Bico de ouro - Conto / David Gonçalves - trecho 5


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Onde, quando e como agir? Delegado Evaristo estava agitado, ora prestava atenção à rinha, ora nas múltiplas fisionomias que se espremiam para ver o desfecho. Gritos, afrontas e vaias irritavam-no. Os tímpanos doíam. Outra questão o incomodava: quem eram as figuras imponentes que ali estavam? Abonados, irreverentes, donos do mundo, que importância tinham na vida pública?

– Bem – pensou, esfregando as mãos geladas –, cumprir o dever é minha obrigação. Ninguém está acima da lei.

Sempre que estava para agir as mãos gelavam, todo sangue subia à cabeça, e duas manchas vermelhas se sobressaíam na fronte.

Não gostaria, entretanto, de mexer numa caixa de marimbondos. Poderia sair picado. Lembrou-se de velho ditado de seu pai: “Os marimbondos só picam o rosto de quem chora”.

Alguém jogou uma garrafa de plástico no meio da rinha. O juiz parou a contenda a contragosto dos galos, mas não identificou o contraventor. Deu-se, em seguida, novo início, os galos um pouco intimidados.

– Do derramamento de sangue animal ao de sangue humano, só um passo. “Não matarás” também inclui os animais – questionava em voz baixa, embora roufenha, no meio da turba, justamente quando Bico de Ouro despachava o esporaço sobre a garganta de Pluma de Águia, mas errara o alvo.

Bárbara, aquela gente! O rinhadeiro se assemelhava grotescamente à Antiga Roma, onde homens e bichos se matavam para alegria dos reis, príncipes e plebe. Havia, desde o começo do mundo, sede por sangue. Mas, naquele dia, aquela gente selvagem teria o merecido fim. Este pensamento o confortou e novamente esfregou as mãos geladas. Quem sabe, ali estaria a sua promoção. Suas pupilas cresceram. Adeus, Quadrínculo, merreca de cidade. Ali estava a grande chance. Estourar um rinhadeiro! Notícias explodiriam na mídia. No Estado inteiro, quem sabe no país inteiro. Ali, na sua frente, a grande chance. Teria, com certeza, a promoção sonhada. Adeus, Quadrínculo, terra dos esquecidos. Sentiu-se por cima da carne seca. Se nada fizesse, talvez ficasse para o resto da vida na insignificância. Em pouco tempo, poderia estar na capital dando ordens e bebendo uísque escocês e jamais uísque vagabundo. Que sorte ter encontrado aqueles desconhecidos no bar!

Mas como realizar a tomada do rinhadeiro? Na delegacia, sob seu comando, só três polícias, desinformados e sem treino, acomodados, com armas enferrujadas. Ele – apenas um trinta e oito escondido debaixo da jaqueta de couro puído, debaixo de sol quase escaldante. Sinceramente, não havia como executar plano algum. Cheirava o melado à sua boca e não podia lambê-lo. Que situação!

– Eu posso! O melado é meu. Há anos eliminei a palavra impossível de meu vocabulário. É a grande chance. Só um tolo deixaria passar esta oportunidade de ouro...

Resolveu dar ordem de comando aos três polícias que estavam de plantão na delegacia. Saiu do rinhadeiro e, atrás de moitas de bambu, telefonou à delegacia, mas o celular, naquela área, não funcionou. “Merda”, esbravejou. “Por que fabricam produtos que não funcionam?” Informou-se junto ao armazém onde poderia encontrar telefone público. E, de um orelhão, conseguiu expedir a ordem, acrescentando:

– Avisem o Pinga Fogo! É prato cheio pra ele! Notícia quentinha, pão que ainda está no forno. Se apressem!

Pinga Fogo era o jornalista porta-de-cadeia mais famoso da região.

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Parece que havia terminado o primeiro “round”. Com as mãos, o juiz interrompeu a briga e pediu aos galeiros que cuidassem de seus galos. Havia controvérsias sobre o possível vencedor. Muitos se aproveitaram do intervalo para reabastecer-se de cerveja e cachaça no armazém. Compadre Jiló segurava Bico de Ouro sobre a pança, limpando com um pedaço de pano de algodão os pequenos arranhões, acariciando e dando eventuais conselhos, relembrando táticas e estratégias de combate. O galo se mostrava inquieto, nervoso, bicava com força o ar e, às vezes, os braços do dono, a cabeça indo de um lado a outro, os olhos congestionados.

– Calma, galinho, bote raiva no inimigo – aconselhava Jiló, como se cuidasse de um bebê. – Por que tanta pressa? Quando chegar a hora... Por enquanto, canse o desaforado. Depois...

O espanhol, com certeza faria o mesmo, só que do outro lado do rinhadeiro. Os violeiros principiaram um desafio. Rimas desencontradas, mas pitorescas e provocativas. Um dizia ao outro com voz voz aguda:

Ah, estimado companheiro
Você diz que sabe muito,
Vaga-lume sabe mais!
Vaga-lume acende atrás,
Coisa que você não faz!

Uma sonora gargalhada acompanhada de palmas correu de lado a lado. Fiquei curioso. Qual seria a resposta do grandalhão?

Agora vou descobrir
As falhas que você tem.
Você é falso como Judas,
Você nunca foi ninguém!
E fique agora sabendo:
É mais fácil um boi voá,
Um urubu ficá belo
E calça calçá chinelo,
Do que você derrubá meu castelo!

Mais aplausos. Até parecia que a turba simplesmente se esquecera da rinha. A resposta veio de imediato:

Pois, meu amigo, fique sabendo:
Eu já suspendi um raio
E fiz o vento Pará.
Já fiz estrela corrê.
Já fiz sol quente esfriá,
E já segurei uma onça
Pra um violeiro mamá!

O povo delirou. Com certeza, haveria contra-resposta. Mas o juiz anunciou o começo da briga. Assim, todos se abancaram. E os galos novamente foram postos em posição de combate.

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Compadre Jiló mirava firme o seu galo de estimação, como um grande técnico transmitindo orientações através de ondas cerebrais. Pluma de Águia se encostou de novo, bico a bico, pescoço inchado grudado no adversário, disparando bicadas curtas. Bico de Ouro, sabiamente, quando se sentia bicado no dorso, recuava ágil, safando-se, e a pua venenosa passava sobre sua crista sem direção e se perdia no vazio.

– Cinquenta pratas no pescoço pelado!

Só o bater de asas e o retinir das puas responderam.

– Cinquenta pratas por quarenta! – voltou a desafiar o baixote, o bigode dançando no rosto atrevido.

Jiló me olhou firme. Meneou a cabeça consentindo. Gelei. E se perdesse? Enfiei a mão no bolso e gritei, a voz esganiçada:

– Aceito! O Bico de Ouro acaba de faturar dez reais...

O público se voltou e me olhou, elétrico. Senti que a maioria estava apostando no adversário. “Que se dane! Esse dinheiro é do Jiló!” – desabafei comigo mesmo. A cachaça corria solta. Emborquei um gole espichado. “Arre, queima como soda.” Naquele momento, aproveitando-se de vários revoos, Pluma de Águia empurrava nosso galo de um lado a outro do redondel, o bico grudado, cruzando o pescoço, tal um nó bem dado. Mas Bico de Ouro se safava quando era bicado na altura do cogote, desviando-se dos puaços. Então, veio o inevitável, que me trincou o coração: num voo rasante, a pua venenosa acertou sua cabeça em cheio e o sangue espirrou quente, vermelho escuro. Sem titubeios, Pluma de Águia desferiu outros golpes rápidos e inesperados. Brilhava ensanguentada a cabeça de nosso galo, que andava em círculo, encostando-se na cerca, perseguido daqui, de lá, vítima de uma fúria selvagem. 

– Cem pratas no Pluma de Águia! – gritou o espanhol num rompante desafiador.

Olhei apreensivo na direção do compadre. Um suor gélido brotava em minhas mãos. Jiló segurava a pança, também perdido, sem saber o que fazer, e seu tique nervoso fazia a orelha direita pular como diabinho em tacho quente. Bico de Ouro seguia espremido entre a cerca e o adversário, protegendo-se dos puaços mortais. Senti a derrota se abater sobre nós. Mais uma vez a pua veloz do inimigo acertara uma verruga na crista e, em seguida, uma dobra de pele no pescoço, arrancando penas. O sangue brotou.

– Aceite! – ordenou Jiló, murmurando, a voz cacarejada, rouca, quase inaudível. – Não sou cachorro de rua que corre à toa!

– Mas... ele não vai aguentar!

– Dobre a quantia. Duzentos contra cem!

– Está louco! A cabeça e o pescoço ensanguentados...

– Anuncie! Nunca abaixe as calças, rapaz!

Então, reunindo forças, gritei:

– Duzentos contra cem no Bico de Ouro!

Murmúrios eclodiram na plateia. Olhares espantados e curiosos me fixaram. No mínimo, me consideravam louco. Aguentei sem vacilo.

– Aceito! – o espanhol ria alto, contente com a certeza de engordar a capanga, ordenando: – Vamos lá, meu herói. Acabe de vez com esse galinho de bosta! Dá-lhe mais, descarregue o golpe mortal, aquele que só você sabe. Acerte bem no olho dele! É canja!

– Aposte trezentos contra duzentos! – ordenou Jiló.

Fui à loucura. Onde estava a cabeça do compadre? Nosso galo estava encurralado, perdido, grogue, sequer ensaiava alguma defesa. Jiló havia enlouquecido?

– Aposte, rapaz! Ninguém monta a cavalo nos meus costados.

Voltei a gritar no meio do vozerio frenético:

– Trezentas pratas contra duzentas!

Todo mundo pegou. Em meus bolsos ficaram somente algumas notas. O maço evaporara. Esbarrei com o olhar incrédulo e cheio de censura de Geovana, que não acreditava no que via. Até ela considerava tudo aquilo loucura. O figurão, ao seu lado, ria mostrando os dentes alvos, enquanto queimava cigarros caros.

O espanhol bazofiava. Crescia e expandia igual tiririca.

– Dá-lhe outra! Mande de vez esse galinho pro cemitério. Mostre o golpe fatal. Rebente os olhos dele!

Choveram apostas. Pluma de Águia na cabeça. Os minutos se arrastavam. O combate prosseguia sanguinolento a favor do bazofiador. Bico de Ouro resistia bravamente às investidas, protegendo-se, flanqueando, fugindo, vez por outra revidando. Circulava, negaceava, escondia a cabeça ensanguentada debaixo das asas do inimigo, enquanto segurava o pescoço teso, como quisesse dar um nó.

Pluma de Águia disparou o golpe mortal, voando com bico e esporas afiados sobre o seu dorso, e o acertou de raspão. Compadre Jiló puxou do bolso das largas calças, sustentadas por suspensórios, uma pequena oração costurada num patuá e começou a mexer os lábios nervosos, como se comesse milho. Os tiques nervosos faziam sua orelha agitar-se como uma folha num vento forte. Depois, esbarrou meu ombro direito, dizendo:

– Ainda resta algum dinheiro?

Saquei as últimas notas e contei. “Cem reais”, cochichei. “O que faço?” Nada me respondeu. Voltou a puxar do patuá e a rezar incontinenti, sibilando, possuído, a orelha se mexendo. No rinhadeiro, mais uma vez o nosso galo levara um golpe, bem no peito. Caíra de costas e se levantara rápido. E, naquele instante, desnorteado, batia em retirada, como se estivesse cansado da batalha.

– Aposte cem por dez!

– Você está maluco?! Perderemos tudo...

– O dinheiro é meu. Jogue! Cem por dez!

Havia um brilho sobrenatural em suas faces gordas.

– Cem por dez no Bico de Ouro! – berrei.

– Aceito! Nunca vi tamanha barbada – o espanhol não cabia em si de contente. – Vamos, meu herói, acabe com a festa. Esse titica não aguenta mais. Só mais uma!



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