do indivíduo.

Há situações, no entanto, em que mais importante do que a fala em si é resumir o conteúdo do que está sendo dito, em benefício da rapidez narrativa. A maioria dessas falas pode ser sintetizada em poucas linhas: 

"No trajeto entre o aeroporto e o hotel, ela me contou sobre seu casamento, a filhinha pequena, a rumorosa separação, o divórcio".

Referência indireta
Se o que o leitor precisa saber é que a personagem casou, teve uma filhinha e se divorciou, é melhor substituir as frases dela por uma referência indireta. Claro que quaisquer detalhes que tenham importância para o enredo devem ser incluídos nesses resumos.

Cada autor encontra uma maneira de reproduzir esses diálogos indiretos. No seu conto clássico, "A Loteria", Shirley Jackson descreve a reunião dos habitantes de uma cidadezinha para um ritual em praça pública:

"Logo os homens começaram a se agrupar, de olho nas crianças, falando do plantio ou da chuva, dos tratores e dos impostos. Ficaram todos juntos, afastados da pilha de pedras que havia num canto; seus gracejos eram moderados e eles mais sorriam do que gargalhavam. As mulheres, usando vestidos caseiros surrados e suéteres, vieram logo após os maridos. Cumprimentaram-se umas às outras e trocaram pequenas fofocas enquanto se juntavam aos esposos. Logo todas elas, reunidas aos maridos, começaram a chamar as crianças para perto de si, e elas vieram com relutância, tendo que ser chamadas quatro ou cinco vezes". 

Transformar esta cena em diálogo iria requerer mais de uma página inteira, sem nenhum ganho narrativo apreciável, a não ser, talvez, individualizar os personagens, mas isto acaba sendo feito na sequência da história. Do modo como está, a escritora demarca com sutileza um movimento coletivo que se inicia com os homens, passa pelas mulheres e chega aos filhos, o que corresponde ao sentido profundo dessa história, um clássico do conto de terror não sobrenatural.

Diálogo mudo
Emudecer os diálogos e fazer só um índice deles pode ser um recurso para deixar mais nítido o mundo mental dos personagens. 
Em "Minha Gente" (de Sagarana), o narrador de Guimarães Rosa faz um trecho de viagem ao lado de Santana, um inspetor escolar. Os dois jogam xadrez com uma caixinha portátil enquanto cavalgam sem pressa. Ele diz:

"Mas já Santana rearrumara as peças e sumira no bolso a carteirinha. 
- Adiemos esta partida. Vamos conversar. 

Concordei, a bem da harmonia contemplativa.

E Santana fala: partidas fechadas... xadrez e memória... psicologia infantil... cidade e roça... escola ativa... devoção e nutrição... a mentalidade do capiau..."

O autor se dispensa de reproduzir tudo isto, até porque as páginas anteriores já trazem uma conversa rica e variada entre os dois personagens. 

Neste pequeno resumo indireto, ele aproveita para assinalar melhor as preocupações de Santana (xadrez, educação) e também para sugerir passagem de tempo, porque subliminarmente o leitor recebe a informação de que um certo trecho de caminho foi percorrido enquanto os dois abordavam todos estes assuntos. 

Esse tipo de recurso pode ser usado não para economizar narrativa, mas para produzir efeito. Um dos que o usam melhor é Raymond Chandler. Em A Dama do Lago, o detetive Philip Marlowe encara um cliente rico e arrogante, o qual tenta "pô-lo no seu lugar" mas recebe uma resposta à altura. Segue-se este diálogo:

"- Quero que encontre minha mulher - disse ele. - Ela está desaparecida há um mês.

- OK - disse eu. - Vou encontrar sua mulher.

Ele pousou com força a palma das mãos na mesa. Olhou para mim com firmeza.

- Acho que vai - disse. Depois sorriu. - Há quatro anos ninguém me desarma desse jeito.

Eu não disse nada.

- Dane-se - disse ele. - Eu gostei de ver. Gostei mesmo. - Passou a mão pelo cabelo, que era espesso e escuro. - Faz um mês que ela sumiu - disse. - De uma cabana que nós temos na montanha. Perto de Puma Point. Você conhece Puma Point?

Eu lhe disse que conhecia Puma Point."

Barreira invisível
Nada teria custado ao autor, nesta última fala, colocar algo como 
"- Sim, conheço." 

Mas ele faz Marlowe responder sem falar. A cada fala do cliente, Marlowe recua mais um passo, distancia-se dele, como quem diz "agora é sua vez de conquistar minha confiança". Chandler usa com frequência esse truque para mostrar a barreira invisível que Marlowe coloca entre si e o interlocutor quando quer impor respeito, principalmente com policiais:

"- O Capitão Webber vai assumir o caso e ele gosta de fazer tudo ele mesmo. - Ele olhou para mim e disse: - É você, um homem chamado Marlowe?

Eu lhe disse que era um homem chamado Marlowe."

São casos em que a omissão do diálogo se torna mais expressiva do que sua presença. 
http://revistalingua.uol.com.br/textos/97/o-dialogo-sem-dialogo-301007-1.asp

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