Bico de ouro - conto - David Gonçalves - trecho 6


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– É galo ou galinha? É galo ou galinha?

Pluma de Águia, enfurecido, não dava tréguas. Cutucava por baixo e dava arremetida de esporas por cima, no lado, no dorso e na cabeça. Mas Bico de Ouro circulava rápido, fugindo, perdido, sem saber para onde ir. A plateia debicava – risos e chacotas cruéis.

– É galo ou galinha! 

Avermelharam-se as faces de compadre Jiló. Parecia que o sangue subira à cabeça e teria um ataque, caindo duro. Senti medo. Só faltava essa! Teria que levar o compadre morto para casa...

Aqueles risos e chacotas me magoaram também. Por que não dizer enfureceram? Nos meus bolsos, não havia mais dinheiro. O riso espichado do espanhol parecia riso do diabo. Já se achava dono de toda a grana. E nosso galo fugia desesperado. Vi o telhado em cacos. Pelo que sabia, Jiló não era tão rico que pudesse queimar dinheiro daquele jeito. Na certa, emprestara dinheiro na expectativa de multiplicá-lo e restituí-lo no dia seguinte, com juros e mais alguns trocados. Triste segunda-feira... O homem poderia ter um ataque e cair no chão, as faces vermelhas entumecidas. Bico de Ouro trocava pernas, cansado, em poucos minutos ficaria de arrasto.

– Fure os olhos dele!

Pluma de Águia obedeceu: despachou o puaço certeiro, na diagonal, como um raio em noite de trevas. Por pouco não sangrou o olho esquerdo de nosso galinho. O juiz veio consultar compadre Jiló. Era o momento de parar a briga? Havia prenúncios de massacre.

– Dou uma boiada pra não desistir. Agora estou na chuva! E vou me molhar! – respondeu Jiló, ofendido, inchando a papada vermelha entumescida ao redor do pescoço.

Em seguida, lamentou-se em voz baixa:

– Bico de Ouro, não me faça passar vergonha... Que história é essa de levar puaços do rabo à crista, correndo assim como garnisé?!

O galo parou. O inimigo também.

– A briga acabou! Acabou! – o espanhol se vangloriava, contando lorotas. – Jogue a toalha, Jiló! É o fim. Eu não disse? O Pluma de Águia está sovando. Está cansado de bater tanto...

Olhei na direção da morena de olhos de jabuticaba. Estava aflita, olhos negros amedrontados, como se visse a morte naquele instante. Puxei Jiló pela camisa suada e implorei:

– Acabe logo com isso. Vai ser um massacre. Esqueça o dinheiro. Salve o galo! Pegue ele e vamos embora...

Não me ouviu.Voltei à carga.

– Não é o dia de nosso galo... As coisas deram errado. Veja, ele nem aceita a briga. Está amuado, encolhido.

Então, compadre Jiló sacou do patuá novamente e começou a mexer os lábios, a orelha se mexendo. Em seguida, assobiou estridente, pelos cantos dos lábios, a língua espremida. E o Bico de Ouro ouviu. Esticou o pescoço, alertou-se, a cabeça no alto e tensa, à escuta, o bico em formato de foice, a crista retesada.

– Vamos acabar com essa mixórdia! Ele agalinhou. Não é de nada. Só falta brigar com o rabo – o espanhol não dava tréguas, animadíssimo, esfregando as mãos de contente. – Pois acreditem, ainda não nasceu galo que faça frente ao meu!

Compadre Jiló ajoelhou-se junto ao redondel e com as enormes mãos acariciou Bico de Ouro, sempre falando baixinho, quase sussurros, sentidos e comoventes. Permaneceu um minuto ajoelhado. Nada consegui ouvir. As faces vermelhas salpicadas de manchas carmesins e até escuras. “”Ah, por Deus, ele vai ter um treco...” A plateia dava a briga por encerrada. O juiz interpelou novamente compadre Jiló, enquanto o espanhol saltitava contando vantagens:

– Joga a toalha, Jiló?

Respirou fundo. Faltava-lhe ar. O enorme corpo estava paralisado. As bochechas vermelhas, como se estivesse com febre. Ou tostadas por fogo. Senti medo. Um ataque? Espumaria pela boca? Impressão minha. Aquelas gotas de suor sobre os lábios.... E aquela orelha com tique nervoso que não parava quieta... 

– É galo ou galinha? – as pessoas repetiam.

– Vá firme, meu galinho... É a sua vez! – instigou Jiló, apontando o adversário. – Destrua o pedestal! Acerte bem no pescoço pelado!

Para surpresa geral, a briga recomeçou. Bico de Ouro tomou a iniciativa. Alguma coisa mudara. Não sabia o quê. Mas mudara. O galo me pareceu ter uma crista maior, imensa e espessa. Seu olhar também mudara. Antes, passivo, cauteloso, medroso. Agora, um olhar ferino, de águia. O ódio inflamava seus olhos avermelhados, tal e qual a papada de seu dono. Não se aplacaria até ver o seu adversário morto.

Ao se colocar frente a frente, foi rápido no ataque. Pluma de Águia foi surpreendido com um puaço e começou a sangrar na crista. Uma esporada, duas esporadas, três...A cada bicada enfurecida, o sangue esguichava. A plateia emudeceu. Jiló atiçou:

– Pago cem por dez! Cem por dez!

Ninguém topou. Havia na boca do espanhol um sorriso desaquecido. Olhei na direção da morena de cabeleira crespa. Ela sorria. Sequer ouvia o que o figurão cochichava em seus ouvidos. Bico de Ouro encurralava, bico tingido de sangue, o inimigo para as beiradas do redondel, desferindo golpe sobre golpe, sem tréguas. O juiz consultou o espanhol se queria parar a contenda.

– Eu não corro da batalha! Eu tenho honra!

Neste instante, segurando o patuá na direção do rinhadeiro, Jiló ordenou:

– É agora! Acabe de vez!

Bico de Ouro saltou abrindo as asas e desferiu o golpe fatal: o esporaço no pescoço pelado. O sangue jorrou. Pluma de Águia cambaleou em círculo, tropeçando, feito barata tonta, e caiu estrebuchando.

Olhei à procura da morena. Havia desaparecido.O juiz deu a briga por encerrada. O espanhol chorava.

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Liquidado, no chão, Pluma de Águia, uma posta vermelha de sangue misturado à serragem. O espanhol chorava e blasfemava. Perdera o galo e muito dinheiro.

– Mierda! Estoy la mierda!!! Entonce, mierda!!! Pojo maldito!

Doutor Evaristo chamou os três policiais, ordenando:

– Vamos estourar o rinhadeiro! Prendam o que puderem! Ei, o Pinga Fogo veio junto? Ótimo! Vai ser uma bomba! Se preciso, atirem! Por que estão me olhando assim? Sou algum bicho? O que há? Nunca fizeram prisão em massa?

Um deles balbuciou:

– É que... bem, chefe, onde vamos levar toda essa gente? Só temos três algemas. No carro da viatura, só há espaço pra mais dois, e bem apertados...

Evaristo quedou-se desanimado. “Um país de leis sem condições de cumpri-las” – resmungou atônito. Estudara tantos para quê? Os bandidos viviam soltos, tranquilos. Mas não deixaria passar a oportunidade. Divisou, por entre a plateia que se dispersava, o repórter Pinga Fogo. Foi ao seu encontro e, em voz baixa, perguntou:

– Está disposto a estourar a boca do balão? Vamos fechar o rinhadeiro e prender esses safados. É assunto que agrada a todo mundo. Preciso de sua cobertura. Que tal?

– Oh, doutor, será a bomba do ano! Já estou pegando o nome das pessoas...

– Depois a gente conversa. Tenho outras informações... Tire fotos. E bem ousadas! Documente, rapaz, documente!

Novamente, estava junto dos policiais.

– É uma ordem. Prendam! Não se preocupem com o andar da carruagem. Vamos acabar com esta crueldade. Os animais merecem respeito.

Mas os três policiais não se moviam.

– Mexam-se, seus molengas!

O povaréu, aos poucos, numa conversa desencontrada, se dispersava, entre discussões e risos. E a dupla de violeiro puxou um cateretê:

Nasci debaixo de árvore, naquela serra mineira.

Meu pai foi peão paulista, minha mãe boiadeira.

Passei a infância na estrada, nas campina brasileira,

No lombo de burro brabo foi a minha brincadeira.

Empurrando as pessoas, com o revólver empunhado, doutor Evaristo se postou no meio da rinha, com a voz alta, tremida e rouca.

– Senhores, por favor, silêncio!

Ninguém obedeceu.

– Senhores, silêncio! – berrou. – É uma ordem! Silêncio!

Aos poucos, calaram-se. Quem era o estranho? Por que estava no meio do rinhadeiro? Aconteceria outra briga de galos?

– Sou doutor Evaristo, o delegado, e declaro que, no cumprimento da lei, este rinhadeiro está fechado. E todos os donos dos galos presentes estão presos! Ninguém se mova!

Silêncio de pedra. Depois, um corre-corre. E tiros. Compadre Jiló, com a enorme pança, derrubou três a quatro pessoas quando fugia, o Bico de Ouro no colo, como se fosse uma criança desprotegida. Socos e pontapés eclodiram. Padre Zeca sentiu uma ferroada no ombro esquerdo e, em seguida, uma pequena mancha de sangue tingiu a camisa. Após meia hora, a confusão se foi, o povaréu se dispersara de vez, uns pelas pastarias, outros pelo canavial e alguns se esconderam debaixo do assoalho do armazém. O delegado Evaristo se achava amarrado no meio do chiqueiro de porcos, salpicado de estrume, e os três policiais estavam trancados no banheiro fedorento do velho armazém.

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